domingo, 23 de dezembro de 2012

Natal


Natal


Natal, Natal, sentido e profundo!...
Nascimento de uma esperança,
pequena criança,
trazendo o seu amor ao mundo.



quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Desejo









Desejo

Desço pelo caminho que leva ao cimo do lugar. Desço, pois mais acima, já entre o denso pinhal que a envolve, quase a chegar ao lugar da Estrada, se situa o meu cantinho, das noites e dos dias que por lá permaneço. Desço um pouco, para contemplar, junto à casa do Sr. José do “Norte”,  o telhado das casas do “meu” pequeno lugar, pequena aldeia que por aqui foi crescendo, em redor uns dos outros. É ainda manhã, não muito cedinho. Vêem-se para o lado nascente, onde no fundo das encostas corre, ou apenas caminha, o meu querido rio arda, pequenas neblinas brancas que se espreguiçam em direcção ao sol, ao céu.  São suaves ao olhar, divinamente leves, por ali dormiram, acordando com o dia, esfumando-se no ar, diluindo-se sem deixar rasto. Mas que são agradáveis de contemplar  de ficar um pouco mais a tentar reter na retina esta visão deslumbrante, de um acordar calmo e sereno, demorado, sem pressa de se diluírem, tornarem-se invisíveis ao meu olhar. O dia tem uma claridade cristalina, apetece sentir todos os tons refrescantes que o olhar absorve, a alma sente. As montanhas, mais ao longe, dispõem-se como pequena ondulação num mar sempre calmo, apenas se mexendo quando estas neblinas acordam, decidem levantar-se em direcção à luz, ao calor do sol que vai espreitando no cimo da encosta mais longínqua.
                Algumas chaminés já fumegam, algumas, mas poucas. O fumo é de cor cinza claro, suave, vai ondulando pelo caminho que, também ele, ao céu se dirige, lá mais para cima, mais além dos caminhos dos pequenos pássaros que há muito também já acordaram. Os telhados são de uma cor de tijolo quente, uns mais que outros, devido a não terem nascido no mesmo tempo, alguns, mais velhos, estão escuros, com bocados de musgo que ali se decidiram fixar, para de mais alto também poderem olhar o resto do lugar, assim como eu. É agradável, este sentir que com o olhar tudo se alcança, que tudo o que nos envolve, nos conforta, podemos abraçar, tentar entender o que cada telhado nos poderá contar, a vida que já viveu, as vidas que sempre cobriu, agasalhou da chuva ou do sol escaldante do pico de qualquer verão, quando se recolhe ao quinteiro, a uma sala mais fresca, para uma sesta dormir, uma conversa com o vizinho ter, sentado no carro de bois que no quinteiro também se abriga, por baixo, sempre, do telhado de telhas de barro quente.
                Depois de alimentar esta inquietude de tudo absorver, continuo a descer, até as portas dos quinteiros encontrar, as que dão para as casas. Já há muito que se levantaram, os poucos que por aqui caminham, que a vida sempre levam. Os demais já partiram, como partem todos os dias, como eu há pouco também partia, para onde o local de trabalho os chama. Nesta fase mais ruim da economia, da falta de trabalho, o lugar agradece pelos que dele deixaram de partir manhã cedo, em casa obrigados a ficar. Malandro do lugar, rindo-se lá bem no fundo, desta má sorte de alguns habitantes, boa sorte a dele que assim ganhou mais companhia para o dia passar. Não é bom saber que estão desempregados, mas sabe bem ter alguém para conversar, sentir que a vida habita com mais corações neste pequeno lugar, pequena aldeia. A ver vamos quem tem mais força, se as preces de quem quer voltar a arranjar emprego, se o malandreco do lugar, que com eles quer ficar.  Porque num passado não muito distante, os caminhos sempre se apinhavam dos que por aqui trabalhavam a pequena agricultura, da canalha que para a escola corria, da escola fugia para brincar nos largos, que eram mais que muitos, todos os sítios davam para brincar. Ainda lembro o bom gigante do sobreiro que ficava do lado de baixo da casa dos meus pais, no lenhal que era da casa dos “Alferes”, da casa “Domingos” e da casa da “Joana”, esta ultima a casa dos meus pais. Pois, eu sou o Fernando da “Joana”, filho da Sr. Rosária e do Sr. António. Era assim que todos éramos conhecidos, éramos da casa de alguém, dos do “Pólvora”, do “Martins”, do “Gago”, do “Melo”, do “Paiva”, do “Carvalho”, da “Joana”, da “Joana de cima”, do “Domingos”, do “Alferes”, do “Ângelo da loja”, do “Pejôa”, da “Miquelina”, do “Questina”, do “Beira-mar”, do “Regedor”, do “Louro”, do “Pinho”, do “Norton”, do “Mineiro”, do “Zé do norte”, do “Malaquias”, da “Isaura ou do Rodolfo”, da “Ferruge”, do “Salvador”, do “Castro”, e possivelmente mais alguma que eu agora não lembro. O sobreiro era mesmo enorme, de tronco abastado, não muito alto formava a sua copa, de braços majestosos e entroncados que davam para toda a canalha que se aventurasse, por eles andar, fazer “ninho”. Junto a ele estava pousada uma grande mó, que nunca quis ir para o moinho, que ainda hoje por lá perto anda. De verão era dos sítios mais procurado devido à sua sombra, ao fresquinho que era brincar à sua sombra. Mas tudo que tem vida, um dia acaba por partir. Já partiu há muito, deixou muitas recordações, a saudade desse tempo para sempre continuará a existir, enquanto dele me lembrar, a memória não me abandonar.
                Continuo a caminhada, agora na direcção do ecoponto, pois o pouco lixo que trago ali vou deixar, depois de separado conforme deve ser, para reciclar. Finda esta pequena tarefa, continuo a alimentar a fome do olhar e da alma, que por aqui gostam de passear. Mais adiante, junto à Capela de Santo António, encontro dois grandes amigos, sentado num enorme bloco de cimento, paralelepípedo rectangular, mesmo da altura ideal para se sentar, que ao que me parece, era do antigo posto do leite que ali existia, na casa do “Martins”. Onde hoje se sentam, já muitos litros de leite foram medidos, dos canados de todo o lugar. A produção de leite era uma fonte de rendimento muito importante para qualquer lavrador. Com uma, duas ou mais vacas, assim viviam muitas famílias. O seu leite que diariamente produziam, as crias, quase uma por ano, eram a fonte de rendimento que assegurava basicamente a sua subsistência. Existiam outras fontes de rendimento, mas mais sazonais, como a venda de vinho, de feijão. Não me lembro de ser hábito vender milho, que era a cultura mais importante da aldeia. O seu uso era para cozer o pão para a família e para alimentar os animais que se criavam. Outras pequenas vendas se faziam, a uma senhora que uma vez, ou mais, por mês por cá andava. Eram os ovos, as galinhas, os galos, os coelhos e talvez algo mais que agora não lembro.  Quem tinha tapadas, a venda de pinhal, pinheiros e eucaliptos, sempre constitui uma grande fonte de riqueza, quer na venda, quer no abastecimento de lenha para as lareiras que fumegavam todo o ano. Quem não tinha pinhais, sempre contava com a generosidade de quem tinha, e lhe cedia lenha para a sua casa aquecer, a sua comida cozinhar.
                Quem está sentado, não é um., mas dois grandes amigos: o meu pai, António, e o Sr. Manuel do Martins. De gerações diferentes, um com setenta e seis anos, outro, o Sr. Manuel, com noventa e tais anos. Este canto, junto ao muro da casa do Alferes, é abrigado, dá o sol de frente, não se está mal. No pequeno largo que fica em frente À capela, tem um pequeno cruzeiro mais a um canto, em frente à casa do Sr. Manuel e da casa do Sr. Joaquim do “Fundões” ou “Domingos”, como se goste de chamar. Na sua companhia estão ao todo sete gatos, de várias cores e tamanhos, todos enrolados, por certo à espera de alguém. Digo isto porque já sei o que se passa. Todas as semanas, não sei quantas vezes, passa por cá o peixeiro. Ao entrar no lugar vai buzinando para acordar os fregueses, dizer que chegou, que se apressem com os patacos, pois sardinha boa e outros peixe que o mar sempre dá, não falta e ele o que quer é despejar as “canastras”. Agora já não são canastras, como era antigamente. Nesses tempos, compravam-se às canastras inteiras para salgar, como se faz com a carne do por que em casa se matava. Agora existem as arcas frigorificas, tudo é diferente, talvez melhor para a saúde, não para o paladar, que até com “renso” elas se comiam, depois de demolhadas de um dia para o outro, como o bacalhau. Ali estavam à espera, pois o peixeiro, como bom Samaritano que se preze, lá lhes lançava algum peixe para logo de seguida desencadear luta acesa a ver quem agarrava primeiro. O que mais me admirava eram os mais pequenos como bufavam aos grandes, não largando o que agarravam, fugindo para um canto, de costas voltados, para mais sossegados se deliciarem. A luta pela sobrevivência é tenaz, defende-se a vida com ela própria, num acto de coragem imensurável. Adoro gatos, adoro tantos animais. Na casa do Sr. Joaquim “Domingos”, no cume do telhado, estão dois gatos em barro, um com um rato na boca e o outro para ele olhando, sem nada, talvez à espera que o rato se escape da boca do outro, para logo de seguido o apanhar. Mas ainda continua à espera.
                Depois da passagem, de os cumprimentar e com eles um pouco, porque é sempre pouco o tempo que passamos com os nossos, regresso a casa, caminhando e pensando daquelas coisas da vida que sempre acabamos pensando. Se o destino assim o quiser, se um dia tiver a mesma idade que eles, quem terei eu para conversar? O envelhecer pode ser um pouco assustador. Não que o seja de todo, mas pode ser se nos imaginarmos um dia sós, com pouca saúde para nos cuidar, dependentes de alguém para tudo e para nada. E se não houver esse “alguém”? As famílias vivem tempos difíceis, de conseguir conciliar tudo. Ou é o sustento que necessitam de granjear, ou o ficar cuidado dos progenitores ou de alguém que em casa esteja precisando. A escolha não é fácil, por vezes nem escolha existe, apenas a obrigação, a necessidade de trabalhar fora para ter pão na mesa. Ficam os mais velhos deitados à sua sorte, a alguma solidão. As estruturas sociais que se estão a construir na Freguesia são muito importantes. Ter um espaço para acolher quem assim o desejar, alguém para cuidar, para estar. Mas este povo da aldeia é por vezes um pouco “casmurro”. O que quero dizer, é que o seu apego à casa, às suas rotinas diárias, são um pequeno obstáculo a transpor, a sair da sua casa e conviver num local diferente, por mais acolhedor que seja. Não sei como vai ser a sua adaptação, se assim o querem. Digo isto porque o meu pai diz que para lá não quer ir, “nem morto”. A vida é feita de mudanças, talvez seja mais pacífico, mais tranquila a mudança, a existir. É um centro de dia, mas é muito importante, penso eu, para colmatar este tempo que todos os dias se passa, quantas vezes, sozinho em casa. Uma sociedade avalia-se no seu todo. Se essa sociedade não tiver possibilidade de cuidar dos que precisam, que tipo de sociedade é? Estaremos a caminhar para um tempo em que achamos que o melhor é “ desfazermos-nos” de quem não pode trabalhar, como já aconteceu tantas vezes na história da humanidade? É preciso reflectir, ponderar o que realmente estamos a fazer, ao impregnarmos toda a forma de viver de conceitos e obrigações que a isso necessariamente vão levar. Serão, já hoje, os nossos filhos e os nossos reformados, um peso para a sociedade? Penso desta forma, assim me interrogo, dado que cada vez são mais os custos com ter um filho, cuidar de alguém que precisa, e os apoios sociais estão a ser todos retirados, apenas nos impondo condições, não questionando se temos possibilidades para isso. Falo como pai, falo como alguém que também ajuda a cuidar dos seus pais já reformados. Falo do que sinto, da realidade que constato  Tiram o abono de família, exigem propinas, temos que suportar a estadia longe de casa de quem tem que se ausentar para frequentar o ensino que não temos perto de casa. Sem qualquer apoio, tudo são despesas, desde o alojamento, o transporte, a alimentação, as propinas, o material que é preciso adquirir. É uma grande aventura sonhar criar filhos num “país que parece não os querer”. É preciso dizer que se não existirem novas gerações, um dia tudo acaba?
                A caminhada de regresso é pequena, mas sempre a subir. Moro no “alto das Agras”, como antigamente assim dizíamos. Corre mais vento, é mais frio, mais sombrio devido às árvores que rodeiam a casa. Mas é onde gosto de estar, como todos e os seus cantinhos, onde nos sentimos aconchegados, nos sentimos em “casa”. Onde moramos juntamente com as recordações que se impregnaram nas paredes, em todos os cantos, em todas as tralhas que sempre vamos guardando, fazendo tudo parte de nós, como se fossemos um todo, um único ser. O ditado é velho: minha casa meu lar, minha rede eu pescar. Do tempo em que se nascia em casa, se vivia, nela se morria, ainda sinto esse existir para muitos. O seu apego às raízes, como uma árvore, que já adulta é difícil de mudar de sítio, quase sempre acaba por definhar, até morrer. Assim somos muitos de nós, quando nos levam, a vida nos leva para longe das nossas raízes. Se não for por vontade própria, as recordações serão o veneno que nos matará. Deixem lá estar os castelos de torres de marfim, que eu por mim, nesta humilde casinha quero continuar, nunca dela por muito tempo me ausentar. Não vá morrermos, eu e ela, pelas saudades que nos envenenarão. Deixem estar os que assim querem estar, deixem-nos até a morte os levar, que assim nada sentirão.
                Doença incurável, esta de que os aldeões quase sempre padecem. Mesmo que a vida os leve para longe, sempre de regressão estão, como as andorinhas que todos os anos sempre regressarão. Mas não devemos ter medo da vida enfrentar, de desvendar novos caminhos, mesmo que a outra “casa” nos possa levar. Se assim o for, que novamente se ganhe raízes, se arranje nova tralha para guardar, outros vizinhos com quem falar. Que não deixemos de viver, encarecidamente a mim peço, que em mim nasça uma nova força, que me apazigúe o peito e a alma, que de saudade não me deixe morrer, sem antes toda a minha vida viver. Só desejo, toda a minha vida, viver.

