segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Mansores, apenas um sentir



Sempre acabamos a falar mais do mesmo. Não é um repetir enfadonho, é apenas o manifestar do que nos preenche a alma. Sentimos essa necessidade, de teimar em recordar, de dizer vezes sem conta para não esquecer, não esquecermos. Sempre acrescentamos mais alguma coisa para que a história possa parecer diferente. Um pormenor lembrado ou imaginado. Feito num tempo próprio, sentido e reflectido à luz das nossas vivências até então, um sentir do momento, no momento que essa história contamos. Mas quase sempre essa história é falada sem palavras, apenas meditada, nascida e vivida no nosso interior. Ousar revelar tais pensamentos é sujeitar-se, pôr-se a jeito para um mar de críticas, algo que de todo não queremos suportar. Não que nos atinja de morte, nos roube a vida de querer continuar sempre a falar, a exprimir esses sentires que nascem dentro de nós. Não sei ao certo onde, se no coração, no sentir que nos envolve, se no pensamento, nas nossas recordações. O que somos, ou achamos ser, sempre estará ligado “à terra” que nos acolheu e por sorte ainda nos acolhe. Essa "minha terra”, de nome Mansores, será sempre sentida de forma única por cada Mansoreano. É um propósito a que felizmente estamos condenados. A sua descrição será sempre um retrato pessoal. Muito mais que as suaves encostas, as pequeninas planícies, os seus cursos de água, a sua flora e fauna, o casario e seus moradores, os caminhos e carreiros que nos levam a percorrê-la e a ligam num todo, pelo menos fisicamente. Se divisões acharmos, serão coisa de gente, não da natureza que me parece dócil, irregular para não ser monótona. O criador ao desenhar todo este pequeno pedaço de terra, quedou mais alguns instantes para que a mão não tremesse, os montes fossem altivos para ao longe se poder avistar, sonhar, enquanto sentado a contemplar se estivesse. Com alguma facilidade se sobe desde o rio Arda até ao Castêlo, sem castelo, das “Lameiradas” ou dos ”Pousadinhos” até à “Bouça” ou até à “Ponte da Cela”, no fim do “Borralheiro”. Digo com alguma facilidade, mas com algum esforço físico devido ao declive. Mas é agradável fazer estas caminhadas. Já as fiz mais, quando era rapazola e o grupo resolvia ir tomar banho ao rio Arda. O nosso mar e praia das férias de verão eram o rio ou algum curso de água onde desse para chapinhar. Suave ao olhar dos olhos e da alma, logo da “Boavista” se pode desfrutar de uma pequena imensidão calma de campos majestosos no seu produzir, de uma bocado de floresta que emoldura o quadro de um pequeno retrato, sem esquecer os diversos casarios que mais acima sempre se situam. Este pequeno quadro vivo, está sempre a mudar. Acompanha as estações, o tempo das ervas verdes e tenrinhas, o tempo de a colher e seus campos lavrar, de semear o milho, de ver crescer, e, já maduro, de se colher. As vinhas, dispostas nas tradicionais ramadas para o vinho verde, que ainda há pouco rendilhavam a orla dos campos, foram na sua maioria retiradas. Sinal dos tempos, das mudanças dos hábitos de consumo da população em geral e das exigências do mercado, deixaram de ter o valor de outrora.
Ainda moro no lugar das Agras, que fica logo a seguir ao da Avitureira, segundo dizem talvez o primeiro, perto do rio Arda. Sempre gostei muito do meu lugar, como deve acontecer com todos e os seus lugares. Tendo a nascente como vizinho o lugar da Avitureira, estende-se no cimo de uma pequena encosta, virada a Sul, virada para os seus campos de cultivo. Mais ou menos a Oeste fica o lugar da estrada e completando, nas suas “costas”, a Norte, a floresta que se estende até à próxima Freguesia, a de Escariz. Desde muito cedo, como acontecia a quase todos no lugar, ajudávamos nas lidas do campo enquanto dávamos os primeiros passos na escola. Da convivência desse tempo e da de hoje, não sinto grande diferença no povo, na sua forma de pensar e agir. Preocupados com a sua subsistência, sempre existiram alguns conflitos ou por causa da água para regar, da servidão de um caminho para o monte ou para os campos, mas sempre pequenos. No passado como hoje, continuo a sentir muita dificuldade na realização de certas empreitadas em conjunto. Noto que ao longo dos tempos muitas obras de vital importância para o desenvolvimento e sustentabilidade da prática agrícola, e não só, não se realizaram por não haver consenso. Existe muita dificuldade em ver mais além, preparar o futuro colectivo. Um certo estigma se mantém de uma forma de pensar egocêntrica que impede a realização de projectos importantes, senão mesmo essenciais, para o futuro das novas gerações. Neste aspecto penso que partilham um sentir que é de cariz nacional. A nossa mentalidade, forma de estar e encarar a vida e os seus desígnios, impede-nos de acreditar no associativismo, no confiar nos outros para se resolverem ou participarem em projectos que necessitam da adesão de várias pessoas para se tornarem exequíveis, viáveis. Não vou citar exemplos práticos para não ferir quem quer que seja. Apenas este é o meu sentir enquanto morador desde que nasci, já lá vai o ano de 1966 (de boa memória para os amantes da selecção nacional, e para os Benfiquistas em especial e a sua pantera negra, Eusébio).
As mudanças levam o seu tempo, geralmente só acontecem nas gerações a ”seguir”. O que pretendo dizer, é que é muito difícil ver alguém a mudar a sua forma de estar e sentir as “coisas”, mudar mentalidades. O morador “tradicional”, na sua maioria, mostra muita relutância às mudanças, não as encara com bons olhos. Isto é sempre mau, seja em que época for. Mas, nestes tempos que vivemos, em que as mudanças são a cada instante, não as acompanhar é hipotecar tudo, o seu futuro e o dos seus “herdeiros”. Embora sinta que uma grande parte das novas gerações pense diferente, mais aberta, mais conhecedora de toda a realidade, mais instruída, ainda sinto que pode não ser o suficiente. Não que eu não queira acreditar, contribuir também para essas mudanças que julgo positivas. O que vejo, o que me é dado a perceber, muitas iniciativas dos jovens esbarram na “teimosia” dos velhos do “ Restelo” que teimam em fincar o pé, não aderir e muitas vezes fazer de oposição. Eu sei que determinadas atitudes, comportamentos, gostos, se educam em pequenino. Não existindo esse hábito, tudo se torna mais difícil. Se acrescentarmos a isto uma doença crónica de refutar a mudança, nada de bom se agoira. Não quero profetizar o que quer que seja. Este meu sentir não me agrada nada. Oxalá que seja apenas ilusão deste meu olhar. Mas mesmo pensando e sentindo assim, vejo alguns sinais que me agradam. Mansores continua a despertar a saudade dos que um dia tiveram que partir. Mesmo longe, nunca deixaram de amar esta terra que continuou a ser sua, sua amada. E quando se ama, quer-se bem, a saudade nunca adormece. Esse amor transforma-se em regresso, em obras que a Freguesia engrandecem. São muitos os exemplos desta ligação amorosa que os “nossos” emigrantes “teimam” em manter com a sua adorada terra. Mansores vive e ganha vida neste confluir de esforços dos que por cá moram e dos que nunca a esquecem. O concelho de Arouca, como acredito que todos os Concelhos rurais, mantém esta magia de se ligar eternamente aos que aqui nascem e a muitos que por aqui passam e se enamoram, se apaixonam. E como é bom ver todas estas paixões quando a “terra cresce”, se enche de nostalgia com o seu regresso, mesmo que sazonal. Terra altiva no seu olhar, de onde se contempla a Freita, sempre majestosa, é vista e sentida por muitos um lugar paradisíaco para se habitar, o corpo e a alma descansar. Apesar de ligar ainda muito a uma forma “antiga” de pensar, o seu povo é amistoso, trabalhador, muitas vezes “palrador”. Gostaria que Mansores não fosse só conhecido por “lendas de escárnio e maldizer”. Considero que faço parte de um povo simples, mas honesto e trabalhador. Se alguns exemplos existem que me contradizem, são maiores os exemplos de gente boa, altiva e nobre no seu pensar e viver que eu sinto existir. Muitos dos que por cá moram e dos que partiram, são exemplos de grandeza pessoal que vai mais além das fronteiras da Freguesia. Quem percorrer com alguma sensibilidade os poisos deste povo, descobre muitas individualidades que se destacam pelo mundo fora na sua forma digna de viver e construir obras nos mais diversos sentidos. Mais uma vez me renego a citar nomes, mas ainda há pouco tempo descobri um exemplo que me gratifica enquanto Mansoreano. Eu defendo, talvez por assim o ser, que não é condição essencial ter formação académica para se visionar e obra fazer. Que ajuda imenso, que dá mais valia, todos estamos de acordo. Mas nem todos temos essa oportunidade na vida. Um número significativo dos moradores da geração dos meus pais não sabe ler nem escrever. Por dificuldades económicas nunca tiveram essa oportunidade. Mas mesmo assim sempre foram um orgulho para a Freguesia enquanto gente honesta e trabalhadora, visionários do futuro não se pouparam a esforços para melhorar a educação dos seus filhos, proporcionando-lhes a oportunidade do conhecimento que a escola nos transmite. Ainda hoje vejo a maioria dos casais a fazer o mesmo. Desta nova juventude com boa formação escolar, espero ainda ver algo de muito enriquecedor na parte humana a acontecer. As rivalidades antigas entre os lugares vai-se desvanecendo, dando lugar a uma convivência mais saudável, mais enriquecedora para todos. Partilhando a mesma terra, é mais que natural que os nossos esforços sejam o de criar a cada instante um viver no presente mais estável para se poder almejar o futuro com optimismo. As dificuldades sempre existirão. O caminho sempre terá as suas “pedras”. O melhor é fazer como o Poeta, “que as recolheu todas para mais tarde fazer um castelo”. Que as “lendas do mar de Mansores” não precisem de ser esquecidas para que os seus propósitos não tenham razão de existir. Somos um povo simples, mas não “simplório”. Sabemos da luta que temos para a vida levar, dos “tesouros” que a nossa terra e as suas gentes tem para preservar. Seremos seus guardiões até ao findar dos tempos. Uma terra que consideramos nossa mas que a todos, que por bem a queiram, se dá, a todos anseia acolher no seu regaço, tal mãe que seus filhos ama e a amam. É este o meu sentir do que esta terra é para mim. Do que sou e desejo acolher, do que desejo ter para dar. Não busco nas palavras misericórdias dos que dela, da nossa amada freguesia de Mansores, escarnecem e ao seu povo pretendem ferir de morte no seu orgulho. Nunca me senti incomodado pelo contar desta ou doutra lenda do “mar de Mansores”. Apenas me entristece quem a mim me dirige a palavra com tão malfadado propósito de nessas lendas invocar meu ser, como pessoa simples, como motivo para seu escárnio me dizer. Como eu admiro as gentes simples e puras no seu viver, no seu pensar. Como acho nobre   não se precisar de  escarnecer de outrem,   para se ser altivo no ser e viver.
Mais do que as recordações, é hoje o conviver com as novas gerações que de alguma forma me faz acreditar. Saber que quando se ausentam, à espera de voltar sempre estão. É uma nova gente, como eu também fui, fiz parte noutro tempo. É nesta renovação constante de gerações que a nossa linda terra absorve a sua vida, continua viva. Enamorados sempre sejamos, nós e a nossa fecunda terra. Uma paixão que perdure, mesmo longe dela. Somos um pequeno “povo” que ama a sua terra, que labuta para a merecer. Se um desejo pudesse pedir, nada mais que poder para sempre aqui viver e laborar, em suas encostas pousar o meu olhar. Nas conversas com os vizinhos buscar inspiração para a poder descrever em verso ou prosa, minha querida e sempre altiva,  “terra de Mansores”.         

