As interpelações do
pensamento
Divagando
um pouco pelo tempo, devido ao tempo que agora me sobeja, não me contenho em
reflectir um pouco mais sobre as contingências que a vida pode tomar. Não sei
se a vida se orienta através de um destino já traçado, se é obra nossa. Um
pouco como aquele Rei que ao construir um castelo para se proteger, descorou a
robustez das muralhas, tornando-se presa fácil para o inimigo. Sucede-nos
tantas vezes pelo caminhar da nossa vida apenas preocupar-nos com o atingir
determinadas metas, esquecendo-se por completo que após conquistada, “a
fortaleza tem que ser guardada”. Pouco, ou mesmo nada, se pode dizer que está
“seguro”. As nossas fragilidades são imensuráveis,” quanto maior o barco, maior
a tormenta”. Ser optimista, acho que no “acontecer” de pouco vale. Apenas
ajudará na forma de novamente encarar os desafios da vida, novas projectos
definir, não esmorecer. Contudo, face a
determinados acontecimentos, alheios a tudo que possamos fazer, não há muralha
que resista, que se mantenha de pé. Quebrando rotinas há muito enraizadas,
percorremos de uma forma diferente os mesmos caminhos de ontem. Visionamos tudo
de um outro prisma, somos visionadas também assim. A interacção com os outros
obedece a certas regras, a certos padrões, a estatutos que, de forma
involuntária, adquirimos. Relacionados pelo nosso lado profissional, por alguma
particularidade na vida colectiva, pela forma como estamos em grupo,
socializamos, ocupamos um lugar próprio na esfera dita social. Será
relativamente fácil lidar com as contrariedades da vida, quando, mesmo
alienados de determinado estatuto, temos garantido todo o nosso equilíbrio
emocional e, tão importante como isso, garantidos meios de subsistência. É com
grande à vontade que encaramos uma conversa com alguém que sabemos não nos
tentar extorquir o que quer que seja. Seja uma divida de gratidão, um favor do
passado, qualquer outra pretensão que o leva a solicitar-nos algo que não temos
para dar, ou pelo menos, não estamos dispostos a dar. Dito desta forma parece
um pouco cruel. Mas a interrogação então se levanta: até onde estamos dispostos
a ir para ajudar alguém que precisa? Não acredito que alguém possa responder
verdade. Quanto valemos, quanto nos dispomos sem querer algo em troca?
Em
tom de brincadeira, costumo dizer que as mesas deviam ser todas redondas, para
que ficássemos todos à mesma distância do “centro”. Numa verdadeira roda de
amigos, ela sempre se alarga quando alguém chega. Numa família de verdade, o
pão é igualmente repartido entre todos, as tarefas e as responsabilidades
igualmente. Mas o nosso lado “primitivo” é tantas vezes mais forte. A
competição leva-nos a comportamentos inimagináveis. A ambição desmedida, o
conseguir algo a todo o custo, assusta só de pensar. Quem se pode afirmar
imune? Todos os seres, de todos os reinos, perante circunstancias extremas,
adoptam comportamentos de sobrevivência tocando a barbaridade. A natureza
concebeu-nos desta forma. Não podemos, e talvez não se deva, contornar, inibir
este instinto. Talvez este instinto seja a chave da sobrevivência de tantas
espécies, ao longo da já antiga história que o planeta tem. Mas este pensar é
relativo, como relativas são tantas coisas. O conceito de tempo que nos é
próprio, difere muito numa visão mais abrangente. Toda a dinâmica dos universos
que existem, tem um tempo próprio. Regra geral, associamos o conceito tempo, ao
de uma vida humana. Com base nesta medida, a que talvez possamos chamar padrão,
estabelecemos toda uma série de comparações, de opiniões tidas, no nosso
entender, como sábias.
Um
pouco como a velha história do menino pastor, que procurava sempre descobrir e
empoleirar-se na pedra mais alta do monte em que guardava o gado, enquanto este
se entretinha, de nariz quase no chão, tentando arranjar algo que lhe enchesse
o estômago. Neste desafio constante, ia pulando de monte em monte, acabando
sempre por encontrar um maior do que aquele em que se encontrava. – Quando for
grande, quero subir ao ponto mais alto do monte que além avisto. Lá no cimo,
não haverá monte maior que aquele. - Mas nem sempre acontece o que o pastor
julgava ser uma verdade absoluta. Decerto, ao chegar ao dito monte, iria
avistar mais além, na linha do horizonte, outro maior. E assim sucessivamente,
não fosse a terra mais ou menos redonda. Então, afinal, qual é o monte mais
alto? Para se descobrir isso, não basta apenas a nossa percepção visual, é
preciso chamar os senhores doutores do conhecimento, aqueles que estudam todas
essas coisas. Porque ao nosso olhar, ao nosso sentir, o monte mais além, que
toca o céu, na linha imaginária que é a linha do horizonte, será sempre mais
alto do que aquele em que estamos empoleirados. Um pouco não se estar nunca
bem, com todo o bem que se tenha. A nossa ambição, a nossa cobiça, vai sempre
para o sítio onde não estamos, e que sempre desejamos. Um pouco como em miúdos
quando brigávamos por querer os brinquedos dos outros miúdos. Pareciam-nos
sempre melhores que os nossos. E se não conseguíssemos o que queríamos, lá
vinha o amuo. E vamos sempre amuando pela vida, pequena ou comprida, que sempre
achamos ter.
