Sempre
acabamos a falar mais do mesmo. Não é um repetir enfadonho, é apenas o
manifestar do que nos preenche a alma. Sentimos essa necessidade, de teimar em
recordar, de dizer vezes sem conta para não esquecer, não esquecermos. Sempre
acrescentamos mais alguma coisa para que a história possa parecer diferente. Um
pormenor lembrado ou imaginado. Feito num tempo próprio, sentido e reflectido à
luz das nossas vivências até então, um sentir do momento, no momento que essa
história contamos. Mas quase sempre essa história é falada sem palavras, apenas
meditada, nascida e vivida no nosso interior. Ousar revelar tais pensamentos é
sujeitar-se, pôr-se a jeito para um mar de críticas, algo que de todo não
queremos suportar. Não que nos atinja de morte, nos roube a vida de querer
continuar sempre a falar, a exprimir esses sentires que nascem dentro de nós.
Não sei ao certo onde, se no coração, no sentir que nos envolve, se no
pensamento, nas nossas recordações. O que somos, ou achamos ser, sempre estará
ligado “à terra” que nos acolheu e por sorte ainda nos acolhe. Essa "minha terra”, de
nome Mansores, será sempre sentida de forma única por cada Mansoreano. É um propósito a
que felizmente estamos condenados. A sua descrição será sempre um retrato
pessoal. Muito mais que as suaves encostas, as pequeninas planícies, os seus
cursos de água, a sua flora e fauna, o casario e seus moradores, os caminhos e
carreiros que nos levam a percorrê-la e a ligam num todo, pelo menos
fisicamente. Se divisões acharmos, serão coisa de gente, não da natureza que me
parece dócil, irregular para não ser monótona. O criador ao desenhar todo este
pequeno pedaço de terra, quedou mais alguns instantes para que a mão não
tremesse, os montes fossem altivos para ao longe se poder avistar, sonhar,
enquanto sentado a contemplar se estivesse. Com alguma facilidade se sobe desde
o rio Arda até ao Castêlo, sem castelo, das “Lameiradas” ou dos ”Pousadinhos”
até à “Bouça” ou até à “Ponte da Cela”, no fim do “Borralheiro”. Digo com
alguma facilidade, mas com algum esforço físico devido ao declive. Mas é
agradável fazer estas caminhadas. Já as fiz mais, quando era rapazola e o grupo
resolvia ir tomar banho ao rio Arda. O nosso mar e praia das férias de verão
eram o rio ou algum curso de água onde desse para chapinhar. Suave ao olhar dos
olhos e da alma, logo da “Boavista” se pode desfrutar de uma pequena imensidão
calma de campos majestosos no seu produzir, de uma bocado de floresta que
emoldura o quadro de um pequeno retrato, sem esquecer os diversos casarios que
mais acima sempre se situam. Este pequeno quadro vivo, está sempre a mudar.
Acompanha as estações, o tempo das ervas verdes e tenrinhas, o tempo de a
colher e seus campos lavrar, de semear o milho, de ver crescer, e, já maduro, de se
colher. As vinhas, dispostas nas tradicionais ramadas para o vinho verde, que
ainda há pouco rendilhavam a orla dos campos, foram na sua maioria retiradas.
Sinal dos tempos, das mudanças dos hábitos de consumo da população em geral e
das exigências do mercado, deixaram de ter o valor de outrora.