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Saudade (a tia Laura)




        O “dia” todos os dias se levanta, acorda. O “dia” que sucede à noite, traz a claridade, a luz aos nossos olhos para o vivermos de uma forma mais visível, mais intensa. O “dia” que também tem a noite. 
  Nascemos num desses dias. Um dia que para sempre será recordado pelos aniversários que irão acontecer, festejados ou não, por vezes até esquecidos. Crescemos protegidos por entre cobertas e cobertores, todos enroladinhos pelos mimos e carinho que nos dão, nos protegem de todos os males. Seremos a alegria e a aflição de muitos momentos que aos outros acontecem. Vamos sempre crescendo, damos os primeiros passos no soalho da casa que nos acolheu, nos acolhe, seguros pelos braços de quem sempre e para todo o sempre nos cuidará, nos braços ou no coração. Enquanto a memória não findar, seremos eternos na alma de quem nos ama. Pequenas criaturas adoráveis em redor da saia de quem nos concebeu. A essas saias nos agarraremos tantas vezes para nos equilibrar, buscar refúgio, parecendo tantas vezes os pintainhos que entre as penas das asas da mãe galinha se escondem, e que deitando a cabecita de fora ficam espreitando o mundo, mas sempre protegidos. Sem sequer poder imaginar o que um dia o futuro nos poderá trazer, vamos continuando a crescer.
      Lembro a tia Laura, apenas pela foto que existe e pelo que a família conta. A tia Laura que um dia, um dia de certeza muito especial, casou com o Sr. Albino, o tio Albino. Da mesma freguesia, das mesmas origens humildes, pobres. De quem sabe que a vida será sempre uma luta diária para existir, buscar um bocado de pão e alguma alegria. Cedo partiram para muito longe. Muito mais além do cume da montanha mais alta que o olhar alcança no horizonte. Angola foi o destino que a” vida quis”. Na época Salazarista, ainda colónia Portuguesa, nunca soube ao certo qualquer pormenor da viagem. O que escrevo é apenas o que sinto do que acho que possam ter sentido. Minto, o que escrevo é o que sinto ao percorrer mentalmente os passos da sua vida. Não sei se o devo. Apenas sinto uma enorme nostalgia quando me recordo de toda a sua história. Nunca cheguei a conhecer a tia Laura. O que sei é apenas o que sinto, algumas passagens que ouço em família. A partida para Angola, o deixar a pequena aldeia à procura do sustento para a família que começava a crescer: primeiro a Amália, depois a Luísa. Primeiro Angola, mais tarde o Brasil  depois de uma pequena passagem novamente por Portugal. Viria a falecer no Brasil muito jovem, antes da sua mãe Ermelinda e seu pai Custódio terem partido. É com um grande aperto no coração que este texto escrevo. Gostava tanto de a ter conhecido. Só tenho a imaginação para tentar acompanhar os seus passos numa vida que me parece ter sido sempre de saudade, de nostalgia. Ao tio Albino ainda lembro algo da sua passagem pela casa dos meus pais, depois de Ela ter partido. Mas não tenho recordação de como Ele realmente era, como sentia, o que pensava. Eu sei que pode parecer cruel, mas gosto de olhar alguém e fazer todo o tipo de perguntas. Sou muitas vezes inconveniente mas não é por mal. Quero tanto descobrir as pessoas no seu todo. Saber o que lhes vai na alma, tudo o que sentem, como tem vivido a vida, os seus sonhos, os seus projectos. O ser humano é muito complexo. Conhecê-lo é uma aventura sempre gratificante. Não gosto de criar grandes expectactivas. Apenas adoro ficar à conversa, perceber todo o seu mundo, compreender, aprender, imaginar o que eu sentiria se pelas mesmas situações passasse. É um pouco como colher o pólen de uma flor e depois fazer o nosso próprio mel. E todas as flores são únicas, do seu pólen sairá um mel único, sem igual. Todas as flores deviam ser colhidas, o seu pólen, e feito o seu mel para partilhar com toda a colmeia. Os tempos eram muito difíceis, como o são em qualquer época para quem é pobre. Tantas vezes precisamos de partir, buscar mais além o que não encontramos onde estamos. Qual sonho seria o de uma mãe com duas maravilhosas filhas para criar? Qual a dor de tantas noites e dias com a incerteza do novo mundo que iria encontrar? O que nos leva a partir? O que nos dá forças para partir? Querida tia Laura, como eu gostava de um dia ter conversado consigo, ser o seu confidente do que lhe ia na alma, das recordações que guardava. Hoje sinto alguma nostalgia por ainda não conhecer mais de perto as suas adoradas filhas, os netos que já cresceram e levam suas vidas num mundo cada vez mais agitado, mais exigente. O que dói mais é esta certeza que tal nunca chegue a acontecer. A vida leva-nos no seu regaço, espalha-nos pelo prado, longe uns dos outros. Nos sentimos como plantas presas às raízes que nos seguram e alimentam da terra mãe. Sem nos podermos movimentar, percorrer o prado em busca da morte para a saudade. Como num sonho em que por mais que se queira não nos conseguimos afastar, fugir, apenas iremos acordar com uma forte angústia, como se a um precipício estivéssemos a cair sem podermos fazer o que quer que seja. 
Só me resta partir nos meus sonhos, viajar de olhos abertos ou fechados, achar dentro de mim o sentir que terá sido o seu. Saudosista, muito. Mesmo do que nunca vivi. Sou assim tantas vezes, tantas vezes choro junto a mim, só. Necessito tanto de o fazer, quero a dor partilhar, o sofrimento sentir, não sou mais do que aqueles que sofrem a dor de ter que partir. Preciso de também partir junto com eles, quero viver a dor de existir. Não aceito ficar acomodado, enquanto tantos meus amados, um dia, tiveram que partir, viagem longa fizeram na procura de um sonho. Gostaria tanto de ter a certeza que o encontraram, que tenha valido a pena a dor da partida, da viagem, do novo viver que começaram. Como será a terra que calcam, o sol que os aquece, a água que os sacia? Perdoai-me por apenas partir na mente, deixando o corpo para trás. Também eu hoje vejo partir. Não sei se também irei partir. São viagens muito curtas, talvez o preparar de uma mais dolorosa que se avizinha. Não certo de alimento para os seus sonhos por cá realizar, começam já a viver a partida. Hoje, é a universidade, sem qualquer garantia de um dia poderem por cá ficar. Somos cidadãos do mundo, partimos cada vez com mais facilidade. Mas, para mim, a dor será ainda maior por serem sangue do meu sangue. Todos os dias que ficar, a portada abrirei logo pela manhãzinha, o dia todo olhando o portão da entrada, da chegada. Sei que ouvir a sua voz, ver a sua imagem de pouco me valerá. Quero respirar o mesmo ar, sentir. 