13 de Dezembro de 2012


segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

" A esmola "





“A esmola”

Não há muito tempo, já eu era um rapazola grande, era comum ver pessoas que andavam, de porta em porta, a pedir esmola. Não que hoje não aconteça algo parecido, mas de diferente envolvência, diferente nos propósitos, hoje pede-se, na maior parte dos casos, por razões que nos parecem um pouco duvidosas, ficando-se, na maior parte dos casos, com a sensação de estarmos a contribuir não se sabe ao certo para quê. Acredito que muitas vezes as pessoas que pedem são sinceras no seu propósito. Noutros casos, acho que apenas o fazem para alimentar certas situações menos claras. Pedir é sempre pedir. É algo que todos nós fazemos, uns mais, outros menos. Mas todos nós acabamos por necessitar dos outros, nesta ou noutra situação. Mas o pedir esmola, como eu lembro de algum tempo atrás, era diferente. Quem pedia, era para alimentar o corpo, talvez um pouco a alma. Muitos pobres que pediam, já eram conhecidos no lugar. Vinham arrastando o amontoado de trapos que os cobria, dormiam em qualquer palheiro ou quinteiro que se lhes dava para ficarem. Aceitavam tudo, agradeciam o que recebiam e não recebiam. Eram de uma simplicidade extrema, afáveis no falar, rezando sempre pela alma dos que lhes alimentavam o corpo e a alma. Acolhidos mais facilmente por quem também era pobre, por quem conhecia bem o que estavam a passar, por quem sentia o que lhes ia no corpo e na alma. Muitos dos que hoje davam, também já tinham andado a pedir, de lugar em lugar, de freguesia em freguesia. Sabiam bem das amarguras da vida, do não ter pão para si e para os seus, das mazelas que as doenças deixavam, tantas vezes incapacitados para trabalhar, vagueavam de porta em porta à espera que ela se abrisse, que dela saísse uma palavra, uma malga de sopa, um bocado de pão que tinha sido cozido já há quase uma semana pela dona da casa, no forno que ficava por cima da lareira ou noutro local, conforme a arquitectura da casa. Mas era sempre bem-vindo, por pouco que fosse, não se recusava. Se não desse para mais, dava para entreter a barriga de algum pobre animal que por vezes partilhava o mesmo caminho, a mesma sina.  Em casa dos meus pais, principalmente a minha mãe, todos os que se abeiravam da porta eram convidados a sentarem-se à nossa mesa. Muitos aceitavam, outros não, não sei ao certo porquê, talvez hoje possa imaginar, ficavam pelo quinteiro, sentados na beira do carro dos bois que ai se abrigava. A panela da sopa dava sempre para todos. O resto que havia, umas batatas cozidas com alguma coisa que se tinha ido buscar à salgadeira, onde se guardava a carne, depois de salgada, do porco que sempre se matava todos os anos, era repartido por todos. A conversa era em redor do visitante. A minha mãe, sempre ela, gostava de perguntar por este ou aquele, deste ou daquele lugar, pessoas que conhecera ou ouvira falar, e que já há muito tempo não via. Sabia que era uma forma de saber as novidades, alegres ou tristes, das outras bandas. Poucas vezes o visitante nos olhava de frente. Por timidez, uma certa vergonha, um orgulho que mesmo ferido gostava de manter, ia comendo e falando, quase ao mesmo tempo. Havia um senhor que era mudo, que apenas dizia alguns sons. Achávamos que o percebíamos, que sempre sabíamos o que queria. Também não era difícil, não se tratava de nenhum discurso filosófico, de uma argumentação sobre uma qualquer tese. Buscava apenas o que o que qualquer corpo e alma simples necessitam para se saciar: uma tigela de sopa e um sentir de uma carinho que sempre se lhe apegava às roupas, que eram muitos trapos velhos, e que, ainda assim, lhe chegava ao coração, à alma. Nunca senti que, na casa dos meus pais, a presença de quem pedia esmola fosse uma consumição, mais um a atrapalhar a porra da vida, que poucas vezes corria como se queria. Mas não é difícil entender este espírito generoso, calorento com que se acolhia quem se abeirava da porta, de uma casa onde a pobreza também ali morava. A pobreza, não a miséria, pois Deus nos tinha dado a sorte de termos alguma saúde para trabalhar, algum juízo para a vida sabermos levar. Isto porque a minha mãe, ainda hoje, lembra e conta as passagens que viveu em pequena ou as que lhe contaram, das vidas dos seus familiares ou vizinhos, entregues à mesma sorte. Hoje sinto, que ao receber todas estas pessoas, era uma forma de ela falar com os seus antepassados, retribuir desta forma quem os tinha acolhido, dar-lhes também o pouco que tinha. Pois Eles, os seus antepassados, “um dia” também andaram de porta em porta a pedir esmola. Tempo de uma miséria extrema, de não haver pão. Sem qualquer apoio social, como hoje felizmente existe, quem era pobre e deixava de ter forças ou saúde para trabalhar, só lhe restava pedir esmola. Vidas tristes, difíceis de imaginar os tormentos de quem vagueava de porta em porta, de Aldeia em Aldeia, de Freguesia em Freguesia, por vezes de Concelho em Concelho. Alimentando-se do que o dia dava, vestindo-se dos farrapos que lhes iam oferecendo, sem possibilidade de uma higiene mínima, expostos às condições climatéricas, tendo que arranjar forças e ânimo para todos os dias se levantar, das palhas onde pernoitava, tantas vezes partilhando o seu sono com os animais que estavam no quinteiro ou em algum palheiro, assim levar a vida, tentando manter alguma condição Humana, pois de Humanos estou falando.
                Lembra, a minha mãe, nas conversas que ainda temos, a sua falecida avó, que também acabou os seus dias a pedir de porta em porta, acabando por falecer num dia trágico, quando, por onde andava, um touro se soltou de um curral e a marrou, provocando-lhe a morte. A vida pode ter destas coisas. A vida pode ter tantas coisas, coisas que nem na nossa imaginação ousamos conceber. A vida pode tomar muitas formas, muitas mudanças, muitos desafios. Ao escrever estas lembranças, mesmo que não sejam das minhas vivências mas que fazem parte de mim por as ter ouvido e escutado com atenção, de corpo e alma, de mim já fazem parte, em mim já despertam pequenas lágrimas que ficam contidas, mas que foram choradas, fico a imaginar todo o drama que é alguém ter de sair para o caminho, bater de porta em porta. Se calhar, também eles já tinham ouvido as mesmas histórias que eu ouço de minha mãe. Também eles, esses que tem a grandeza de não se renegarem, de aceitarem pedir esmola, de aceitar a cruz que Deus lhes deu, sintam que pecado é roubar ou matar, que pedir é acto de fé, de acreditar que existe alguém para partilhar, mesmo por pouco que tenha. Também Jesus andou de terra em terra, aceitou comida e dormida de quem lha deu; e era Jesus, filho de Deus. Também Ele nos quis ensinar que nada de desonroso existe em pedir esmola, andar de porta em porta. Hoje, ao olhar o meu passado e o daqueles que comigo o partilham, sinto uma vontade imensa de olhar o céu, procurar por todas essas almas que já partiram, meditar um pouco sobre os sacrifícios da vida, nestas aldeias pobres, de gente que trabalha, de gente que ainda luta. Poucos já restam, dessa casta de gente honrosa, capaz de aceitar os sacrifícios que a vida lhes dá, lutar sempre sem esmorecer, acreditar sempre que amanhã será um novo dia, talvez melhor. Os pobres, os verdadeiros pobres, aqueles que foram assim criados, sabem saciar-se com pouco, ser felizes apenas com o cantar das águas nas fontes, do chilrear dos passarinhos que em seu redor procuram migalhas, do cantar com alegria, com alguém, uma canção triste do fado da vida. É na vivência diária que, entre si, vão alimentando o resto do corpo e da alma, do que a mesa não teve para dar.
                Hoje, se falta a electricidade já é um Deus nos acuda. Se a Internet não funciona, o mundo está para acabar. Se a televisão não dá, seja lá qual for a razão, já não se sabe viver, é melhor morrer. Se o telemóvel pifou, ai se não se arranja ou se compra outro, sem ele já nem se sabe respirar, é o Apocalipse.
                Dizemos que estamos em crise. Os meus filhos já andam preocupados que quando acabarem os estudos não vão arranjar trabalho. Eu estou desempregado. Que fazer? Que coisa poderei eu lhes dizer? Que pensar? Que coisas a mim contar? Por estranho que possa parecer, apenas me sinto angustiado quando não me sinto motivado para fazer alguma coisa, diferente, por simples que possa ser ou parecer. Só sinto falta é se ânimo não tenho, não me quero reger pelas leis da sociedade, do que ela dita ser importante ou essencial para se ser alguém, importante de preferência, rico ainda melhor. Quero antes descobrir outras riquezas, daquelas que não reluzem ao olhar invejoso dos outros, daquelas que a mim me saciam, me fazem contente, me dão um pouco de felicidade, não muita para não me envaidecer. Quero ter um vizinho com uma fogueira acesa, para que eu possa ir pedir um pouco de borralho, que trarei na palma das duas mãos, bem juntinhas, com cuidado para não me queimar, depois de primeiro me ter colocado um pouco de cinza, daquela que já arrefeceu, e de seguida um pouco de borralho, vermelho como um tição, que quando chegar a casa só será preciso assoprar para a minha fogueira também acender. Quero que as fontes tenham água, ou a nascente nas Bouças ou na quinta da Cavada, que fica mais abaixo, para poder encher os canecos e os baldes com água pura e cristalina, para à noite se cozinhar, a lavagem ao gado deitar, numa bacia me lavar, talvez apenas os pés e a ponta do nariz. Quero apenas no largo da capela a outra canalha encontrar, para correr e brincar, uma algazarra podermos fazer. Quero apenas á noite os poucos livros na sacola arrumar, antes de deitar, para no dia seguinte, logo de manhã, para a escola poder ir, e aprender, coisas do saber, coisas que há para aprender, o mundo conhecer e entender, um dia poder com ele também comunicar, me fazer entender.