Pela
manhã, sempre dá para nos escondermos na própria sombra, dado o tamanho que ela
toma. Na hora do meio-dia é que se complica, somos maiores que a nossa sombra,
não dá para nos escondermos nela. Pela tarde, início da noite, voltamos ao princípio,
a sombra já maior, dá para nos escondermos nela. Um pouco à semelhança de um
entendimento que se queira fazer da vida, do tempo em que temos quem nos
proteja, do outro tempo em que dependemos só de nós. Um pequeno jogo de
palavras, nada mais. O seu entendimento deverá ser diverso, para que seja
frutífero. Não se quedar pelo que os olhos vêem deixar que o nosso sentir
completo o quadro, o possa colorir de uma forma diferente que a mãe natureza.
Não que Ela não se tenha esmerado por nos proporcionar todas as formas e cores
possíveis. Mas antes uma necessidade qualquer de que seja de outra forma
entendida, a realidade tocável vivida, entendida. Tocada pelos nossos sentidos,
completado pelo nosso sentir, que será sempre mais um sentido que possuímos.
Este mais impreciso perante a opinião alheia. Mas tão objectivo como uma outra
coisa qualquer. Um arquitectar mentalmente das formas que queremos ver e depois
sentir, uma pequena alucinação, sempre controlada, sempre objectiva ao nosso
pensamento. Mas pouco ou nada é consensual: ao olhar de cada um, mesmo ao nosso
olhar. A mente distrai-se facilmente, nos distraímos com este ou aquele
pormenor, não conseguimos analisar com precisão todos os elementos que o nosso
olhar capta, mas apenas vimos o que a mente quer, onde ela se concentra,
relegando para o esquecimento, para a inutilidade, todos os outros elementos.
Não nos conseguimos concentrar em todo o campo visual. Somos por vezes
alertados por alguma modificação mais ou menos brusca na parte esquecida. De
rompante, tentamos perceber, acompanhar, descobrir o sucedido. Mas por vezes é
tarde demais, que o digam os condutores quando não se apercebem de uma outra
viatura que os ultrapassa, de um peão que se meteu à passadeira, de alguém que
entra num cruzamento, de um semáforo que muda de cor. Educar a mente, o olhar,
para o essencial, o que é indispensável ver e perceber, é um exercício diário.
Lembro os passeios que dou pelo meu quintal, a forma absorvedora com que ocupo
a minha mente, com os meus pensamentos, o meu sonhar desvairado, desligando-me
por completo do mundo meramente feito de matéria, e a necessidade que tenho em
que os meus cães sejam os meus ouvidos, a minha alerta permanente, dos que
possam invadir o meu reino; no “mundo da lua”, ou, se for o caso, melhor
dizendo, na “lua do mundo”.
Mas
não desejamos que o dia tenha mais que uma noite. Talhados pela natureza, seja
ela qual for, para encaixarmos nesse tempo já definido, já assimilado pelo
corpo e pela mente. Estabelecemos rituais que se prolongam desde o nosso primeiro
dia, pouco se tendo alterado desde então. Pouco pode não ser o caso, mas
similar, havendo muitos resquícios imiscuídos no nosso ser. Precisamos de
dormir, de preferência, quando o dia dorme também. O nosso equilíbrio é imprescindível para
desenvolvermos em pleno todas as nossas capacidades, mesmo as
“desequilibradas”. Regenerar forças, alimentar com descanso a mente para que
possa interiorizar e guardar a informação recolhida durante “o dia”. Ainda
somos assim, por quanto tempo mais, não sei. Mas será sempre longo, pelo padrão
do nosso tempo, do nosso jeito de medir o tempo. Mais rápidas são as mudanças
sociais, a nossa adaptação a esta ou aquela cultura, sistema governante, todo
um conjunto de obrigações e deveres, que depressa os assimilamos. Por vezes
contrariados, amuados, mas de nada nos serve. As maiorias, sempre as maiorias.