Hoje, sinto o que não senti quando era miúdo e vi chegar, com seus filhos, muitos pais que um dia também tiveram que partir. Naquele dia, tinham que regressar. Um regresso não programado, à pressa, talvez fugindo. Fugindo de um crime que outros homens cometeram, a guerra propagaram numa terra maravilhosa por natureza. Com as suas vidas organizadas, em família, viram-se obrigados a abandonar o trabalho de tantos anos para proteger os seus tesouros mais valiosos: a vida da família. Não deve ter sido fácil, quer a partida quer a chegada. Regressar às origens, uma terra bonita mas pobre de infraestruturas laborais capazes de assegurar a subsistência quer de muitos que a já habitavam, quer dos que à casa paterna regressavam. Mas a vida é sempre um desafio, um adaptar-se constantemente, mesmo que em pranto, no corpo e na alma. Se um dia saudade  houvera desta terra, seriam agora as da “outra”, que à pressa tinham deixado, a existir. 
Não sei o que será de mim quando a hora de alguém se ausentar chegar. Seja eu ou um dos filhos, não sei a dor que irei sentir. Sou saudosista demais. Não dá para entender. Em 1998 tive a oportunidade de visitar a EXPO 98 com pessoas ligadas à empresa, através da empresa. O que estava programado era ficar lá três dias. Apenas fiquei um, no segundo dia tive que regressar a casa para junto da família. Já com três filhotes, não consegui estar mais tempo longe deles. Não sei não como vai ser no futuro. Sei que a todos custa. Sei que se tiver que ser vou-me adaptar. O que me traumatiza mais é esta forma provinciana que tenho da vida. Não é boa nem má. Apenas o é. Como qualquer outra forma de estar na vida. Não sei o que me parece viver sempre de lado para lado, deixando retalhos da vida por todo e qualquer lugar. As memórias serão muito ricas na diversidade, de um sentir sempre mais intenso devido a tantas partidas e tantos regressos ou a um novo destino chegar. Se a família vai "toda", juntos", deve ser mais fácil de a dor suportar. Decerto também aumentam as preocupações para a todos proporcionar as melhores condições de vida. Quando os filhos já nos acompanham, teremos sempre de pensar em tudo, com mais cuidado devido à sua maior fragilidade, vulnerabilidade que possa existir. Acredito que as crianças se adaptem melhor, consigam integrar-se mais facilmente. Das poucas memórias que ainda guardo do tempo em que ao lugar regressaram ou vieram os que tinham emigrado para Angola ou Brasil e os filhotes, que no percurso da vida lá tinham nascido, quase todo o tempo vivido, ainda lembro de algumas brincadeiras. Brincadeiras simples, como todas as crianças. Recordo quem uma vez me ensinou a fazer um copo com uma folha da árvore que ainda existe no adro da capela e que dá uma flor que chamamos de tília (faz um bom chá). De um dia ter escrito um poema que foi colocado na parede da escola primária, junto com uma menina muito bonita. 
Serão sempre recordações, enquanto lembradas e sentidas forem. É estranho quando alguém me fala de algo que aconteceu no passado e não consigo me lembrar. Acontece muitas vezes. Fico triste de não conseguir chegar a todas as minhas memórias. Se eu não conseguir de todo me lembrar, não tem muito significado para mim. Acredito na sinceridade de quem me conta, peço-lhe desculpa por a memória não me ajudar, e fico triste, muito triste. Mas sinto que de alguma forma foi importante esse viver, mesmo que por mim não recordado, há quem o sinta nas suas lembranças. É bom sentir que fazemos parte das recordações de alguém, de muitos “alguéns”. É sinónimo  que a "vida" existiu durante a nossa vida. Como o é também o nosso lembrar de muitos “alguéns” que de nós já se esqueceram. É talvez um caminhar numa calçada mais agreste, este sentir que se é esquecido. A todos que eu esqueci peço perdão e misericórdia no castigo de tão grave pecado cometer. 
Nesta linda terra que quase sempre habitei, rodeado por montes de agradável vegetação, de suaves encostas cultivadas, pequenos vales verdejantes divididos pelo seu pequeno ribeiro que em si guarda tão preciosa água para aos campos a dar. Tão preciosa como qualquer outro tesouro, faz crescer as sementeiras para que se transformem em fruto que um dia se há-de colher. Mas por mais alimento que possa dar, já a todos não dá para chegar. Então parte-se à procura. Como em tantas aldeias, sempre se partiu. Julgo que a maioria leva na alma o desejo de regressar. A emigração que se faz para países europeus deve ser mais fácil. Não tão longe, a maioria regressa todos os anos para a saudade alimentar, não a matar. Porque querem ter sempre saudade, desejo de um dia por aqui poderem ficar para sempre. É bom que assim seja. É bom quando um filho ao colo da sua mãe regressa, para com ela estar, o tempo que puder viver. Será sempre o tempo que puder, não o que quer. Mas desejo que assim continue, o reencontro, o regressar ao portão que o aguarda chegar.
Ainda não partiram e o portão já costumo olhar. Porque sinto deste jeito, esta saudade que ainda não existe? Não quero ser um “velho do Restelo”, desejar que suas naus ao sair do porto logo ali encalhem. Quero que se tiverem de partir, que o façam com a dor no peito e a cabeça altiva, olhando novos horizontes, dando novos horizontes aos seus e aos meus olhares. Que seja uma viagem com destino. Que o destino não seja cruel, que os ajude a serem Homens de uma verdade extrema, com a alma cheia de bondade e o corpo de desejo de a partilhar. Que haja obra no seu labor, que fique sempre um doce sabor. E se regresso houver, que venha a saudade primeira alimentar, e sinta também a “outra” saudade. Vou as couves na horta continuar a cultivar, as batatas no sótão guardar, a lenha seca e abrigada sempre estará, todos os dias a chaminé fumegará para que ao longe seja avistada por quem, por bem, para ela regresse. Cá estarei enquanto estiver. À janela ou à lareira, talvez em amena cavaqueira com a minha companheira. Se não estiver, por perto me encontrarei. Numa caminhada pelos campos ou pelo lugar, à conversa com um vizinho possa estar. Mas não me demorarei, a fogueira apagar não deixarei. Assaremos as batatas pequeninas, ainda com casca, no meio do borralho, no meio da cinza quente. Como serão saborosas, nas nossas mãos ainda a escaldar, enquanto as descascamos (quando miúdo costumava estar à lareira com a minha avó paterna, a Sr. Ermelinda, que era dos Moreiras da Mata. Mandava-me aos sótãos que ficavam na “sala de baixo” para trazer algumas batatas pequenas. Depois metiam-se no meio da cinza quente, junto ao borralho da fogueira. Era só esperar algum tempo, ir vendo se não se queimavam muito. Como eram tão saborosas, naquele tempo em que tudo se aproveitava, até as batatas mais pequenas).
Pela simplicidade e envolvência do que é sentir o partir, assim me encontro. A minha simples e sincera homenagem a todos aqueles que partem e também aos que ficam. Pela dor que sentem, pelos sacrifícios que poderão ter nessa nova vida que procuram. Aos que ficam que à espera sempre estejam. Que a vida nos deixe guardar as recordações que não queremos esquecer. Quem parte “reparte-se” entre o viver e a saudade que sente. Que essa saudade seja dócil, não amarga de sentir. Que seja apenas saudade terna e calorosa que guardamos, que nos deixe viver e ser felizes, mesmo que para sempre nos acompanhe.
        