                Ainda não faltou o pão, mas todos andam famintos. Que lhes falta? Que geração somos, que geração estamos a criar? Não somos capazes de viver com algumas dificuldades, continuarmos a lutar, a fazer o que entretanto nos é possível fazer, aguardando com esperança o dia de amanhã? Porque não acreditamos, porque não confiamos? Será o saber dos valores humanos que se estão a perder? Será o sentir que se um dia esmola se tiver que pedir, apenas vamos encontrar portas fechadas? Estão já elas hoje fechadas, para dar pão ou um conselho com alma e coração? Estamos também fechados, e por assim estarmos, todo o resto julgamos? Quem sou, o que sou, o que desejo ainda ser? Esta será a pergunta mais difícil de responder, para mim e talvez para todos. O que somos, enquanto seres individuais e sociedade? O que defendemos, o que almejamos conquistar, com os outros partilhar, para um todo contribuir? Que passos estamos dispostos a dar, que caminhos ainda seremos capazes de percorrer para com alguém ir ter? Seremos capazes de deixar o barco ou a charrua para seguir o chamamento de alguém?
                Gostaria que um dia todos fossemos capazes, incluindo-me naturalmente, de desligar a electricidade, a água, o gás, o telemóvel, enfim, toda a tecnologia a que estamos ligados, como se estivéssemos em algum hospital sujeitos aos cuidados intensivos, e ver se conseguíamos viver, continuar a respirar e a comunicar, a conviver, apenas por um dia, para podermos tomar consciência da dependência a que estamos sujeitos com a nossa actual forma de viver. Isto, está claro, se viver numa aldeia, tenha lareira, fontes e canados para se ir buscar a água, lenha guardado no alpendre para cozinhar. Eu não estou a afirmar que não é bom desfrutar dos benefícios da tecnologia. Apenas estou a sugerir que sejamos capazes de fazer este pequeno exercício, ver como reagiríamos. Considero muito importante tomar consciência de tudo o que somos, que nos envolve, e sermos capazes de, perante alguma dificuldade da vida, continuar a respirar, a socializar, a trabalhar, enfim, a viver.
                Quando fui para a secundária, com onze anos, comecei a convencer os meus pais para fazerem um pequena casa de banho, com sanita, lavatório, bidé e um chuveiro. A retrete que existia dava apenas para fazer as necessidades. Mas não tinha uma sanita, era apenas uma estrutura em cimento, com um assento em madeira, e que ligava directamente à fossa. Como era natural, o cheiro das fezes vinha para cima, era preciso deitar água com um balde para ficar mais ou menos limpa. Ficava no cimo das escadas, fora da porta da cozinha. Durante a noite, cada quarto tinha o seu penico, pois ninguém queria ir à retrete durante a noite, abrir a porta da cozinha, sair de casa para fazer as suas necessidades. De manhã todos despejavam o penico na retrete. E mesmo assim, já era muito melhor do que a que havia antigamente, no canto do quintal. Esta pelo menos ficava junto á casa, logo no pátio que dava para a cozinha. Para nos lavarmos, era usada uma bacia. A água era aquecida numa panela de ferro, com três pernas, muito preta. Maiorzito, como via os chuveiros na escola, e gostava, temperava a água e enchia um regador. Depois, já dentro da bacia, pegava no regador e deitava por mim abaixo, como se fosse um chuveiro. Gostava muito de o fazer, até que consegui lá convencer os meus pais a fazer a tão desejava casa de banho. Ficou no mesmo local da antiga retrete.  Era pequena, mas já dava. Com sanita, lavatório, bidé, e o tão esperado chuveiro. Tinha água quente que vinha de uma caldeira que se instalou na lareira. Estava perfeita. Foi uma grande obra na casa dos meus pais. Assim como as janelas de alumínio que vieram substituir as velhas de madeira, que já estavam podres. No meu quarto, e do meu irmão mais velho, o Joaquim, andava sempre a colocar plásticos no sítio onde devia ter vidros, para não entrar o frio nem a chuva. No quarto de fora, um que se fez ao lado da antiga retrete, para o meu falecido tio Manuel, dos Moreiras da Mata, irmão da minha avó paterna, a Sra. Ermelinda, era bem pior. Como não tinha telha a cobrir, apenas uma placa em betão, era muito frio no inverno e muito quente no verão. A placa em betão tinha rachado e metia água em alguns sítios. Tínhamos que desviar a cama e colocar bacias a apanhar a água. Quando caia geada ou neve, dentro do quarto a água também gelava. Dormia com o meu irmão, com uma carrada de cobertores, cobrindo até a cabeça, para se aguentar o frio. Mas éramos canalha nova, aquecíamos mais depressa os pés do que agora. Nascido e criado numa família pobre, vejo com outros olhos as dificuldades actuais. Também as sinto, mas não ouso blasfemar. Comparativamente, ainda vivemos bem melhor do que os nossos antepassados. Preocupa-me é o futuro, a forma como se estão a “criar” as novas gerações. O seu espírito de sacrifício, a forma de lidar com as adversidades da vida, sem nunca desistirem, nunca se quedarem, nunca procurarem caminhos fáceis que hipotecam o seu futuro, e os demais. A perseverança é uma qualidade que vai faltando a muitos. Existe um espírito “existencialista”, vivendo apenas o presente e um futuro muito próximo. Faltam estadistas, Homens de visão mais alargada, mais conhecedores das diferentes realidades dos que constituem a actual sociedade, que visionem mais além, que desafiam as presentes leis económicas, que lancem bases para uma construção sólida, com alicerces que sustentem o futuro. Hoje é comum ouvir-se “...isto não vale a pena”, como se de uma opinião sábia se tratasse. Quantas vezes é apenas o admitir de não se estar disposto a fazer algo que só as gerações seguintes iriam tirar proveito. Se fazemos uma plantação de pinhal, apenas se pensa naquilo que em vida possamos colher. Não está certo nem errado, mas que seria de nós se os nossos antepassados não tivessem deixado pinheiros a crescer, castanheiros, ainda sem dar fruto, na sua vida? Que tínhamos hoje para colher? O que vamos deixar para as gerações futuras colher? Já parecemos aqueles da canção”... Eles comem tudo, Eles comem tudo e não deixam nada.”. Devastados por estes princípios, assim sinto, que, por todos os meandros da sociedade, se vai padecendo. Pior que uma peste, por mais “vidas” dizimar, por mais difícil de se curar.
                Não motivado nem aliciado pelas esferas politicas, que posso eu fazer, que poderão todos os cidadãos, que como eu pensam, fazer? Será cobardia este alhear-se do que se passa e decide nas reuniões de uma Junta de Freguesia ou de uma Assembleia Autárquica? Será preciso dizer que está errado, quando de outra forma não o pode ser? O que move os nossos representantes políticos, à luz da constituição do regime democrático que nos governa, ou desgoverna, a deliberar por tais caminhos? Ao conhecermos um pouco melhor os senhores do poder, seja ele em que esfera for, verifica-se que pertencem quase exclusivamente a um determinado sector da sociedade, mais abastada, ocupando uma posição confortável na hierarquia social, pois ao contrário do que muitos dizem, sempre existiu e existirá. Isto, por si só, nem é bom nem mau, é apenas um constactar um facto real. A pergunta que a mim coloco, é muito simples: isto é uma lei sagrada da matemática, ou é algo mais complexo, abrangendo muitos outros significados? Poderão estes Senhores, nascidos e criados longe das portas de quem anda ou já andou a pedir esmola, compreender as dificuldades dos muitos pobres, as suas ansiedades como seres Humanos, no dizer, iguais?
                A dor é algo difícil de quantificar, talvez impossível de mensurar. Cada um sente de forma diferente. Poderei eu dizer que sei a dor que alguém sente, se nunca estive em situação idêntica? Poderei eu teorizar, se nunca essa realidade vivi? Para muitos conceitos isso acontece. Para outros é mera utopia, de quem deseja lavar as mãos, encenando uma falsa caricatura, mostrando o seu desdém em forma de sabedoria. Uma forma hipócrita de parecer bem, aos que de bem nada tem. Porque quem realmente sente, vive a vida de uma forma mais cristalina, a estes, esse lamurio nada dizem, ou melhor dizendo, apenas dizem da hipocrisia de que é feito. Porque apenas agindo, fazendo algo para atenuar esse sofrimento, se compreende que se esteja “sentindo” a dor desse alguém que sofre. Não busco a perfeição nas palavras nem nos actos. Apenas me interrogo quando vejo certas barbaridades cometidas á luz do direito, do poder que tem. E nada os incomoda, dormem de consciência tranquila. Dormem o tanas, que raio de consciência podem lá ter. Apenas se iludem nas mentiras que muitas vezes contam, na esperança que se torne verdade. Verdadeiros alquimistas no mistério da transformação. A um povo acomodado vão enganando, iludindo. Mas porque o fazem? Esta talvez seja, sempre, a minha maior interrogação!    
               
