domingo, 23 de dezembro de 2012

Natal


Natal


Natal, Natal, sentido e profundo!...
Nascimento de uma esperança,
pequena criança,
trazendo o seu amor ao mundo.



quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Desejo









Desejo

Desço pelo caminho que leva ao cimo do lugar. Desço, pois mais acima, já entre o denso pinhal que a envolve, quase a chegar ao lugar da Estrada, se situa o meu cantinho, das noites e dos dias que por lá permaneço. Desço um pouco, para contemplar, junto à casa do Sr. José do “Norte”,  o telhado das casas do “meu” pequeno lugar, pequena aldeia que por aqui foi crescendo, em redor uns dos outros. É ainda manhã, não muito cedinho. Vêem-se para o lado nascente, onde no fundo das encostas corre, ou apenas caminha, o meu querido rio arda, pequenas neblinas brancas que se espreguiçam em direcção ao sol, ao céu.  São suaves ao olhar, divinamente leves, por ali dormiram, acordando com o dia, esfumando-se no ar, diluindo-se sem deixar rasto. Mas que são agradáveis de contemplar  de ficar um pouco mais a tentar reter na retina esta visão deslumbrante, de um acordar calmo e sereno, demorado, sem pressa de se diluírem, tornarem-se invisíveis ao meu olhar. O dia tem uma claridade cristalina, apetece sentir todos os tons refrescantes que o olhar absorve, a alma sente. As montanhas, mais ao longe, dispõem-se como pequena ondulação num mar sempre calmo, apenas se mexendo quando estas neblinas acordam, decidem levantar-se em direcção à luz, ao calor do sol que vai espreitando no cimo da encosta mais longínqua.
                Algumas chaminés já fumegam, algumas, mas poucas. O fumo é de cor cinza claro, suave, vai ondulando pelo caminho que, também ele, ao céu se dirige, lá mais para cima, mais além dos caminhos dos pequenos pássaros que há muito também já acordaram. Os telhados são de uma cor de tijolo quente, uns mais que outros, devido a não terem nascido no mesmo tempo, alguns, mais velhos, estão escuros, com bocados de musgo que ali se decidiram fixar, para de mais alto também poderem olhar o resto do lugar, assim como eu. É agradável, este sentir que com o olhar tudo se alcança, que tudo o que nos envolve, nos conforta, podemos abraçar, tentar entender o que cada telhado nos poderá contar, a vida que já viveu, as vidas que sempre cobriu, agasalhou da chuva ou do sol escaldante do pico de qualquer verão, quando se recolhe ao quinteiro, a uma sala mais fresca, para uma sesta dormir, uma conversa com o vizinho ter, sentado no carro de bois que no quinteiro também se abriga, por baixo, sempre, do telhado de telhas de barro quente.
                Depois de alimentar esta inquietude de tudo absorver, continuo a descer, até as portas dos quinteiros encontrar, as que dão para as casas. Já há muito que se levantaram, os poucos que por aqui caminham, que a vida sempre levam. Os demais já partiram, como partem todos os dias, como eu há pouco também partia, para onde o local de trabalho os chama. Nesta fase mais ruim da economia, da falta de trabalho, o lugar agradece pelos que dele deixaram de partir manhã cedo, em casa obrigados a ficar. Malandro do lugar, rindo-se lá bem no fundo, desta má sorte de alguns habitantes, boa sorte a dele que assim ganhou mais companhia para o dia passar. Não é bom saber que estão desempregados, mas sabe bem ter alguém para conversar, sentir que a vida habita com mais corações neste pequeno lugar, pequena aldeia. A ver vamos quem tem mais força, se as preces de quem quer voltar a arranjar emprego, se o malandreco do lugar, que com eles quer ficar.  Porque num passado não muito distante, os caminhos sempre se apinhavam dos que por aqui trabalhavam a pequena agricultura, da canalha que para a escola corria, da escola fugia para brincar nos largos, que eram mais que muitos, todos os sítios davam para brincar. Ainda lembro o bom gigante do sobreiro que ficava do lado de baixo da casa dos meus pais, no lenhal que era da casa dos “Alferes”, da casa “Domingos” e da casa da “Joana”, esta ultima a casa dos meus pais. Pois, eu sou o Fernando da “Joana”, filho da Sr. Rosária e do Sr. António. Era assim que todos éramos conhecidos, éramos da casa de alguém, dos do “Pólvora”, do “Martins”, do “Gago”, do “Melo”, do “Paiva”, do “Carvalho”, da “Joana”, da “Joana de cima”, do “Domingos”, do “Alferes”, do “Ângelo da loja”, do “Pejôa”, da “Miquelina”, do “Questina”, do “Beira-mar”, do “Regedor”, do “Louro”, do “Pinho”, do “Norton”, do “Mineiro”, do “Zé do norte”, do “Malaquias”, da “Isaura ou do Rodolfo”, da “Ferruge”, do “Salvador”, do “Castro”, e possivelmente mais alguma que eu agora não lembro. O sobreiro era mesmo enorme, de tronco abastado, não muito alto formava a sua copa, de braços majestosos e entroncados que davam para toda a canalha que se aventurasse, por eles andar, fazer “ninho”. Junto a ele estava pousada uma grande mó, que nunca quis ir para o moinho, que ainda hoje por lá perto anda. De verão era dos sítios mais procurado devido à sua sombra, ao fresquinho que era brincar à sua sombra. Mas tudo que tem vida, um dia acaba por partir. Já partiu há muito, deixou muitas recordações, a saudade desse tempo para sempre continuará a existir, enquanto dele me lembrar, a memória não me abandonar.
                Continuo a caminhada, agora na direcção do ecoponto, pois o pouco lixo que trago ali vou deixar, depois de separado conforme deve ser, para reciclar. Finda esta pequena tarefa, continuo a alimentar a fome do olhar e da alma, que por aqui gostam de passear. Mais adiante, junto à Capela de Santo António, encontro dois grandes amigos, sentado num enorme bloco de cimento, paralelepípedo rectangular, mesmo da altura ideal para se sentar, que ao que me parece, era do antigo posto do leite que ali existia, na casa do “Martins”. Onde hoje se sentam, já muitos litros de leite foram medidos, dos canados de todo o lugar. A produção de leite era uma fonte de rendimento muito importante para qualquer lavrador. Com uma, duas ou mais vacas, assim viviam muitas famílias. O seu leite que diariamente produziam, as crias, quase uma por ano, eram a fonte de rendimento que assegurava basicamente a sua subsistência. Existiam outras fontes de rendimento, mas mais sazonais, como a venda de vinho, de feijão. Não me lembro de ser hábito vender milho, que era a cultura mais importante da aldeia. O seu uso era para cozer o pão para a família e para alimentar os animais que se criavam. Outras pequenas vendas se faziam, a uma senhora que uma vez, ou mais, por mês por cá andava. Eram os ovos, as galinhas, os galos, os coelhos e talvez algo mais que agora não lembro.  Quem tinha tapadas, a venda de pinhal, pinheiros e eucaliptos, sempre constitui uma grande fonte de riqueza, quer na venda, quer no abastecimento de lenha para as lareiras que fumegavam todo o ano. Quem não tinha pinhais, sempre contava com a generosidade de quem tinha, e lhe cedia lenha para a sua casa aquecer, a sua comida cozinhar.
                Quem está sentado, não é um., mas dois grandes amigos: o meu pai, António, e o Sr. Manuel do Martins. De gerações diferentes, um com setenta e seis anos, outro, o Sr. Manuel, com noventa e tais anos. Este canto, junto ao muro da casa do Alferes, é abrigado, dá o sol de frente, não se está mal. No pequeno largo que fica em frente À capela, tem um pequeno cruzeiro mais a um canto, em frente à casa do Sr. Manuel e da casa do Sr. Joaquim do “Fundões” ou “Domingos”, como se goste de chamar. Na sua companhia estão ao todo sete gatos, de várias cores e tamanhos, todos enrolados, por certo à espera de alguém. Digo isto porque já sei o que se passa. Todas as semanas, não sei quantas vezes, passa por cá o peixeiro. Ao entrar no lugar vai buzinando para acordar os fregueses, dizer que chegou, que se apressem com os patacos, pois sardinha boa e outros peixe que o mar sempre dá, não falta e ele o que quer é despejar as “canastras”. Agora já não são canastras, como era antigamente. Nesses tempos, compravam-se às canastras inteiras para salgar, como se faz com a carne do por que em casa se matava. Agora existem as arcas frigorificas, tudo é diferente, talvez melhor para a saúde, não para o paladar, que até com “renso” elas se comiam, depois de demolhadas de um dia para o outro, como o bacalhau. Ali estavam à espera, pois o peixeiro, como bom Samaritano que se preze, lá lhes lançava algum peixe para logo de seguida desencadear luta acesa a ver quem agarrava primeiro. O que mais me admirava eram os mais pequenos como bufavam aos grandes, não largando o que agarravam, fugindo para um canto, de costas voltados, para mais sossegados se deliciarem. A luta pela sobrevivência é tenaz, defende-se a vida com ela própria, num acto de coragem imensurável. Adoro gatos, adoro tantos animais. Na casa do Sr. Joaquim “Domingos”, no cume do telhado, estão dois gatos em barro, um com um rato na boca e o outro para ele olhando, sem nada, talvez à espera que o rato se escape da boca do outro, para logo de seguido o apanhar. Mas ainda continua à espera.