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Sopa de pedra




Todos conhecemos a história da sopa de pedra. Contada de diversas maneiras acaba sempre com a mesma mensagem. A minha mãe costuma dizer que havia um saber popular que se dizia à rapaziada mais nova no intuito de eles valorizarem as coisas, por pouco que pudesse parecer. Quando era inverno, já para o fim, muitas vezes a lenha seca, que se tinha guardado no verão, acabava. Então a patroa da casa mandava, ou ia, aos montes para trazer o que houvesse. Só que os mais novos não estavam para ai virados e quase sempre respondiam:
- Vou buscar lenha molhada? Não sei para quê, tenha juízo.
E lá vinha o saber da vida tentar incutir alguma sabedoria naquelas cabeças ainda não conscientes das realidades que a vida pode tomar, da forma como com elas lidar:
- Olhai meus meninos, ficai sabendo que a lenha molhada arde melhor do que a cinza seca.
Sempre foi lema o aproveitar, o saber aproveitar o que se tinha. As gentes sabiam bem o que era viver além das suas possibilidades. Pedir emprestado pode ser muito mau. Pagar os juros de uma dívida pode levar uma vida. O melhor era sempre saber viver com o pouco que se tinha, acho que ainda o é. Concordo que quando se trata de um investimento a longo prazo é preciso inicialmente “ semear para colher mais tarde”. Mas pautar uma vida sem regras, consumir mais do que se produz, da riqueza que se cria, dá sempre no que dá. Vejamos o actual estado do país. Por mais voltas que se dê, a dívida que fomos acumulando tem que ser paga. Mas isso não é tudo, o pior mesmo são os juros sujeitos a todas as especulações a que estamos sujeitos. Poderá acontecer que nem que se trabalhe vinte e quatro horas por dia, trezentos e sessenta e cinco dias por ano, chegue para nos livrar deste fardo. Por vezes é necessário fazer a sopa de pedra com o que temos, queimar a lenha molhada para cozinharmos e nos aquecer. Quando defendo esta forma de ser e estar na vida, não pretendo dizer que se deva estagnar, não evoluir. Só que não devemos fazê-lo com os olhos fechados, sem saber onde pomos o pé. A vida de uma geração não deve servir para criar dividas que as gerações seguintes tenham que pagar. O governar uma casa tem muito que se lhe diga, como governar um país. É com alguma tristeza e desolação que tenho que recuar no tempo, até antes de vinte e cinco de Abril de 1974 para encontrar um governante que “sabia de economia”. É mesmo muito triste, porque eu ainda continuo a acreditar que uma democracia pode ser também uma forma de governar sustentada. Não basta escrever numa constituição que qualquer cidadão tem direito à liberdade, se, em seguida, o escravizamos a trabalhar para pagar as dívidas que esses mesmos “Senhores” fazem. É de todo verdade que se possa dizer que em Portugal se vive um regime de liberdade? Mas afinal o que se entende por liberdade? Serei eu livre se puder tagarelar o que quiser da boca para fora enquanto me sinto acorrentado ao dever de trabalhar sem descanso, sem motivação, apenas para servir determinados “senhores”? Será isto ser livre? O melhor, se calhar, é fugir para bem longe, para o interior do Portugal profundo, onde não existe electricidade nem água canalizada, não passa o correio, tão pouco estradas alcatroadas, e esperar que “arda no confim dos infernos” toda esta escumalha maldita que nos colocou nesta situação. Não aceito que se continue este ciclo vicioso. Não acredito que sem uma revolução de verdade, afastando do poder esses traidores da Pátria, pátria que eu tanto amo, seja possível  alcançar uma liberdade pura e responsável. Como eu gosto deste Portugal, das bonitas cidades e vilas cheias de história, das aldeias perdidas nas serras, de gente que trabalha, que aguenta todos os sacrifícios que por vezes a mãe natureza lhes inflige. Mas nunca a odeia, mesmo triste e barafustando tantas vezes, mais vezes a continua a amar. Como este povo, que lavra os seus campos, pesca nos seus rios e mar, que trabalha em tantas artes, ofícios e serviços merece muito mais dos que o governam. É demasiado triste não se poder confiar. Os casos de corrupção nos diversos poderes são por demais conhecidos. A irresponsabilidade de tantos que ocupam cargos públicos nunca é punida. Como pode um povo almejar a liberdade, se não se sabe governar?    

domingo, 14 de outubro de 2012

As aldeias


          