    

10 de Dezembro de 2012

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Esboço de um diário




Esboço de um diário

Hoje foi um dia enfadonho. Quase nada de novo, desde o acordar ao deitar. As tarefas miúdas vão preenchendo os movimentos durante quase todo o dia. Pouco tempo resta para me aventurar noutras conquistas. Vou protelando alguns projectos que sempre vou magicando. Eu sei que são apenas esboços mentais disto ou daquilo. Alguns acabam tornando-se realidade. Alguns, mas sempre muito poucos. O que na mente me parece valer a pena, logo que os arrasto para a realidade, acontece esfumarem-se. Quase sempre inexequíveis, por falta de vontade ou por assim o serem.  Mas nunca deixo de os imaginar, cada vez mais. O tempo hoje esteve murcho, sem a luz que eu necessito para fazer fotografia. O Outono é assim mesmo: pensativo, nostálgico, um adeus demorado ao seu irmão Verão, que para outras paragens teve que se ausentar. Prometeu para o ano voltar. Não o disse, mas eu sei que assim será. Nunca faltou à palavra, mesmo não pronunciada. Que seria de mim se as estações não regressassem sempre? Mas agora é o Outono que me vai fazendo companhia. Também eu ando um pouco nostálgico, arrastando um caminhar por entre a folhagem que vai cobrindo todo o chão. O chão que se esconde, adormece, abrigando-se do inverno frio e chuvoso que por ai não tarda. As folhas são cada vez mais, espalhadas por todo o lado. Vou poisando meus passos com cuidado, para as não magoar. São de tantas cores, quentes, como as lareiras que se aquecem com as suas fogueiras. As árvores vão-se despindo, numa nudez sem constrangimento. Adormecem, hibernam, apenas esperando acordar na próxima Primavera, que também sempre regressa. O vento vai ajudando, sacudindo todas as folhas que se vão desprendendo, numa suave queda, para não se magoarem. Sabem que um dia irão reencarnar, viver outra vez, depois de uma breve passagem dentro do útero materno, a terra mãe. Todos os elementos que se decompõem, poderão um dia regressar à vida, numa outra qualquer forma. Poderão ser alimento, energia, argamassa, tijolo, ferro ou madeira de uma nova construção, obra da vida, da eterna vida que se regenera, imortal, assim se deseja.
É bom sentir esta forma de imortalidade dos elementos que compõem a natureza. Nunca ouvi um cientista defender que, as diversas formas de flora que existem, tenham algo equivalente ao que nós chamamos de “sentimentos”. Também elas nascem, crescem, atingem a sua “maturidade sexual”, dão os seus filhos, as sementes, e um dia desfalecem, não sei se “morrem”, se imortais são. O conceito de morte para os humanos é próprio. Na “outra natureza” que nos rodeia, não consigo imaginar o que quer que seja. Sei que, quando os meus filhotes eram pequenos, quando morria algum animal de estimação, existia um “Céu” só para eles. Uma forma de se aliviar a dor da perda, uma forma por não se saber de que outra forma podia ser no seu entendimento. O acreditar, o ter fé é tão essencial nas nossas vidas, nas nossas vivências. Nunca deixaremos de ser “crianças”, acreditar que existe sempre mais alguma coisa, mesmo depois do “infinito”. 
Por hoje são apenas estas linhas que contigo confidencio. Aguardo melhores dias, para te encher das muitas novidades que existirem para contar. Apenas estas linhas escrevo, para dizer que nunca me esqueço de ti, por muito pouco que tenha para partilhar. Até breve.
                

Para descontrair





Para descontrair

No final de uma aula do 12º ano, vai a professora para o Joãozinho:
- Menino Joãozinho, porque é que o senhor não vai para a universidade?
Responde o Joãozinho sem papas na língua:
- Não vou porque os meus pais não têm notas altas!
- * -
Certa vez, ia um criado com um molho de erva à cabeça, de regresso a casa, caminhando paulatinamente na berma de um caminho. Passa um fidalgo, montado no seu imponente cavalo. Em tom sarcástico, vai dizendo que os burros andam sempre carregados, pobre vida. O pobre criado, de olhos no chão, seguia sem responder. Entretanto o cavalo começou a comer a erva tenrinha que o criado levava à cabeça. O fidalgo nada fez, achou graça, e lá ia acompanhando o caminhar do criado, cada vez mais curvado. A dada altura, o cavalo deu uma bocada mais forte no molho, fazendo com que o criado se desequilibrasse e deixasse cair o molho pela pequena ravina na borda do caminho. O fidalgo desata em altas gargalhadas. O cavalo é que não esteve pelos ajustes. Aproveitando uma distracção momentânea do seu dono, lança-se pela ravina, ao encontro do molho de erva que estava lá no fundo. O fidalgo, apanhado desprevenido, foi cuspido da montada, rebolando até ao fundo da encosta, onde estava o molho da erva. Vai então o criado para o senhor fidalgo:
- Obrigado meu senhor, assim já vou mais leve. – Dito isso, segui caminho, sem conter uma gargalhada.
Para mal dos pecados do fidalgo, quando deu o trambolhão pela encosta abaixo, foi-se aninhar mesmo em cima de um vespeiro.
- * -
Um vendedor de lenha tentava convencer a sua cliente para lhe comprar lenha para a lareira. A freguesa é que não se contentava com qualquer coisa, e vai assim para o vendedor:
- Eu compro a lenha, mas o senhor tem que me garantir que é lenha boa, que dura muito tempo!
E vai o vendedor para a freguesa, muito sabiamente, com a seguinte resposta:
- Oh patroa, se não lhe chegar o fogo, ela dura uma eternidade!
- * -