Ainda moro no
lugar das Agras, que fica logo a seguir ao da Avitureira, segundo dizem talvez
o primeiro, perto do rio Arda. Sempre gostei muito do meu lugar, como deve
acontecer com todos e os seus lugares. Tendo a nascente como vizinho o lugar da
Avitureira, estende-se no cimo de uma pequena encosta, virada a Sul, virada
para os seus campos de cultivo. Mais ou menos a Oeste fica o lugar da estrada e
completando, nas suas “costas”, a Norte, a floresta que se estende até à
próxima Freguesia, a de Escariz. Desde muito cedo, como acontecia a quase todos
no lugar, ajudávamos nas lidas do campo enquanto dávamos os primeiros passos na
escola. Da convivência desse tempo e da de hoje, não sinto grande diferença no
povo, na sua forma de pensar e agir. Preocupados com a sua subsistência, sempre
existiram alguns conflitos ou por causa da água para regar, da servidão de um
caminho para o monte ou para os campos, mas sempre pequenos. No passado como
hoje, continuo a sentir muita dificuldade na realização de certas empreitadas
em conjunto. Noto que ao longo dos tempos muitas obras de vital importância
para o desenvolvimento e sustentabilidade da prática agrícola, e não só, não se
realizaram por não haver consenso. Existe muita dificuldade em ver mais além,
preparar o futuro colectivo. Um certo estigma se mantém de uma forma de pensar
egocêntrica que impede a realização de projectos importantes, senão mesmo
essenciais, para o futuro das novas gerações. Neste aspecto penso que partilham
um sentir que é de cariz nacional. A nossa mentalidade, forma de estar e
encarar a vida e os seus desígnios, impede-nos de acreditar no associativismo,
no confiar nos outros para se resolverem ou participarem em projectos que
necessitam da adesão de várias pessoas para se tornarem exequíveis, viáveis.
Não vou citar exemplos práticos para não ferir quem quer que seja. Apenas este
é o meu sentir enquanto morador desde que nasci, já lá vai o ano de 1966 (de
boa memória para os amantes da selecção nacional, e para os Benfiquistas em
especial e a sua pantera negra, Eusébio).
As mudanças
levam o seu tempo, geralmente só acontecem nas gerações a ”seguir”. O que
pretendo dizer, é que é muito difícil ver alguém a mudar a sua forma de estar e
sentir as “coisas”, mudar mentalidades. O morador “tradicional”, na sua maioria,
mostra muita relutância às mudanças, não as encara com bons olhos. Isto é
sempre mau, seja em que época for. Mas, nestes tempos que vivemos, em que as
mudanças são a cada instante, não as acompanhar é hipotecar tudo, o seu futuro
e o dos seus “herdeiros”. Embora sinta que uma grande parte das novas gerações
pense diferente, mais aberta, mais conhecedora de toda a realidade, mais
instruída, ainda sinto que pode não ser o suficiente. Não que eu não queira
acreditar, contribuir também para essas mudanças que julgo positivas. O que
vejo, o que me é dado a perceber, muitas iniciativas dos jovens esbarram na
“teimosia” dos velhos do “ Restelo” que teimam em fincar o pé, não aderir e
muitas vezes fazer de oposição. Eu sei que determinadas atitudes, comportamentos,
gostos, se educam em pequenino. Não existindo esse hábito, tudo se torna mais
difícil. Se acrescentarmos a isto uma doença crónica de refutar a mudança,
nada de bom se agoira. Não quero profetizar o que quer que seja. Este meu
sentir não me agrada nada. Oxalá que seja apenas ilusão deste meu
olhar. Mas mesmo pensando e sentindo assim, vejo alguns sinais que me agradam. Mansores
continua a despertar a saudade dos que um dia tiveram que partir. Mesmo longe,
nunca deixaram de amar esta terra que continuou a ser sua, sua amada. E quando
se ama, quer-se bem, a saudade nunca adormece. Esse amor transforma-se em
regresso, em obras que a Freguesia engrandecem. São muitos os exemplos desta
ligação amorosa que os “nossos” emigrantes “teimam” em manter com a sua adorada
terra. Mansores vive e ganha vida neste confluir de esforços dos que por cá
moram e dos que nunca a esquecem. O concelho de Arouca, como acredito que todos
os Concelhos rurais, mantém esta magia de se ligar eternamente aos que aqui
nascem e a muitos que por aqui passam e se enamoram, se apaixonam. E como é bom
ver todas estas paixões quando a “terra cresce”, se enche de nostalgia com o