-" Antigamente as mulheres ainda vendiam uns ovos, ou algum centeio ou aveia, sem os homens saber, para ter algum dinheiro. Agora, as mulheres não têm dinheiro para nada, não são senhoras de um tostão." – Assim desabafava uma pessoa amiga, um pouco mais velha do que eu. Na verdade, já somos todos velhos, num tempo com poucos "novos". Não é a idade que o faz, mas antes o que já carregamos nas algibeiras que arrastamos. Ainda se fala assim. Ainda se ouvem estes desabafos. Ainda assim acontece. Não é uma passagem de um qualquer filme de época. Ainda continua assim por vários cantos do meu lugar, do lugar onde moro, mas talvez o habite apenas esporadicamente, como acontece quando bato à porta de alguém para meter conversa, quase sempre por coisa de nada. Apenas porque necessito de me ligar com uma outra qualquer realidade que me solte do mundo dos sonhos que guardo, qual pastor e seu rebanho. Tantas vezes o levo a pastar nas pastagens idílicas que invento para o alimentar, a esse mundo.
É, sem dúvida, um mundo cheio de mundos que coabitam o mesmo espaço, o mesmo tempo físico, não sabendo se vivem lado a lado, mas que vivem, vivem. Os tempos serão sempre de todos e de todas as formas de estar e sentir, daqueles que mantém os seus equilíbrios, tantas vezes de uma forma que pode parecer “estranha”. Estranha pode não ser o termo correcto, mas para mim assim o parece, pelo menos às vezes. Sim, não é tão estranho como pode parecer. Se caminhar um pouco pela minha vivência, toda esta forma de estar e sentir sempre existiu. Apenas o menino que um dia começou a ir de autocarro para uma escola mais longe, tenha sido tocado, integrado noutros mundos que os professores e os livros o fizeram descobrir e nele entrar. Embora presentes em mim, todas as vivências vividas e que me tocaram, umas vão-se sobrepondo às outras, como camadas de sedimentos que se vão depositando, formando a morfologia interna do meu ser. Visível, tocável, por onde nossos passos caminham, apenas a crusta, as últimas vivências. Mas todas as camadas estarão sempre presentes, se a memória nunca nos faltar. Seremos rochas compostas por todas as diferentes camadas de sedimentos que depositamos dentro do nosso ser, desde o núcleo até à crusta. Mas rochas vivas, sempre em crescimento, sempre agrupando outras camadas de sedimentos, outras vivências que todos os dias enquanto vivemos, no mundo dos seres livres e sonhadores, vamos acrescentando. Triste e monótono seria, se apenas existisse a mesma camada de sedimento, sempre igual, desde o núcleo até à crusta.
Explicar, fazer sentir àqueles que nunca tiveram esta experiência, nunca realizaram tal experiência de vida, pode ser difícil. Mas o ser humano desde o sempre que dele se fala, agiu e pensou basicamente segundo os mesmos princípios. Sempre precisou de se alimentar, sempre buscou o equilíbrio com o grupo onde se integrava, sempre amou e foi amado, odiou e foi odiado, sempre teve os mesmos sentimentos e necessidades dentro dele. As formas de os manifestar sofreram alterações, mas os princípios, a essência das necessidades, do sentir e desejar manifestar-se, parecem manter-se imutáveis. Pelo menos assim penso, assim olho todos os outros tempos que aconteceram e os que se espera continuem a acontecer. Não estou a dizer que é o que devia ser. Mas não consigo criar, imaginar outra forma, outra identidade como ser humano que também sou. Posso não me sentir muitas vezes confortável “com a roupa que visto”, mas não sei dizer qual a outra que desejaria ou se a desejaria. Somos seres curiosos, por vezes até dá gosto ficar apenas a olhar, a tentar desvendar os seus segredos. Como foi o caso desta senhora amiga com quem hoje falei. O seu desabafo não foi o de alguém que pedisse esmola, muito pelo contrário, foi altivo, como se uma necessidade material apenas enobrecesse toda a sua personalidade. Porque o ser pobre ou rico não é condicionante para o ser que somos, interiormente, a forma digna e esclarecida como nos definimos, as situações que da nossa vida tomamos no regaço, como filhos nossos, nossos filhos. São nossas essas passagens, e como nossas as acolhemos, mesmo que em pranto. Não é onde chegamos que nos define, mas sim o como o fazemos e o “estado” em que chegamos, como continuamos a ser no “chegar”.
Neste ambiente rural a que entretanto cinjo meus passos, depois de outra viagem, pequena, num ambiente semirrural, semiurbano, encontro e reencontro-me com formas de viver, de granjear o sustento do dia-a-dia que são específicas, ligadas à terra, às hortas, aos animais que criam, a uma pequena agricultura que ainda se vai praticando. Embora rudimentar, nada lucrativa, muitas ainda teimam contra as maiorias lutar, viver na sua casinha, que consideram sua, na terra que trabalham e que sua é. Sê-lo-á enquanto as forças não se perderem pelos anos que a vida vai fazendo. Não gosto de pensar o que sinto. Não quero sentir o que penso. Quero acreditar que haverá sempre lugar para todas as formas de viver, com a vida lidar, o sustento para o corpo e para a alma granjear. Um dos requisitos que sinto ser necessidade de muitos que nas aldeias habitam, é o de manter a sua liberdade, a sua autonomia, a sua independência dos grandes núcleos urbanos, do poder. Acho que gostariam de ser invisíveis aos senhores das leis, dos cobradores de impostos. Senhores se sentem das nascentes de água, dos pequenos ribeiros e rios, dos campos onde  cultivam o seu alimento, dos montes que lhes alimentam as lareiras,  que cozinham e lhes aquecem as casas e as roupas que trazem.
Mas sei que tudo está a mudar. Sinto que em breve estes “teimosos” findarão e não haverá descendência que siga os seus passos, os seus olhares, o seu olhar a vida. Partem em busca de algo que,se calhar, ao certo não sabem bem. Não querem precisar de vender os ovos, às dúzias, para ter alguns tostões. Precisam de muitos tostões para se saciar, no corpo e na alma. Que no seu ser não se perca nenhuma camada das vivências que aqui passaram, que deles continue a fazer parte. Que a saudade não os largue, e, quando puder, os arraste de novo às origens, ainda vivos e com vida, para se deixarem por estes campos e montes aprisionar, nas suas nascentes a sede saciar, das conversas com os vizinhos a mente e a alma alimentar. Que a saudade seja enorme, incansável, o seu fado cumprir de um dia os aqui trazer, para ficarem, para sempre ficarem. Ai cidades belas, que as minhas companhias levais, pela calada, no silêncio que a vida toma, sem me dar conta, sem poder a casa do “ladrão” salvar!...
Esta terra, com nome, é igual a tantas outras que existem. Este povo, que um dia andou à charrua, é como tantos outros que a sua terra lavram. Eu sou dos que aqui, por enquanto, ainda estão. Olhar, caminhar pelos carreiros, que são do passado mas que ainda existem, faz parte de um viver comum, apenas tentando não esquecer as vozes que cantavam o povo que foi adormecendo. Num olhar o mundo e os seus desígnios, as suas vontades, as suas necessidades, estou. De tantas profecias que os novos profetas invocam, sinto-me abismado, não pretendo fazer o que quer que seja para neles acreditar. Mas de todo é impossível passar indiferente, não se deixar impregnar de tantas hipóteses e suposições que se fazem sobre o futuro da nossa espécie, e em particular sobre a nossa forma de viver. Somos sempre mais a cada dia que passa, tristeza a minha que não seja esse crescimento igual em todas as cidades, vilas e aldeias. Umas crescem enquanto outras vão-se sumindo nas encostas de pequenos riachos, nas poucas planícies, nos pequenos planaltos. Muitos concelhos tentam atrair a si alguma indústria para fixarem os poucos que restam. Não é fácil competir de igual para igual com a beira litoral, que de si mais atractiva o tem sido.
Lembro os tios do Porto, os que nasceram em Carvalhal Redondo. Era miúdo mas nunca esqueci a forma calorosa com que nos recebiam nas poucas viagens que ao Porto fazíamos, quando ao Porto se ia “ em cima de um burro morto”. Lembro a cidade escura, dos seus granitos, barulhenta, do seu movimento. O cheiro a Bananas, quando entrávamos no apartamento da tia Rosa e do tio Abílio, que ainda fica no Largo do Viriato (não sei se o tal que queria escorraçar os Romanos e acabou nas suas mãos), por detrás do Hospital de Santo António. De volta aos carreiros, interrogo-me sobre o destino meu e dos que por aqui labutam. Relegando para um plano inferior o valor que a agricultura e os seus campos já tiveram, a pouca indústria é escassa para dar sustento a todas as famílias. Diariamente somos conduzidos para pequenas viagens à procura, regressando, no final do dia, como os pardais que ao seu ninho vêm pernoitar. A criação dos Polos escolares é mais uma dura realidade, retirando às aldeias a magia, a vida que uma criança representa. Estou preocupado. As gerações que estamos a criar poucos laços criam com a sua aldeia. Que lembranças irão ter se não brincam nos seus largos, não se aventuram pelos campos à procura de um cacho de uvas, de uma maçã, de uma laranja, de uma ameixa, de uns figos, de uma pêra  de um ouriço com castanhas e tantas outras que agora não lembro. Os laços que outrora estabelecemos e que nos fazem por aqui querer estar, já não se estabelecem entre os nossos filhos e a magia que inventávamos para que o nosso lugar fosse o centro do universo. Choro da mágoa que sinto por não conhecer tantos que aqui nasceram e cedo se despediram. Por vezes já nem recordo a sua face, o som da sua voz por nunca com eles ter conversado. Estranhas todas as novas vivências que nos afastam uns dos outros. O mundo dos teclados e ecrãs tomou conta do lugar que era das conversas, das brincadeiras, todos olhando-se olhos nos olhos, sentido a sua presença enquanto um todo. Não passamos, na maior parte das vezes, de uma realidade virtual, sem alma, sem cheiro, sem tacto. Há coisas que os olhos não conseguem ver, sentir. A nossa presença não se assemelha em nada a uma imagem num monitor, a uma mensagem teclada. Ai como eu sinto que sou mais, que todos devem ser mais do que isso. Que essa realidade exista, mas que não tome o lugar das outras que também precisam de existir. Ai de nós, que futuro nos espera se não lutamos para fazer acontecer de novo a convivência, a criação de raízes com a terra que nossos antepassados alimentou. Ai de nós se não erguemos bem alto a enxada para na terra cavar alicerces fundos para as “árvores do futuro” pegarem, criarem raízes que as façam crescer, aqui viver. Ai de nós se não conseguimos forças para acompanhar todo este movimento de mudanças constantes. Mas nada se pode prometer. O futuro é a cada instante, e a cada instante se parte, se vai à procura. Por vezes, fala-se que a agricultura será no futuro a actividade mais importante devido à escassez de alimento que poderá acontecer. Mas ninguém pode viver o futuro se não tiver presente. Até acontecer o futuro, vive-se o presente. Todos os dias vivemos, não dá para hibernar, apenas acordar quando o “clima” for propício. O futuro e o presente confundem-se tal a “dependência” que tem um do outro. Se uma árvore está a secar, não lhe posso apenas dizer que, quando o inverno chegar, haverá água em abundância  Até lá, o que é que ela bebe? Secará e toda a água de nada lhe valerá, se as raízes sem vida já estiverem. Se queremos projectar um futuro, começamos já hoje e nunca podemos parar, descuidarmo-nos, fazer uma pausa e depois voltarmos à tarefa. Muitas coisas não podem ser tratadas assim. Se queremos que as nossas aldeias continuem vivas, temos que repensar muitas coisas: isto se queremos que elas continuem a existir habitadas e com uma dinâmica sempre crescente.
        Sempre que faço uma pequena reflexão sobre um hipotético futuro para a minha aldeia, e as aldeias em geral, sinto que dificilmente atrairão as novas gerações. Poderão acontecer muitos casos de um regresso mais tarde por nostalgia, por uma saudade que foi crescendo, a procura de uma identidade própria que foi perdida nos aglomerados urbanos. Ainda quero acreditar que possa ser uma primeira escolha, mas não me posso iludir que para se concretizar muitos sonhos é preciso mais que uma bonita paisagem, um ar puro, o cantar das águas num pequeno riacho. Ninguém tem culpa, ninguém o faz por mal. Poderão um dia estes campos abandonadas serem de novo procurados. Até lá que permaneçam adormecidos ou alberguem uma flora que não os descaracterize, lhes roube o alimento que escondem. Que não sirvam para plantações de eucaliptos que só servirão para os tornar mais um bocado de “deserto”, inférteis. Talvez até seja melhor que ,por agora, eles descansem em vez de se praticar uma agricultura intensiva com o uso descontrolado de adubos, pesticidas e herbicidas. Não sei o que será melhor. O ideal para mim seria o conseguir-se fazer uma agricultura de forma sustentada e rentável capaz de dar “alimento” às novas gerações que essa actividade escolhessem.      