quinta-feira, 29 de novembro de 2012

As interpelações do pensamento



As interpelações do pensamento

                Divagando um pouco pelo tempo, devido ao tempo que agora me sobeja, não me contenho em reflectir um pouco mais sobre as contingências que a vida pode tomar. Não sei se a vida se orienta através de um destino já traçado, se é obra nossa. Um pouco como aquele Rei que ao construir um castelo para se proteger, descorou a robustez das muralhas, tornando-se presa fácil para o inimigo. Sucede-nos tantas vezes pelo caminhar da nossa vida apenas preocupar-nos com o atingir determinadas metas, esquecendo-se por completo que após conquistada, “a fortaleza tem que ser guardada”. Pouco, ou mesmo nada, se pode dizer que está “seguro”. As nossas fragilidades são imensuráveis,” quanto maior o barco, maior a tormenta”. Ser optimista, acho que no “acontecer” de pouco vale. Apenas ajudará na forma de novamente encarar os desafios da vida, novas projectos definir, não esmorecer.  Contudo, face a determinados acontecimentos, alheios a tudo que possamos fazer, não há muralha que resista, que se mantenha de pé. Quebrando rotinas há muito enraizadas, percorremos de uma forma diferente os mesmos caminhos de ontem. Visionamos tudo de um outro prisma, somos visionadas também assim. A interacção com os outros obedece a certas regras, a certos padrões, a estatutos que, de forma involuntária, adquirimos. Relacionados pelo nosso lado profissional, por alguma particularidade na vida colectiva, pela forma como estamos em grupo, socializamos, ocupamos um lugar próprio na esfera dita social. Será relativamente fácil lidar com as contrariedades da vida, quando, mesmo alienados de determinado estatuto, temos garantido todo o nosso equilíbrio emocional e, tão importante como isso, garantidos meios de subsistência. É com grande à vontade que encaramos uma conversa com alguém que sabemos não nos tentar extorquir o que quer que seja. Seja uma divida de gratidão, um favor do passado, qualquer outra pretensão que o leva a solicitar-nos algo que não temos para dar, ou pelo menos, não estamos dispostos a dar. Dito desta forma parece um pouco cruel. Mas a interrogação então se levanta: até onde estamos dispostos a ir para ajudar alguém que precisa? Não acredito que alguém possa responder verdade. Quanto valemos, quanto nos dispomos sem querer algo em troca?
                Em tom de brincadeira, costumo dizer que as mesas deviam ser todas redondas, para que ficássemos todos à mesma distância do “centro”. Numa verdadeira roda de amigos, ela sempre se alarga quando alguém chega. Numa família de verdade, o pão é igualmente repartido entre todos, as tarefas e as responsabilidades igualmente. Mas o nosso lado “primitivo” é tantas vezes mais forte. A competição leva-nos a comportamentos inimagináveis. A ambição desmedida, o conseguir algo a todo o custo, assusta só de pensar. Quem se pode afirmar imune? Todos os seres, de todos os reinos, perante circunstancias extremas, adoptam comportamentos de sobrevivência tocando a barbaridade. A natureza concebeu-nos desta forma. Não podemos, e talvez não se deva, contornar, inibir este instinto. Talvez este instinto seja a chave da sobrevivência de tantas espécies, ao longo da já antiga história que o planeta tem. Mas este pensar é relativo, como relativas são tantas coisas. O conceito de tempo que nos é próprio, difere muito numa visão mais abrangente. Toda a dinâmica dos universos que existem, tem um tempo próprio. Regra geral, associamos o conceito tempo, ao de uma vida humana. Com base nesta medida, a que talvez possamos chamar padrão, estabelecemos toda uma série de comparações, de opiniões tidas, no nosso entender, como sábias.  
                Um pouco como a velha história do menino pastor, que procurava sempre descobrir e empoleirar-se na pedra mais alta do monte em que guardava o gado, enquanto este se entretinha, de nariz quase no chão, tentando arranjar algo que lhe enchesse o estômago. Neste desafio constante, ia pulando de monte em monte, acabando sempre por encontrar um maior do que aquele em que se encontrava. – Quando for grande, quero subir ao ponto mais alto do monte que além avisto. Lá no cimo, não haverá monte maior que aquele. - Mas nem sempre acontece o que o pastor julgava ser uma verdade absoluta. Decerto, ao chegar ao dito monte, iria avistar mais além, na linha do horizonte, outro maior. E assim sucessivamente, não fosse a terra mais ou menos redonda. Então, afinal, qual é o monte mais alto? Para se descobrir isso, não basta apenas a nossa percepção visual, é preciso chamar os senhores doutores do conhecimento, aqueles que estudam todas essas coisas. Porque ao nosso olhar, ao nosso sentir, o monte mais além, que toca o céu, na linha imaginária que é a linha do horizonte, será sempre mais alto do que aquele em que estamos empoleirados. Um pouco não se estar nunca bem, com todo o bem que se tenha. A nossa ambição, a nossa cobiça, vai sempre para o sítio onde não estamos, e que sempre desejamos. Um pouco como em miúdos quando brigávamos por querer os brinquedos dos outros miúdos. Pareciam-nos sempre melhores que os nossos. E se não conseguíssemos o que queríamos, lá vinha o amuo. E vamos sempre amuando pela vida, pequena ou comprida, que sempre achamos ter.
                Pela manhã, sempre dá para nos escondermos na própria sombra, dado o tamanho que ela toma. Na hora do meio-dia é que se complica, somos maiores que a nossa sombra, não dá para nos escondermos nela. Pela tarde, início da noite, voltamos ao princípio, a sombra já maior, dá para nos escondermos nela. Um pouco à semelhança de um entendimento que se queira fazer da vida, do tempo em que temos quem nos proteja, do outro tempo em que dependemos só de nós. Um pequeno jogo de palavras, nada mais. O seu entendimento deverá ser diverso, para que seja frutífero. Não se quedar pelo que os olhos vêem  deixar que o nosso sentir completo o quadro, o possa colorir de uma forma diferente que a mãe natureza. Não que Ela não se tenha esmerado por nos proporcionar todas as formas e cores possíveis. Mas antes uma necessidade qualquer de que seja de outra forma entendida, a realidade tocável vivida, entendida. Tocada pelos nossos sentidos, completado pelo nosso sentir, que será sempre mais um sentido que possuímos. Este mais impreciso perante a opinião alheia. Mas tão objectivo como uma outra coisa qualquer. Um arquitectar mentalmente das formas que queremos ver e depois sentir, uma pequena alucinação, sempre controlada, sempre objectiva ao nosso pensamento. Mas pouco ou nada é consensual: ao olhar de cada um, mesmo ao nosso olhar. A mente distrai-se facilmente, nos distraímos com este ou aquele pormenor, não conseguimos analisar com precisão todos os elementos que o nosso olhar capta, mas apenas vimos o que a mente quer, onde ela se concentra, relegando para o esquecimento, para a inutilidade, todos os outros elementos. Não nos conseguimos concentrar em todo o campo visual. Somos por vezes alertados por alguma modificação mais ou menos brusca na parte esquecida. De rompante, tentamos perceber, acompanhar, descobrir o sucedido. Mas por vezes é tarde demais, que o digam os condutores quando não se apercebem de uma outra viatura que os ultrapassa, de um peão que se meteu à passadeira, de alguém que entra num cruzamento, de um semáforo que muda de cor. Educar a mente, o olhar, para o essencial, o que é indispensável ver e perceber, é um exercício diário. Lembro os passeios que dou pelo meu quintal, a forma absorvedora com que ocupo a minha mente, com os meus pensamentos, o meu sonhar desvairado, desligando-me por completo do mundo meramente feito de matéria, e a necessidade que tenho em que os meus cães sejam os meus ouvidos, a minha alerta permanente, dos que possam invadir o meu reino; no “mundo da lua”, ou, se for o caso, melhor dizendo, na “lua do mundo”.
                Mas não desejamos que o dia tenha mais que uma noite. Talhados pela natureza, seja ela qual for, para encaixarmos nesse tempo já definido, já assimilado pelo corpo e pela mente. Estabelecemos rituais que se prolongam desde o nosso primeiro dia, pouco se tendo alterado desde então. Pouco pode não ser o caso, mas similar, havendo muitos resquícios imiscuídos no nosso ser. Precisamos de dormir, de preferência, quando o dia dorme também.  O nosso equilíbrio é imprescindível para desenvolvermos em pleno todas as nossas capacidades, mesmo as “desequilibradas”. Regenerar forças, alimentar com descanso a mente para que possa interiorizar e guardar a informação recolhida durante “o dia”. Ainda somos assim, por quanto tempo mais, não sei. Mas será sempre longo, pelo padrão do nosso tempo, do nosso jeito de medir o tempo. Mais rápidas são as mudanças sociais, a nossa adaptação a esta ou aquela cultura, sistema governante, todo um conjunto de obrigações e deveres, que depressa os assimilamos. Por vezes contrariados, amuados, mas de nada nos serve. As maiorias, sempre as maiorias. Ai de nós quando nelas não nos integramos, ou pelo menos, coabitamos. Revolta incessante, no corpo, na mente e na alma. No corpo que dorido fica das imposições. Na mente por não compreender tais desígnios. Na alma, por nunca a querermos perder, a querermos vender ao “diabo”. Com um corpo contrariado, uma mente desvairado, ainda vamos lá. Mas sem alma, desprovida desse algo que nunca sabemos bem definir, é que tudo perece, tudo se esvazia, ficando sem sentido, sentindo o não querer tal existência, ao pó deseja regressar.
                De onde viemos e para onde caminhamos. Por mais desvarios que a mente possa imaginar ou conceber, o corpo rezingar, a alma padecer. Saboreamos a nossa estadia nesta aventura que é sempre a vida, o viver, o querer viver, o gostar de viver, o conceber o nosso viver se tal almejarmos e, depois, o conseguirmos. Porque desejar conceber um viver próprio é um desvario da mente, como se de todo fosse possível, como se não estivéssemos fadados para num puzzle qualquer encaixarmos. Apresentarmo-nos perante a vida apenas e só como um todo, desligado de tudo, é acto petulante, de vaidade extrema, um desprezo para com toda a criação da natureza, que todas as espécies interligou, por necessidade ou desejo. Até a águia, que tão alto voa ou plana, necessita do alimento que mais abaixo, ainda no ar, ou já na terra, se movimento, descuidado, na “lua do mundo”. Sem esse alimento, poderia lá ela existir. Até as pedras bebem, quando se impregnam da humidade que as envolve. Que mais não seja, para alimentar os verdes musgos que depressa a elas se agarrarão. Somos lá senhores de andar sozinhos. Se sós  estamos, é à condição, não por vontade nossa. Mesmo sozinhos, desejamos não estar sós, move-se em nós todo um grito de revolta, contido, mas que decerto o queremos exprimir, mais que não seja, em irregular escrita, nas direitas linhas de um qualquer caderno.  Que de memórias nem só a mente se perfaz, se austera, necessitando que a água corra sempre na fonte, que dela todos os dias bebam. Porque a sede não devemos matar, apenas saciar. Ai de nós, se a sede matarmos. Como vamos saber quando precisamos de ingerir tão precioso liquido para a vida dentro de nós alimentarmos? Descuidados nas palavras, na valoração das pequenas impertinências que a natureza assim o quis, por de todo o achar coisa útil. De sábios temos tão pouco, um saber de sabichões, quando apregoamos falsos dizeres, para o mundo nos querer. Como se forjasse um labirinto infinito, no pensamento, na mente alheia, para que descobertos ou achados nunca o sejamos. De coisas simples sejamos. Se vasto conhecimento tivermos, mais uma obrigação para todos compreender, a todos nos fazermos entender.  Que nosso propósito algum seja, de muitos entendido, para muitos vivido. Mesmo de mãos no bolso, caminhando e assobiando, que ainda assim, possamos cantar.
                Que a voz que se ouve, vinda de dentro de nós, não precise de ser apenas falada para ser escutada. Que ela quebre o som do silêncio, num pequeno murmúrio enquanto se vai desfolhando uma após outra, as páginas, com frente e verso, dos passos que sozinhos não quiseram ficar, estar. Que a melodia ofegante do assobiar, caminhante, se impregne no papel onde se vão depositando camadas de palavras, sedimentando, tão desejado propósito de uma mensagem criar, tal rocha viva, algum lar deseja encontrar. Adormecidas, até serem lidas, despertem, no corpo, na mente e na alma, o propósito da sua criação. Compreendidas, entendidas do jeito de cada um, de quem as quiser para si. Entrelaçadas nos sonhos, dispersas numa demorada conversa, possam habitar, de novo ganharem vida, que com vida foram imaginadas e criadas. Que o corpo, a mente e a alma me deixem nelas acreditar, sem me magoar, sem mais nada do que com elas eu falar, assim desejo estar. Pequeno pedaço de papel, a ti me confidencio com este bocado de tinta, pequeninos desenhos vou criando, e todos juntinhos, palavras formando, que desejo agrupar, todas de bem umas com as outras, muitas histórias irão elas me contar, aquelas que quem as criou lhes contou. Ao ouvi-las, sonharei baixinho, com castelos de torres muito altas, bandeiras de todas as cores, desfraldando ao vento que será sempre ameno e macio. Um sono tranquilo se apoderará dos meus sonhos, comigo continuando a sonhar, sempre baixinho.