seu regresso, mesmo que sazonal. Terra altiva no seu olhar, de onde se
contempla a Freita, sempre majestosa, é vista e sentida por muitos um lugar
paradisíaco para se habitar, o corpo e a alma descansar. Apesar de ligar ainda
muito a uma forma “antiga” de pensar, o seu povo é amistoso, trabalhador,
muitas vezes “palrador”. Gostaria que Mansores não fosse só conhecido por
“lendas de escárnio e maldizer”. Considero que faço parte de um povo simples,
mas honesto e trabalhador. Se alguns exemplos existem que me contradizem, são
maiores os exemplos de gente boa, altiva e nobre no seu pensar e viver que eu sinto
existir. Muitos dos que por cá moram e dos que partiram, são exemplos de
grandeza pessoal que vai mais além das fronteiras da Freguesia. Quem percorrer
com alguma sensibilidade os poisos deste povo, descobre muitas individualidades
que se destacam pelo mundo fora na sua forma digna de viver e construir obras
nos mais diversos sentidos. Mais uma vez me renego a citar nomes, mas ainda há
pouco tempo descobri um exemplo que me gratifica enquanto Mansoreano. Eu
defendo, talvez por assim o ser, que não é condição essencial ter formação
académica para se visionar e obra fazer. Que ajuda imenso, que dá mais valia,
todos estamos de acordo. Mas nem todos temos essa oportunidade na vida. Um
número significativo dos moradores da geração dos meus pais não sabe ler nem
escrever. Por dificuldades económicas nunca tiveram essa oportunidade. Mas
mesmo assim sempre foram um orgulho para a Freguesia enquanto gente honesta e
trabalhadora, visionários do futuro não se pouparam a esforços para melhorar a
educação dos seus filhos, proporcionando-lhes a oportunidade do conhecimento
que a escola nos transmite. Ainda hoje vejo a maioria dos casais a fazer o
mesmo. Desta nova juventude com boa formação escolar, espero ainda ver algo de
muito enriquecedor na parte humana a acontecer. As rivalidades antigas entre os
lugares vai-se desvanecendo, dando lugar a uma convivência mais saudável, mais
enriquecedora para todos. Partilhando a mesma terra, é mais que natural que os
nossos esforços sejam o de criar a cada instante um viver no presente mais
estável para se poder almejar o futuro com optimismo. As dificuldades sempre
existirão. O caminho sempre terá as suas “pedras”. O melhor é fazer como o
Poeta, “que as recolheu todas para mais tarde fazer um castelo”. Que as “lendas
do mar de Mansores” não precisem de ser esquecidas para que os seus propósitos
não tenham razão de existir. Somos um povo simples, mas não “simplório”.
Sabemos da luta que temos para a vida levar, dos “tesouros” que a nossa terra e
as suas gentes tem para preservar. Seremos seus guardiões até ao findar dos
tempos. Uma terra que consideramos nossa mas que a todos, que por bem a
queiram, se dá, a todos anseia acolher no seu regaço, tal mãe que seus filhos
ama e a amam. É este o meu sentir do que esta terra é para mim. Do que sou e
desejo acolher, do que desejo ter para dar. Não busco nas palavras
misericórdias dos que dela, da nossa amada freguesia de Mansores, escarnecem e
ao seu povo pretendem ferir de morte no seu orgulho. Nunca me senti incomodado
pelo contar desta ou doutra lenda do “mar de Mansores”. Apenas me entristece
quem a mim me dirige a palavra com tão malfadado propósito de nessas lendas
invocar meu ser, como pessoa simples, como motivo para seu escárnio me dizer.
Como eu admiro as gentes simples e puras no seu viver, no seu pensar. Como acho
nobre não se precisar de escarnecer de outrem, para se ser altivo no ser e viver.
Mais do que as
recordações, é hoje o conviver com as novas gerações que de alguma forma me faz
acreditar. Saber que quando se ausentam, à espera de voltar sempre estão. É uma
nova gente, como eu também fui, fiz parte noutro tempo. É nesta renovação
constante de gerações que a nossa linda terra absorve a sua vida, continua
viva. Enamorados sempre sejamos, nós e a nossa fecunda terra. Uma paixão que
perdure, mesmo longe dela. Somos um pequeno “povo” que ama a sua terra, que
labuta para a merecer. Se um desejo pudesse pedir, nada mais que poder para
sempre aqui viver e laborar, em suas encostas pousar o meu olhar. Nas conversas
com os vizinhos buscar inspiração para a poder descrever em verso ou prosa,
minha querida e sempre altiva, “terra de
Mansores”.