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Pensando





Agora que aqui estou, pensando,
tentando achar algo que procuro,
só encontro o que não procuro,
só procuro o que não encontro.

Erguem-se os estandartes, bem alto.
Firmes estão junto ao tronco exausto,
que se mantêm firme até desfalecer,
por entre as espadas, até morrer.

De um singelo propósito não ouso revelar
a vida que na alma habita, de forma discreta
aos olhares indiscretos que a ameaçam.
Por medo, por insegura se sentir, por lá fica.

São eternas ternas recordações que teimam
contra a vontade do destino viver, permanecer.
Estranho todo este sentir e não descobrir
se alimento ou veneno o é para a alma.

Sem propósito algum aqui me encontro
rabiscando pedaços de papel, pedaços.
Estranha a melodia que não se afasta,
nefasta por tão incontornável envolvência.

Todo o acontecimento me parece trivial,
pouco ousado, nada criativo, o ir mais além.
Passadas diferentes preciso para caminhar
outros mundos, outros tempos, ousar sonhar.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Pouco, não é nada.





O caminho para os montes de Rio Mau não era muito ruim. Algumas descidas, mas nada a que os bois já não estivessem habituados. O meu pai tinha-me mandado ao curral buscar o branco que ele trazia o vermelho. Os bois ficavam no curral mais afastado da casa, o curral de fora como lhe chamávamos, cada um no seu canto, presos para não andarem às turras. Cada qual tinha a sua manjedoura onde se colocava o pasto quando era hora da refeição, isto depois de beberem a lavagem, que era farinha com água e por vezes algumas cascas de resto de alimentos. Estavam bem tratados. A minha mãe sempre gostou de tratar bem os animais, cuidar, ser sua amiga. Era normal Ela falar a meio do lugar e os animais já darem conta dela, não parando de mugir enquanto ela não chegasse. Por vezes acontecia que quando andávamos com o gado a pastar, se ouvissem a voz dela era um Deus nos acuda, fugiam para ir ter com ela.
                Já com os dois bois presos à soga, que era de couro cru, era necessário pôr a canga. As juntas de bois, quando ao início eram ensinadas a andar ao carro, desde esse momento ficavam com um lugar definido para o resto da vida enquanto fossem par um do outro. As juntas de bois eram essenciais para transportar tudo que havia para transportar: o mato e a lenha dos montes, todo o pasto que os campos davam, levar o estrume dos currais para fertilizar os campos na altura de lavrar para a sementeira, lavrar, gradar, sachar o milho, trazer todas as colheitas. Quando era pouca coisa não valia a pena todo o trabalho de pegar nos bois, trazia-se à cabeça. Já não lembro, mas era costume alguns lavradores venderem lenha para as padarias e transportavam-na com os seus carros de bois, percorrendo grandes distâncias. O meu tio António costuma contar uma passagem engraçada sobre a época em que levavam carvão para S. J. da Madeira. Naqueles tempos, a garotada andava sempre descalça. Mas em S. J. da Madeira havia uma lei que proibia andar descalço. Levavam as socas de madeira no carro e lá tinham que as calçar, não vá serem apanhados por algum polícia.
                O carro de bois já estava pronto. Como era para trazer lenha não levava as caniças, apenas os fugueiros altos para se carregar uma boa carga. Depois de apertada a canga aos bois, era tempo de pegar no carro. Com cuidado para não se aleijarem no cabeçalho, recuavam até se poder levantar o cabeçalho e prendê-lo à canga com a chavelha. Era preciso ter sempre algum cuidado com os bois. Embora mansos, por vezes agitavam a cabeça para sacudir algumas moscas ou moscardos e podiam-nos atingir com os seus enormes cornos. Eu gostava de olhar nos seus olhos e fazer-lhes mimos no focinho e no pescoço, onde eles gostavam mais. Quando era de verão, era hábito levar um ramalho verde para lhe sacudir as moscas que não os largavam para se alimentarem do seu sangue. Por vezes, até dava dó ver o sofrimento deles. Malditas moscas que não paravam de nascer, mesmo quando se matavam tantas com a palma da mão que ficavam toda ensanguentada. Juntavam-se nas partes mais moles do corpo dos animais, às pilhas. Quando eram os moscardos, até os animais saltavam no ar só de ouvir o seu zumbir. O meu pai já me deixava levar os bois pela soga. Tomando cuidado e fazendo-se ouvir, lá se seguia rumo ao monte carregar a lenha, sempre com a vara dos bois ao ombro para impor respeito.
                - Anda daí branco, chega-te ao carro. Anda ei, vamos embora, ei. – Era numa linguagem própria que comunicávamos com os animais. Já habituados, entendiam perfeitamente o que se lhe queria dizer. Tinha-se colocado no carro a corda para amarrar a carga depois de pronta. Na mão levava-se uma foice e um serrote para cortar o que fosse necessário. A caminhada até ao monte onde se ia carregar a lenha durava mais ou menos vinte minutos a trinta minutos. Para lá era mais depressa do que para cá. Numa passada normal lá seguimos caminho. Estamos no verão, por esse facto vai-se cedinho, antes do sol nascer, para fugir ao calor. Todos os anos se repete. Quando alguém deita pinhal abaixo para vender, o meu pai costuma pedir a lenha dos pinheiros que fica no monte, não tem valor para os madeireiros. Só as grandes casas do lugar é que são possuidoras de vastas áreas de monte que ficam em redor das aldeias e dos campos de cultivo, numa mancha de floresta que se prolonga até se perder de vista. A essas parcelas de terreno, que podem ter algumas centenas de metros quadrados até muitos hectares, chamamos-lhe tapadas. Todas as tapadas tem o seu nome próprio. Basta dizer a tapada a ou b que toda a gente a conhece palmo a palmo pois o mato, ou tojo como chamamos à flora rasteira que neles cresce, é cortado à enxada, manualmente. Desse modo os habitantes do lugar conhecem palmo a palmo todos os montes em redor. Uns mais do que outros, mas quase todos conhecem. A casa dos meus pais era uma casa pobre, com apenas umas quatro tapadas muito pequenas que pertenciam aos meus avós paternos com os quais vivíamos  A que fica mais perto é o monte das Bouças. Depois temos nas Juntas, na Colmieira e no Campo-do-rio. Umas já pertencendo “à casa”, outras que se foram comprando. Uma tapada, se estiver bem situada, com pouco declive, caminhos bons, boa terra, é uma grande valia. Dela se colhe, além das grandes árvores,  a flora mais pequena a que chamamos mato para fazer “ a cama ao gado”. Esta vegetação vai servir para todos os dias se colocar no curral dos animais para não estarem a deitar-se em cima dos seus resíduos orgânicos (mais conhecida no