Ai de nós quando nelas não nos integramos, ou pelo menos, coabitamos. Revolta
incessante, no corpo, na mente e na alma. No corpo que dorido fica das
imposições. Na mente por não compreender tais desígnios. Na alma, por nunca a
querermos perder, a querermos vender ao “diabo”. Com um corpo contrariado, uma
mente desvairado, ainda vamos lá. Mas sem alma, desprovida desse algo que nunca
sabemos bem definir, é que tudo perece, tudo se esvazia, ficando sem sentido,
sentindo o não querer tal existência, ao pó deseja regressar.
De
onde viemos e para onde caminhamos. Por mais desvarios que a mente possa
imaginar ou conceber, o corpo rezingar, a alma padecer. Saboreamos a nossa
estadia nesta aventura que é sempre a vida, o viver, o querer viver, o gostar
de viver, o conceber o nosso viver se tal almejarmos e, depois, o conseguirmos.
Porque desejar conceber um viver próprio é um desvario da mente, como se de
todo fosse possível, como se não estivéssemos fadados para num puzzle qualquer
encaixarmos. Apresentarmo-nos perante a vida apenas e só como um todo,
desligado de tudo, é acto petulante, de vaidade extrema, um desprezo para com
toda a criação da natureza, que todas as espécies interligou, por necessidade
ou desejo. Até a águia, que tão alto voa ou plana, necessita do alimento que
mais abaixo, ainda no ar, ou já na terra, se movimento, descuidado, na “lua do
mundo”. Sem esse alimento, poderia lá ela existir. Até as pedras bebem, quando se
impregnam da humidade que as envolve. Que mais não seja, para alimentar os
verdes musgos que depressa a elas se agarrarão. Somos lá senhores de andar
sozinhos. Se sós estamos, é à condição,
não por vontade nossa. Mesmo sozinhos, desejamos não estar sós, move-se em nós
todo um grito de revolta, contido, mas que decerto o queremos exprimir, mais
que não seja, em irregular escrita, nas direitas linhas de um qualquer
caderno. Que de memórias nem só a mente
se perfaz, se austera, necessitando que a água corra sempre na fonte, que dela
todos os dias bebam. Porque a sede não devemos matar, apenas saciar. Ai de nós,
se a sede matarmos. Como vamos saber quando precisamos de ingerir tão precioso
liquido para a vida dentro de nós alimentarmos? Descuidados nas palavras, na
valoração das pequenas impertinências que a natureza assim o quis, por de todo
o achar coisa útil. De sábios temos tão pouco, um saber de sabichões, quando
apregoamos falsos dizeres, para o mundo nos querer. Como se forjasse um
labirinto infinito, no pensamento, na mente alheia, para que descobertos ou
achados nunca o sejamos. De coisas simples sejamos. Se vasto conhecimento
tivermos, mais uma obrigação para todos compreender, a todos nos fazermos
entender. Que nosso propósito algum
seja, de muitos entendido, para muitos vivido. Mesmo de mãos no bolso,
caminhando e assobiando, que ainda assim, possamos cantar.
Que
a voz que se ouve, vinda de dentro de nós, não precise de ser apenas falada
para ser escutada. Que ela quebre o som do silêncio, num pequeno murmúrio
enquanto se vai desfolhando uma após outra, as páginas, com frente e verso, dos
passos que sozinhos não quiseram ficar, estar. Que a melodia ofegante do
assobiar, caminhante, se impregne no papel onde se vão depositando camadas de
palavras, sedimentando, tão desejado propósito de uma mensagem criar, tal rocha
viva, algum lar deseja encontrar. Adormecidas, até serem lidas, despertem, no
corpo, na mente e na alma, o propósito da sua criação. Compreendidas,
entendidas do jeito de cada um, de quem as quiser para si. Entrelaçadas nos
sonhos, dispersas numa demorada conversa, possam habitar, de novo ganharem
vida, que com vida foram imaginadas e criadas. Que o corpo, a mente e a alma me
deixem nelas acreditar, sem me magoar, sem mais nada do que com elas eu falar,
assim desejo estar. Pequeno pedaço de papel, a ti me confidencio com este
bocado de tinta, pequeninos desenhos vou criando, e todos juntinhos, palavras
formando, que desejo agrupar, todas de bem umas com as outras, muitas histórias
irão elas me contar, aquelas que quem as criou lhes contou. Ao ouvi-las,
sonharei baixinho, com castelos de torres muito altas, bandeiras de todas as
cores, desfraldando ao vento que será sempre ameno e macio. Um sono tranquilo se
apoderará dos meus sonhos, comigo continuando a sonhar, sempre baixinho.
28 de Novembro de 2012