28 de Novembro de 2012            

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A mina dos "Moiros"




A mina dos “Moiros”

                Contadas de gerações em gerações, todas as terras guardam as suas lendas. Numa terra com uma história já muito antiga, essas lendas ganham vida nas descrições orais que se ouvem dos mais antigos. Depois, é a imaginação de cada um que a faz acontecer, tornar-se real nesse mundo imaginário que sempre guardamos. De um tempo que o tempo há muito deixou longe, a perder-se nas memórias, não se sabendo ao certo quando começou. Mas são lendas que aquecem a alma dos que em redor de uma fogueira se juntam para aquecerem o corpo. Contadas de um jeito especial por cada um, que um dia também a ouviu, vão alimentando o gosto natural pelo mistério, pelo desconhecido. E sabem tão bem, quando se prolongam noite dentro, ou num outro tempo qualquer. E se for mesmo verdade? E se ainda lá estiver a grade de oiro que os mouros esconderam no fundo de um “poço” do rio Arda ou no rio “Mau”? E se a mina ainda guardar todos os tesouros que decerto esses povos antigos possuíam? E se a “Moira encantada” nos aparecer, como será ela, que nos fará? De um arrepio na alma, passamos logo a imaginar, a desejar que tal nos suceda. Seja lá como for, não temos medo de nada, nesse imaginário que nos invade, nos toma no todo.
                A mina dos “Moiros” fica perto do rio arda, escondida na densa floresta, para que ninguém a ache. Ali se escondeu, fugindo de todos os olhares curiosos, da malvadez que pudesse acontecer de um estranho, movido pela ganância, a despojasse de todos os seus tesouros. Assim sempre tem sido, tesouro escondido, a mente imaginando, a alma alimentando. Mas neste concelho de Arouca existem várias minas dos “Moiros”. Escavadas na rocha dura, com uma entrada sempre estreita, suscita muita curiosidade o local onde foram construídas. Não existindo vestígios de campos de cultivo por perto, se não eram para obter água, com que propósito foram construídas? Conta a minha mãe que existe uma que fica perto de um caminho que costumava percorrer, entre Carvalhal Redondo e Arouca, por entre as montanhas, lá no alto de uma. No exterior existia um pequeno quadrado de terreno onde apenas cresciam fetos. Diziam que era uma eira onde os “Moiros” costumavam assoalhar o oiro. Quando criança, com os seus doze anos, lembra-se de atirarem pedras para o seu interior e de se ouvir um barulho como a “tilintar”. Corriam, a sete pés, não vá a “Moira” encantada acordar e os levar. Esse barulho era atribuído ao som que as pedras faziam ao bater no oiro lá guardado. Mesmo com tanto mistério, ninguém se aventurava muito no seu interior. O medo era maior que a curiosidade.
Ao ouvir estas histórias em miúdo, ficava a imaginar uma forma de descobrir, desvendar o mistério envolto nessa “mina encantada”, a mina dos “Moiros”. - Os seus tesouros tenho que encontrar. Enquanto não adormeço, vou imaginar a loucura que seria nela entrar. Percorrê-la no seu todo, seguir com os meus olhos o trabalho que alguém teve ao escavar a rocha dura, abrindo caminho no interior da terra mãe. Quero ir devagar, com companhia para não me assustar, um par de lanternas para que a luz ilumine os passos do meu olhar. Mas tem que ser tudo bem pensado. Vou reunir o meu grupo de amigos, o grupo de aventuras (da adolescência). Ver quem vai à frente, quem fica na entrada. O melhor é levar uma corda muito grande, amarrar-se a ela enquanto nos vamos aventurando no seu interior. Temos que combinar sinais para que se alguma coisa correr mal, os que ficaram à porta nos possam puxar. O melhor é ser de verão, logo pela manhãzinha. Os dias são mais longos, a luz é mais intensa. Bem agasalhados, com um capacete e óculos de protecção, botas resistentes, luvas nas mãos, lá iremos nós. Não vamos falar no assunto a mais ninguém. Será um segredo só nosso. Assim, se encontrarmos algum tesouro, será só nosso. Ficaremos tão ricos que poderemos fazer tudo o que nos apetecer. Já não vamos precisar de ir à escola ou trabalhar. Vai ser só brincar, outras aventuras imaginar e realizar. Iremos ser senhores de todas as minas dos “Moiros” que existirem. Valentes, destemidos, enfrentaremos com coragem todas as “Moiras encantadas” que se revelarem. Enamorados seremos da sua beleza, da sua magia, do seu encanto, tal sereia que nos encanta, nos enfeitiça. Deixaremos que nos leve de volta no tempo, ao seu tempo. Manter-nos-emos todos juntos, bem pertinho um dos outros. Assim não teremos medo, nada nos assustará, nos intimidará de prosseguir. Mas temos que nos despachar, não vá em casa sentirem pela nossa falta. Não podemos demorar todo o dia. Era o bem bonito, se há noite não aparecêssemos. O melhor é ser ao domingo. Dizemos que vamos fazer um piquenique junto ao rio Arda. Todos os preparativos têm que ser feitos durante a semana, às escondidas. Vamos guardar tudo bem escondido, não podemos alertar a curiosidade de quem quer que seja. É um segredo só nosso.
                A corda já sei como vai ser: levamos as três cordas de carro de bois que cada um tem em casa. Depois, é só amarrá-las umas às outras, e já está. As botas serão as galochas de borracha que existem em casa para regar. As luvas depois vai-se ver. Se não houver, não faz mal, assim como o capacete e os óculos de protecção. São apenas pequenos pormenores, nada que nos faça demover. É preciso pensar se o ar é respirável ou não. Vamos levar uma candeia, daquelas que ainda existem por lá, em algum sótão. Se ela se apagar, é porque não há oxigénio. Assim é muito simples, não vá “o diabo tecê-las”. Como planeamos passar lá todo o dia, levamos um pequeno farnel, qualquer coisa que se arranje lá por casa. Vamos estar tão ocupados que nem tempo vai haver para pensar em comida. Em menos de uma hora chegamos lá. Vamos pelos carreiros que é mais rápido. A descer não custa nada. O pior vai ser à noite, quando regressarmos. Mas por agora não vale a pena pensar nisso. Lá dentro vamos caminhar devagar, ver bem antes de dar o passo seguinte, não vá existir algum poço e cairmos lá. Se tiver poços, temos que arranjar paus para passar por eles. Uma mina assim deve ter muitos esconderijos lá dentro, sendo ela também já um esconderijo. Aposto que encontraremos de um lado e do outro, minas mais pequenas, filhotas da mina mãe. Mas primeiro, vamos desvendar a principal, ver onde nos leva. Deve terminar numa enorme “sala”. Um espaço enorme, cavado na rocha dura, mais alto que a mina. Em redor, um degrau acima do salão enorme, inúmeras minas mais pequenas que seriam os aposentos individuais de cada um. Ao centro, uma enorme mesa redonda, talhada de uma grande tronco de castanheiro, para durar mais. Os bancos devem ser feitos de troncos redondos, mais finos, com uma cavidade escavada neles, para serem mais confortáveis. Mas como será que iluminam os seus aposentos? Haverá alguma abertura até ao exterior? E para se aquecerem, poderão fazer fogueiras? E para onde iria o fumo? Agora tudo começa a ser mais difícil de prever, de imaginar. Para haver uma abertura, seria estranho, como é que a conseguiriam fazer até ao topo do monte? Não podemos esquecer que a mina deve ser muito comprida. E quanto mais comprida, maior a distancia até ao cimo do monte. A não ser que atravessasse o monte de um lado ao outro. Seja lá como for, depois se verá. E os tesouros, onde estarão escondidos? Numa dessas minas pequenas, debaixo do tronco enorme que fazia de mesa? E como será ele? Muitas peças trabalhadas em ouro, de todos os tamanhos? Temos que pensar bem antes de o trazer, onde o vamos guardar. Se alguém desconfia, vai ser o cabo dos trabalhos. O segredo tem que ser absoluto. Nenhum de nós pode piar. Se calhar, temos que o guardar até sermos grandes e sabermos o que fazer com ele. Vai ser uma chatice descobrir assim um tesouro e não podermos fazer nada. Para ninguém desconfiar de nada, temos que continuar a ir à escola, a trabalhar. Porra para o tesouro da “mina dos Moiros”. Bem vistas as coisas, vai ser uma dor de cabeça. E se for muito grande e pesado, como é que o vamos trazer para o lugar, onde o vamos esconder? Já sabemos andar com os bois ao carro, mas como é que vamos explicar que precisamos de levar os bois para perto do rio arda? Os nossos pais vão achar que estamos malucos, seja lá a desculpa que inventemos. Que raio, cada vez está mais complicado. E eu a pensar que o mais complicado seria entrar na mina escura e húmida. Isso até é fácil, assim como descobrir o tesouro. O pior mesmo é transportá-lo para nossas casas, guardá-lo em segredo até sermos grandes. E se alguém descobre, e nos rouba? Não podemos dizer que nos roubaram, ninguém ia acreditar. E se fossemos à guarda, ainda íamos presos por nos termos apoderado de um tesouro que não era nosso. Estamos tramados, estamos por nossa conta. Somos uns poucos, mas ainda muito franzinos. Se nos derem uma carga de porrada, fugimos logo para casa, sem saber o que fazer. Bom, isto está mesmo complicado. Pensando bem, o melhor é deixá-lo por enquanto lá escondido. Como ninguém o descobriu ou teve a coragem de o ir procurar até hoje, mais meia-dúzia de anos não faz diferença. É, o melhor mesmo é não contar nada ao grupo; pelo menos por enquanto. Ainda começavam todos a contar tudo sobre o tesouro: ia ser o cabo dos trabalhos. No outro dia estaria lá todo o lugar há procura. Ia ser o bem bonito, levarem-nos o tesouro que era “nosso”. Não, está decidido. Desta maneira é que não pode ser. Pensando bem, o melhor é eu manter o segredo. Quando já for um rapaz crescido é que irei contar a todo o grupo. Por enquanto não penso mais nisso. - E assim adormecia, pequeno sonhador.        A mina dos “moiros” continua lá, cheia de mistério, cheia de tantos “tesouros”.
25 de Novembro de 2012