lugar por bosta) e ao mesmo tempo, quando chegada a altura das sementeiras, será um fertilizante natural por excelência. O grande inimigo da floresta é o fogo. Quase todos os anos existem pequenos fogos dos quais nunca se sabe ao certo a origem. Por descuido ou maldade, o certo é que eles acontecem e deixam todos os habitantes em pânico. Além da destruição da enorme riqueza que uma floresta representa, existe sempre o perigo de chegar às habitações do lugar. São dias de muita angústia e sofrer. A minha terra, como eu costumo dizer, é uma zona de montanha, com os montes não muito altos nem com muito declive, fazendo lembrar o mar com as suas ondas umas a seguir às outras. Vê-se ao longe uns mais altos que outros até se perderem na linha do horizonte. No fundo desses montes existem por vezes pequenos vales, quase sempre um ribeiro de águas que descem das suas encostas ou nascem junto ao leito deles. Na parte mais funda da freguesia já correm alguns rios de onde se destaca o maior que é o rio Arda.  
                Chegados ao monte onde a lenha se encontra espalhada nos locais onde as árvores tombaram, tira-se a chavelha que segura o carro à canga, com cuidado para não partir o cabeçalho do carro que se encontra já travado em ambas as rodas por duas pedras que ali se ajeitaram. Tira-se a canga dos bois e prendem-se cada um a uma árvore que seja segura. Tudo arrumado é hora de começar a carregar a lenha. O meu pai vai orientado as primeiras camadas até que eu tenho que subir para cima do carro para acamar quando já não dá para se fazer do chão. O meu pai vai-me chegando as rameiras, uma atrás da outra, até se ter carga suficiente para os bois poderem puxar o carro. A carga deve estar equilibrada a meio do carro onde se situa o eixo e as suas rodas. Quando o carro está carregado com peso a mais da parte de trás diz-se que está “ao pino”. Se estiver muito à frente é muito peso em cima do cachaço dos bois. Deve estar equilibrado. Voltando a por os bois ao carro, é hora de regressar a casa.  
                Foi num verão desses que íamos buscar lenha, que eu resolvi pedir ao meu pai se podia escolher a lenha mais grossa para serrar e fazer achas para vender. Foi algo que ainda hoje lembro, a vontade de começar a ganhar alguns tostões só para mim. Nesse tempo as achas que consegui fazer vendi-as por cento e cinquenta escudos ao meu primo que fornecia a alguns clientes. Se comparar com os tempos que correm estaria a falar de aproximadamente setenta e cinco cêntimos. É espantoso como o mundo entretanto mudou, o valor de tudo tem crescido de uma forma quase abismal. É certo que os ordenados são outros, mas dá que pensar. Hoje todos estamos habituados a muito. É dinheiro para isto e para aquilo, nunca se está satisfeito. Eu sempre acreditei que pouco é muito diferente de nada. É preciso ensinar as novas gerações para o valor do empreendorismo, não estar sempre à espera que nos dêem as coisas. Todos dizem que nada vale a pena, que o melhor é empregar-se numa fábrica ou noutro sítio qualquer e comprar as coisas que fica mais barato. E quando não houver empregos, quando tiver que ser cada um a criar o seu sustento? O que pretendo dizer é que devemos procurar e ser capazes de descobrir formas alternativas no caso de necessidade extrema. Defendo que a agricultura devia ser olhada com outros olhos. Todos defendem a produção em grande escala, toda mecanizada. Tudo bem, mas será que, se fossem melhoradas certas situações nesta agricultura mais pequena, de campos diferentes, não seria possível aumentar a sua rentabilidade? Porque razão certas infraestruturas como os caminhos, a forma de armazenagem e distribuição das águas para a rega nunca foram melhoradas desde o tempo em que apenas havia os carros de bois? Os nossos campos são mais produtivos que qualquer outro campo que exista pelo mundo inteiro. Aqui pode-se cultivar muita coisa, é necessário adequar as culturas às necessidades do mercado, procurar produzir o que é mais rentável. Se os caminhos fossem bons, era muito fácil qualquer um cultivar um campo para complemento de rendimento para o agregado familiar. Os legumes, as hortaliças, as batatas, o feijão e tantos outros alimentos são fáceis de cultivar. Se fosse possível ter acesso com uma pequena viatura ligeira a qualquer pedaço de terra, estou convicto que muitas famílias voltariam a ter a sua horta. Além do mais, com o que se cultiva pode-se criar animais como coelhos, galinhas ou outras pequenas aves. Posso estar apenas a ser nostálgico, a não ser realista, a querer voltar a um outro tempo. Pode ser, mas a actual crise e os sinais da escasseza de alimentos que poderá acontecer no futuro poderão vir a dar-me razão e a muitos que como eu pensam. Não devíamos abandonar os campos por completo. Devíamos pensar em formas de reduzir os custos no seu cultivo. Se não der para competir em certos mercados, temos que procurar produzir algo em que se seja competitivo. Porque é que nunca se melhorou a vinha? Podíamos produzir vinho com mais qualidade, se houvesse quem ensinasse novas técnicas, aconselhasse as castas melhores para cada tipo de solo e clima. Ficamos sempre parados no pensar, limitamo-nos a repetir os mesmos actos dos nossos antepassados na forma de agir. O poder político local e nacional também sempre achou que não valia a pena investir. O que aconteceu foi muito simples: o abandono em massa de quem trabalhava no campo. Para resumir e concluir, a minha visão não se prende com o passado. Apenas olho o momento actual e sinto que muitas famílias viveriam mais folgadas se, em vez de chegarem dos empregos e meterem-se em casa ou nos cafés, tivessem uma horta que fosse fácil de cultivar, com bons acessos e um bom sistema de rega. Para tal é necessário um estudo prévio, freguesia a freguesia, juntando habitantes e técnicos superiores. Sei que existem muitos entraves, como o mosaico em que se distribuem os campos actualmente  Devido a partilhas e vendas, os campos distribuem-se de forma desordenada, muitos em minúsculas parcelas rodeadas por muros em pedra, o que não facilita em nada alguma mecanização para facilitar o seu cultivo. Não sei mesmo o que pensar. Poderá apenas ser uma ilusão minha. Mas que me dá tristeza ver este abandono e o país a precisar que se produza. Acho que por este andar, um dia vou ter saudade dos cachos de uvas que se comiam por todos os campos onde se passava, dos carrapiços que ficam nas ramadas e, já fora de época das colheitas, inverno dentro, a rapaziada trepava em sua busca. Como sabiam bem.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Pequena passagem





Conta-se que, há muito tempo, existia um fotógrafo que andava de terra em terra a fazer o seu trabalho para ganhar o pão de cada dia. Tempos miseráveis que exigiam muito engenho e arte para se poder granjear uns mingados tostões. Nessa luta diária, lá ia o fotógrafo com o seu laboratório e máquina fotográfica tentando conseguir o maior número de aderentes a querer imortalizar-se pela arte da fotografia. Chegado a uma determinada terra, montou a sua tenda no largo da Igreja. Era domingo, o povo da terra estava participando na missa Dominical. Resolveu aguardar que a Missa terminasse para “apanhar” o maior número de pessoas. Quando as pessoas começaram a sair da Missa, que tinha terminado, lá estava ele se anunciando às portas da velha Igreja, pedindo a todos que se juntassem pois gostaria muito de os fotografar.
                - Não demora nada e custa muito pouco. – Dizia ele em voz alta que se ouvia em todo o adro. Alguns mais reticentes que outros lá foram acedendo ao pedido e em breve estavam todos juntos, prontos para a tão problemática fotografia dos habitantes da terra. Já com a máquina pronta, o forasteiro dirige-se assim às pessoas:
                - Obrigado pela Vossa disponibilidade. Eu estou aqui para vos tirar... – Mal acabava de dizer a última palavra, alguém ergue bem alto a sua voz e diz o seguinte, enquanto já se ia afastando do grupo em direcção a casa:  
- A mim é que não me tiram nada. Homessa, pensa que eu sou algum tolo ou o quê? – E deste jeito todos se começaram a inquietar enquanto o pobre fotógrafo tentava explicar que apenas iria “tirar” o retrato da comunidade. Enfim, esta falha de comunicação levou a maior parte a dispersar-se e ir para casa, sem que  se lhe tenha “tirado” a fotografia.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

A escola, que já foi minha





Na semana passada, passei junto a um pequeno edifício que é único no lugar. Fica num sítio muito bonito, no lado nascente do meu lugar. Tem uma arquitectura bastante simples, simétrica, como uma borboleta. Dividindo ao meio, cada parte é o oposto da outra. É mesmo assim, tendo como eixo da simetria o meio da construção, onde estão duas placas de mármore: a maior em cima e a mais pequena em baixo. Entre elas ergue-se um pequeno mastro em ferro pintado que nasce de uma pedra em granito muito bonita e se eleva em direcção ao céu de forma oblíqua à parede do edifício. Descrevendo o que os olhos vêem de frente, as janelas são imensas por onde entra toda a luz do Deus sol. Em cada extremidade existe um pequeno átrio que dá para a sala onde cabe toda a luz que entra pelas janelas, que são imensas, e uma porta no canto ao fundo que dá para as casas de banho para as meninas, os meninos e também para a Senhora Professora ou o Senhor Professor.
Ia acompanhado com a minha mãe. Estamos no outono, as folhas que se deixaram cair dos ramos das árvores, adormecidas, juntaram-se todas junto ao portão da entrada. Quietas, todas juntinhas, estão barrando a passagem, que já há algum tempo deixou de o ser.
- Já não se ouvem as crianças! – Disse a minha mãe de um jeito triste, como que suspirando. Parei, olhei mais do que os olhos podiam ver. Também suspirei, como quando olhamos alguém que junto a nós jaz. Fez-se uns instantes de silêncio, cada um olhou e deixou o olhar por aqueles portões entrar, no recreio um pouco brincar para depois na sala entrar e juntar-se a toda a luz do lugar que ali se sentava nas carteiras, de frente para a ardósia que era preta e de seguida iria ser pintada do branco mais puro que a natureza nos dava. Decididamente o silêncio era assustador. Só um pouco do som das folhas secas, adormecidas, que o vento ali deixou, todas juntinhas, depois de com elas brincar. Neste momento era dos poucos que pelo recreio podia correr, jogar à macaca, ao pião, à barra do lenço, do penico, jogar à bola. Para mim, o momento foi desolador. A minha infância parecia ali adormecer, junto a ela para que não se sentisse triste, só. Tinham-lhe roubado todos os filhotes, era uma mãe enlutada que chorava a perda dos filhos, aqueles que também eram das mães da aldeia. Decerto não compreendia tal, sempre se dera de corpo e alma aos ensinamentos, às brincadeiras do recreio, a tudo que é natural acontecer entre mãe e filhos.
O sol, todos os dias, por ali passava o dia, sempre na esperança de reencontrar as luzinhas que nasciam em quase todas as casas da aldeia, tantas vezes mais do que uma. Por certo, passavam os dias a conversar na linguagem que só eles sabiam, mas que eu imagino também compreender. A minha mãe adorava aquela casa tão cheia de significado, mesmo para quem nunca se tinha sentado nas suas carteiras, ido ao quadro ou brincado no recreio. Mas não estou a ser correcto. Olhando-a, pensando mais profundo, também ela como todas as mães da aldeia se tinham sentado nas carteiras juntamente com as luzinhas que tinham dado à luz, que tinham cuidado e iam cuidando. Pensando melhor, toda a aldeia se sentava todos os dias da semana naquelas carteiras que davam para o quadro, que ensinavam como viajar no mundo maravilhoso da magia que os livros lidos têm.  O Senhor ou a Senhora professora sempre os acolhiam para lhes ensinar um mundo novo. Novo na magia das palavras que até então eram só faladas. Das contas que eram de somar e tantas vezes se sumiam para dar lugar à brincadeira. Das lousas pequeninas que cabiam na sacola de pano e que eram filhas da mãe ardósia, também preta, aquela que lhes ficava em frente quando estavam sentados nas carteiras. Ai a dor que não é só minha, mas que também é. Aquela que já foi minha e de tantos meninos e meninas que pintavam a aldeia de um colorido diferente com as suas vozes que ecoavam por todo o lado. Ai de mim que aqui estou perante Ti, que já foste minha, e que em nada sinto poder valer-te. Também eu com a graça de Deus te dei as minhas luzinhas para que as acolhesses dentro de ti, em ti aprendessem também o mundo mágico que só tu sabes ensinar o caminho para lá chegar, quem sabe por lá ficar sempre que apetecer. Perdoa-me pelo que não fiz e talvez devesse fazer. Perdoa aos Homens que te enlutaram, os teus e os nossos filhos roubaram. Perdoa-lhes pois Eles não sabem o que fazem.

Dia 05 de Outubro  de 2012