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A partida









A partida

Da partida,
não lembro a despedida.
Da partida,
sem  mágoa, não sofrida.
Da partida,
nada sei, nada disse, nada...
Uma partida feita na ausência,
por não haver reencontro.
Tudo ficou, sem movimento,
sem haver tempo.
Ficou no passado, sentimento,
existindo, esperando em vão,
pelo regresso dos que não estão.
Se meus passos os teus reencontrassem,
se nossos passos esse tempo desvendassem.
A dor é imensa pelas palavras que não disse,
pelo carinho, que não é meu, e em mim ficou.
Apaixono-me toda a vez que lembro,
que esse sonho torno real dentro de mim.
Como se aqui estivesses, tocando teu olhar,
segredando o meu sentir, poder-te amar.

Terça-feira, dia 6 de Novembro de 2012

Acordar








Acordar

Que poderei eu dizer,
Que poderei eu fazer,
caminhando, segredando,
confidências em mim.
Que poderei eu almejar,
 meus passos caminhando,
tentando descobrir o caminho,
que te traga de volta, sonhando.
Na noite dos tempos adormeço,
sonhando, desejo de amar.
Esperando que o tempo aconteça,
que contigo eu aconteça, renasça,
acorde, continue o sonho sonhado.
Exausto meu corpo sinto, minha alma,
Todo o meu ser em pranto está,
deste meu constante acordar,
sem nunca te reencontrar.
Poderei um dia acordar,
sem de ti me lembrar?
Se nunca te poder reencontrar,
quero-te  para sempre recordar.


Quinta-feira, dia 08 de Novembro de 2012

Sofrendo






Sofrendo
Uma certa nostalgia no pensar,
um desejo de continuar a procurar.
Pela penumbra da madrugada
a sonhada boneca, minha amada.

Desejo que o desejo se afaste,
Que me deixe só, sozinho.
Não quero percorrer esse caminho
Com medo que ele me desbaste.

Quero-me preservar, sem empalhar
a vida que em mim acontece.
Quero de tantos jeitos amar
quem junto a mim adormece.

A todos os sonhos sonhados,
dormindo ou acordado estando,
suspiro da aflição que me vão causando,
de tanto os querer sem ferir meus amados.

Deste pecado que atormenta o sonhador,
vivo e alimento,  sem sequer saber se  quero,
o desejo de desejos sentir a dor,
aguardando a chegada de quem espero.

Tormento que me invade e a alma conquista,
todo o meu ser, assim estou acorrentado.
Da dor do desejo continuo, sem que desista,
sem que procure libertar-me, enamorado.


Segunda-feira, dia 05 de Novembro de 2012

Tempo







Tempo

Tu, tempo,
senhor de todos os ventos.
Tu, tempo,
senhor de todos os sentimentos.
Tu, tempo,
encarecidamente te desejo ter.
Só tu, tempo,
meu senhor és, do meu ser.
Apenas tu, tempo,
em mim fizeste tudo acontecer.
Espero por ti, tempo,
para ver acontecer meu sonhar.
Apenas tu, tempo,
poderás meu sonho imortalizar.
Só a ti, tempo,
te peço, te suplico, imploro,
leva-me de volta, a quem adoro.
Prostrado por terra, te suplico,
que minha alma contigo leves.
Que tudo aconteça em ti,
que em ti tudo guardes,
no tempo, intemporal.


Quinta-feira, dia 08 de Novembro de 2012

Triste sonhador







Triste sonhador


Triste sonhador sinto que sou,
lamentos da alma, adormecida.
Um acordar, do sonho que sonhou,
da memória, vivida e não esquecida.

Reúno retalhos de momentos vividos,
manta de farrapos que procuro fazer,
sem arte, apenas um sentido querer,
dar vida, dar corpo e alma, aos adormecidos.

Percorro devagar os caminhos de ontem,
no desejo de os encontrar, imaginar.
São olhares de afecto, as mãos sentem
caricias, rostos para todo o sempre amar.

Mas sente que tudo mudou, passou.
Procura mas sabe que não encontrará.
Sonha, mas sente que apenas o será,
há muito que partiram, os que amou.

Inventa novos caminhos, observando
o romper da aurora, um novo querer.
Ergue-se em direcção à luz, sonhando,
desejando encarecidamente adormecer.

Quarta-feira, 14 de Novembro de 2012


Pequena


Pequena

Para ti, delicado rosto sorridente,
um falar dócil, alegre e envolvente.
Para ti, que nunca esqueci, brincando
Cabelo de oiro, olhos de mar, sonhando.

Ficou a meninice no tempo parada,
Quase perfeita, na memória guardada.
Nada mais deseja, mais anseia,
apenas assim, pequena sereia.

Uma parte real, outra apenas imaginação.
Terna e eterna a saudade, do sonho criação.
Se o sonho é vida, nele desejo permanecer,
existir infinitamente na memória, não esquecer.

Sábado, 27 de Outubro de 2012



Pensando


Pensando
Agora que aqui estou, pensando,
tentando achar algo que procuro,
só encontro o que não procuro,
só procuro o que não encontro.

Erguem-se os estandartes, bem alto.
Firmes estão junto ao tronco exausto,
que se mantêm firme até desfalecer,
por entre as espadas, até morrer.

De um singelo propósito não ouso revelar
a vida que na alma habita, de forma discreta
aos olhares indiscretos que a ameaçam.
Por medo, por insegura se sentir, por lá fica.

São eternas ternas recordações que teimam
contra a vontade do destino viver, permanecer.
Estranho todo este sentir e não descobrir
se alimento ou veneno o é para a alma.

Sem propósito algum aqui me encontro
rabiscando pedaços de papel, pedaços.
Estranha a melodia que não se afasta,
nefasta por tão incontornável envolvência.

Todo o acontecimento me parece trivial,
pouco ousado, nada criativo, o ir mais além.
Passadas diferentes preciso para caminhar
outros mundos, outros tempos, ousar sonhar.

Sexta-feira, 12 de Outubro de 2012

Nostalgia


Nostalgia


Não posso dizer que se apagou
tão inocente desejo de te ver.
Não posso afirmar que findou
a paixão de, no meu olhar, te ter.

Nos tempos de uma criança
inquieta, apaixonada, existes.
Envolta em mistério, esperança,
que em meu ser sempre vives.

Dor só por não sentir teu olhar,
teu singelo estar, contigo falar.
Diluindo-se nos tempos passados,
regresso imaginário, passos amados.

De cabelos macios, face enternecedora,
desejos contidos, teu sentir buscando.
Recordação amada, idolatrada, sonhando
o reencontro com a  menina encantadora.

As flores que nunca te dei
hoje mesmo as colherei.
No sonho te reencontrarei,
somente apenas te amarei.


Terça-feira, dia 06 de Novembro de 2012

Intemporal


Intemporal
Concebido, não criado,
fora do tempo, intemporal.
Existência imaterial, sonho,
desvario da mente, imaginado.

Prolonga-se na sua plenitude,
imortal por nunca ter ganho vida,
apenas sonhado, não criado,
será sempre tão amado.

Recordado infinitamente, ser
adormecido no colo, guardado.
Entre afagos, eterno, acariciado,
protegido para nunca te perder.

Melancolia extasiante, melodia perfeita,
em ti sempre adormeço, me embalo,
por entre as nuvens que pairam,
apenas para me susterem, baloiçam.

Toco-te, afago-te contra o peito, em ti
me deleito, me enamoro, tal paixão, tal o desejo
de sentir teu coração palpitando, junto com o meu,
em uníssono, como um todo, que eu nada sou.

Só o tempo dirá, será senhor,
de ti, intemporal sentir, amor
platónico, sentido com todos os sentidos,
guardo-te nas memórias dos momentos vividos.

Quarta-feira, dia 07 de Novembro de 2012

Moleira e padeira


Moleira e padeira

Devagar desce a encosta,
com o saco à cabeça.
Devagar, não aconteça
Trambolhão de que não gosta.

Devagar, mas tão ligeira,
sempre com muita canseira.
O saco de grão de ouro,
um valioso tesouro.

O  carreiro é bom caminho,
até ao rio, ao moinho.
Grão de ouro para relar,
em pó de prata ficar.

Despeja o saco do milho,
Para o encher com farinha.
E regressa depressinha,
para dar o pão ao filho.

Suas mangas arregaça,
vai farinha peneirar.
Com água quente se amassa,
depois fica a “levedar”.

Toda juntinha ali fica,
com  a Cruz talhada à mão.
A Deus reza uma oração
para que dê vida, pão.

O forno vai aquecendo
Com lenha que vai ardendo.
Não tarda a barriga encher,
e ricas broas cozer.

A massa toda rachada,
hora de ir para a escudela.
Vira, rebola e agrada,
para a pá, forno com ela.

Bem alinhadas estão.
Fecha-se a porta, senão
calor foge, sem cozer.
É só esperar até ver.

Daqui a pouquinho, a nada,
Abre a porta, encantada.
Tostadinha, que riqueza,
Vamos todos para a mesa.

O moinho de água, no fundo da encosta, junto ao rio. Ficava depois da levada onde se captava a água para o fazer girar. O grão de oiro, depois da espiga malhado, era estendido em eiras, ao sol, para secar. O pão que um dia foi grão, foi semente, semeado na terra lavrada. Nasceu e, com muitos cuidados e canseiras, cresceu. Virou “homem de barba escura”, amadureceu. Depois, foi colhido, desfolhado e no canastro guardado. Viria a cair na eira soalheira, para com os manguais ser do casulo retirado. Ainda “verde”, ao sol andou a secar. Limpo as vezes que foi preciso, pelo crivo ou pelo “erguedor”, nas caixas de madeira foi guardado. Depois viajou dentro do saco, em cima da cabeça do moleiro ou da moleira. No moinho, muito girou, até que em farinha ficou. Regressou a casa, onde foi amassado; de seguida, levedou e para o forno se encaminhou. Em ricas broas de côdea tostadinha ficou; no centro da mesa, a tantos alegrou.  

Homenagem ao moinho de “rio mau”, onde, em pequeno, fui muitas vezes levar o milho para moer e a farinha de volta trazer. Hoje, é apenas um monte de escombros, fruto da “ingratidão” dos homens da minha geração. Gostaria de o ver restaurado, a funcionar. Mas eu sei que é muito dispendioso, dizem não valer “a pena”. O que é que hoje “ vale a pena”?

Terça-feira, dia 13 de Novembro de 2012 

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

" Os nossos pecados"




Sempre que algo de ruim me acontece, tenho por hábito interrogar o “Deus” em que acredito, em que tenho fé, o porquê de tal me suceder. Numa pequena reflexão interior, vou invocando meu ser e viver, procurando argumentar a todo o custo, não merecer tal “castigo”. São horas de aflição, muita angústia, implorando misericórdia. Serei eu imparcial nesta meditação? Saberei ver-me interiormente à luz dos ensinamentos que fui adquirindo? Não tentarei esconder os meus pecados, disfarçar os meus erros? Porque preciso destes momentos de sofrimento para Dele me lembrar? Será que apenas O convido a entrar na minha vida nestes momentos, esquecendo-me Dele nos dias de festa e algazarra? Serei assim tão hipócrita?
Neste pequeno momento da minha vida, da sempre pequena vida que cada um tem, aqui me encontro tentando fazer um “acto de contrição”. Já não me lembro da última vez que me fui confessar, comungar. Não percebo o que me impede. Meditando, tentando compreender-me, sinto uma pequena revolta do medo que sinto em minha vida partilhar, meus sentimentos do que acho que errei, desvendar. Como se isso fosse possível à luz de Deus. Então, se o faço, é dos homens que eu temo? Será suficiente este meu arrependimento interior, pensado e meditado, acreditando que com Ele estou a partilhar, ser suficiente para que me perdoe? Ingenuamente acredito que sim. Sempre que medito, pequenas reflexões interiores, acredito que com Ele partilho, num acto de vontade própria, de imensa necessidade. Frágil me sinto nesta condição humana de existir. Uma condição que eu quero sentir diferente quando Nele acredito. Recuso-me a aceitar que sou apenas um naco de matéria que se desloca neste universo, que parece não ter fim. Quero sentir que sou mais que matéria, quero desesperadamente sentir algo “Divino” na minha existência. Não procuro a imortalidade na matéria, apenas que a minha existência tenha um sentido maior que a simples condição de mortal. Será pecado este meu desejo? Não procuramos todos um pouco de imortalidade em todos os dias da nossa vida? Acredito que talvez seja o nosso “pecado” maior, esta necessidade de nos sentirmos imortais, mais que não seja, por pensarmos que um dia por alguém seremos recordados.
Das obras que achamos nossas, vemos pela vida fora a sua vulnerabilidade, a sua condição de “criaturas mortais”. Se um dia uma casa construímos, fruto de um sonho que o suor tornou realidade, poderemos assistir ao seu desmoronamento para uma outra obra, de outro alguém, ai ser construída. Há pouco tempo, eu, o meu irmão e o meu cunhado, falamos em retirar a ramada do campo do “Sub-Rego”. A vinha já há muito que deixou de ser rentável, não há quem queira ou consuma o vinho verde que na casa se produz. Por esse motivo, achamos que como ela já estava “velha”, o melhor era retirar tudo, e guardar os esteios e os ferros dessa ramada. Assim deixávamos o campo mais liberto para as outras culturas. Pensar pensamos, mas esquecemos a parte mais importante:
- O que é que ides fazer? Deixai lá estar a ramada, que está muito bem! – Foram estas as palavras do meu pai. Olhando-o, sentindo a sua fragilidade face às mudanças, com os seus setenta e cinco anos, sentimos um arrepio na alma. Aquela ramada fora construída com tanto esforço seu e da minha mãe, e agora nós só pensávamos em deitar abaixo. Como já tínhamos cortado as videiras, acabamos por retirar toda a lenha delas dos arames. Como esses arames estavam desfeitos, também os retiramos. Os esteios continuam lá com as suas vigas de metal, para que, se alguém assim o entender, a reactivar novamente. Até já pensamos, em conversa com o meu pai, que um dia, para quem ela ficar em partilhas, poder lá plantar uma ramada de “quivis”.
Esta pequena passagem deixou todos a pensar. Como a vida tem destas ingratidões. Ver com os nossos olhos, todo um trabalho de uma vida a cair por terra. Não foi difícil de imaginar o que lhe ia na alma: na alma do meu pai e logo de seguida na nossa. Este descuido nosso, esta falta de sensibilidade, alertou-nos para a vulnerabilidade das nossas obras “físicas”, do sentido de “mortalidade” a que parecem todas estar condenadas. Então o que nos resta, na vida, que possa ser “eterno”? Serão as nossas vivências com todos os que nos rodeiam, que de alguma forma, possam continuar a existir? Serão intocáveis, indestrutíveis, eternas? Talvez mais que uma construção física, sejam os dizeres, os ensinamentos, a memória da alma dos que vamos conhecendo, que um dia se torna eterna dentro da nossa. Não pretendo dizer que as obras ditas “físicas” não tenham o seu lugar. Exemplo disso são os imensos monumentos que continuamos a preservar e a admirar por todo o país, por todo o mundo. Tornámo-los imortais. Mas são obras de uma dimensão colectiva, de uma memória global, marcos da história de uma época, de um povo. As nossas marcas que vamos fazendo, enquanto cidadãos comuns, parecem estar condenadas a uma existência efémera. É neste sentir que eu estou vendo neste momento a realidade, o destino das obras que vou fazendo. Fruto do sonho e do trabalho, já hoje sinto o que um dia virá a acontecer. Não estou a morrer de véspera. Apenas decidi fazer-lhe uma homenagem em “vida”, na sua e na minha. É a pequena casa que eu e a minha esposa desenhamos, e que alguém para “nós construiu”. São os montes que vamos cuidando, o pequeno quintal e as suas árvores, que nos deram o prazer de, por nós, serem plantadas. São os animais que por aqui vão passando, numa vida mais curta que a nossa, e que sempre mantém vivo um certo frenesim, por onde passam, por onde estão. São os montes de pedrinhas pequenas e outras maiores, que vamos apanhando com o balde ou o carro de mão, e as dispomos a um canto do quintal.
Eternas esperam ser todas as vivências que aqui acontecem. Quer no aconchego da nossa casinha, pequenina, tão queridinha, quer no exterior, em redor, no quintal ou no monte. Vivendo intensamente todos os momentos, todos os dias, a vida acontece. Numa alegria contagiante, numa dor mais sentida, no baú sagrado das memórias se vão guardando. Tantas e tantas recordações que não cabem em todos os álbuns, em todas as molduras, de alma viva, que pela casa se encontram espalhadas. Mais do que uma memória guardado em algum registo, fica a certeza que um dia foram eternas, todas as nossas “construções”, mesmo que apenas por um instante. Tudo é eterno enquanto lembrado. Tudo é eterno se fizer parte, por mais distante que seja, de uma caminhada que se prolonga até ao” final dos tempos”. Como um cometa, que pelo universo arrasta a sua cauda, assim nós arrastamos todas as vivências, que se estendem até ao dia da criação. Poderemos dizer que um determinado período da nossa história colectiva se deve retirar do conjunto das vivências, enquanto construção colectiva, enquanto povo, espécie humana, enquanto memória, enquanto conhecimento fruto de toda a aprendizagem, que se foi acumulando, interagindo, dentro da nossa “consciência” colectiva? Acho que não podemos negar, na nossa existência, qualquer período da nossa vida. Podemos afeiçoar-nos mais a este ou àquele, desprezar outros ou mesmo odiar. Mas nada os vai retirar, apenas o esquecimento. E será bom esquecermos os nossos erros, os nossos “pecados”? Saberemos distinguir o bem do mal, se ambos não conhecermos? Muitas interrogações se me levantam. Por certo se a viver continuar, meus pecados irei sempre cometer. Parece ser este o fado que a espécie humana está “condenada”. Por tantas tribulações já passamos, mas a “elas” parecemos sempre voltar. Fruto do esquecimento, ou de uma necessidade que em nós existe. Por toda a história que nos é dada a conhecer, sempre vivemos tempos de prosperidade, depois de mergulharmos na escuridão das noites de guerra, de genocídios, de tantos inocentes perseguirmos, e sob as nossas espadas morrerem. Essa espada que sempre trazemos dentro de nós. Quando não entendida, dominada dentro dos nossos anseios, das nossas ambições desmedidas, horrendas, trazemos à luz da escuridão, o ódio, o desdém por outras formas de existir diferentes da nossa, no pensar e no viver. Tantas vezes julgamos, condenamos o “outro”. Pecadores sempre seremos. Sempre que nos esquecemos dos ensinamentos do nosso Deus, do dom do amor, do perdão. Considero o acto de perdoar o mais nobre dos sentimentos enquanto ser completo, instruído à luz da fé em Deus. Por muito exigir de nós, de uma dor profunda termos de afagar dentro de nós, das trevas fazer brotar a luz, a vida concebida no amor. É-me tão difícil perdoar. Sinto-me tão revoltado, tão confuso quando sinto que o devo fazer. Anseio tantas vezes a vingança. Penso ser essa a única maneira de “lavar” meu sofrimento. Acho-me cobarde se não me vingo, se perdoo. Porque me sinto assim? Será da minha natureza, da cultura que me impregna a alma? Porque não desejo primeiro perdoar, e não vingar?

Segunda-feira, dia 02 de Novembro de 2012