                Depois da passagem, de os cumprimentar e com eles um pouco, porque é sempre pouco o tempo que passamos com os nossos, regresso a casa, caminhando e pensando daquelas coisas da vida que sempre acabamos pensando. Se o destino assim o quiser, se um dia tiver a mesma idade que eles, quem terei eu para conversar? O envelhecer pode ser um pouco assustador. Não que o seja de todo, mas pode ser se nos imaginarmos um dia sós, com pouca saúde para nos cuidar, dependentes de alguém para tudo e para nada. E se não houver esse “alguém”? As famílias vivem tempos difíceis, de conseguir conciliar tudo. Ou é o sustento que necessitam de granjear, ou o ficar cuidado dos progenitores ou de alguém que em casa esteja precisando. A escolha não é fácil, por vezes nem escolha existe, apenas a obrigação, a necessidade de trabalhar fora para ter pão na mesa. Ficam os mais velhos deitados à sua sorte, a alguma solidão. As estruturas sociais que se estão a construir na Freguesia são muito importantes. Ter um espaço para acolher quem assim o desejar, alguém para cuidar, para estar. Mas este povo da aldeia é por vezes um pouco “casmurro”. O que quero dizer, é que o seu apego à casa, às suas rotinas diárias, são um pequeno obstáculo a transpor, a sair da sua casa e conviver num local diferente, por mais acolhedor que seja. Não sei como vai ser a sua adaptação, se assim o querem. Digo isto porque o meu pai diz que para lá não quer ir, “nem morto”. A vida é feita de mudanças, talvez seja mais pacífico, mais tranquila a mudança, a existir. É um centro de dia, mas é muito importante, penso eu, para colmatar este tempo que todos os dias se passa, quantas vezes, sozinho em casa. Uma sociedade avalia-se no seu todo. Se essa sociedade não tiver possibilidade de cuidar dos que precisam, que tipo de sociedade é? Estaremos a caminhar para um tempo em que achamos que o melhor é “ desfazermos-nos” de quem não pode trabalhar, como já aconteceu tantas vezes na história da humanidade? É preciso reflectir, ponderar o que realmente estamos a fazer, ao impregnarmos toda a forma de viver de conceitos e obrigações que a isso necessariamente vão levar. Serão, já hoje, os nossos filhos e os nossos reformados, um peso para a sociedade? Penso desta forma, assim me interrogo, dado que cada vez são mais os custos com ter um filho, cuidar de alguém que precisa, e os apoios sociais estão a ser todos retirados, apenas nos impondo condições, não questionando se temos possibilidades para isso. Falo como pai, falo como alguém que também ajuda a cuidar dos seus pais já reformados. Falo do que sinto, da realidade que constato  Tiram o abono de família, exigem propinas, temos que suportar a estadia longe de casa de quem tem que se ausentar para frequentar o ensino que não temos perto de casa. Sem qualquer apoio, tudo são despesas, desde o alojamento, o transporte, a alimentação, as propinas, o material que é preciso adquirir. É uma grande aventura sonhar criar filhos num “país que parece não os querer”. É preciso dizer que se não existirem novas gerações, um dia tudo acaba?
                A caminhada de regresso é pequena, mas sempre a subir. Moro no “alto das Agras”, como antigamente assim dizíamos. Corre mais vento, é mais frio, mais sombrio devido às árvores que rodeiam a casa. Mas é onde gosto de estar, como todos e os seus cantinhos, onde nos sentimos aconchegados, nos sentimos em “casa”. Onde moramos juntamente com as recordações que se impregnaram nas paredes, em todos os cantos, em todas as tralhas que sempre vamos guardando, fazendo tudo parte de nós, como se fossemos um todo, um único ser. O ditado é velho: minha casa meu lar, minha rede eu pescar. Do tempo em que se nascia em casa, se vivia, nela se morria, ainda sinto esse existir para muitos. O seu apego às raízes, como uma árvore, que já adulta é difícil de mudar de sítio, quase sempre acaba por definhar, até morrer. Assim somos muitos de nós, quando nos levam, a vida nos leva para longe das nossas raízes. Se não for por vontade própria, as recordações serão o veneno que nos matará. Deixem lá estar os castelos de torres de marfim, que eu por mim, nesta humilde casinha quero continuar, nunca dela por muito tempo me ausentar. Não vá morrermos, eu e ela, pelas saudades que nos envenenarão. Deixem estar os que assim querem estar, deixem-nos até a morte os levar, que assim nada sentirão.
                Doença incurável, esta de que os aldeões quase sempre padecem. Mesmo que a vida os leve para longe, sempre de regressão estão, como as andorinhas que todos os anos sempre regressarão. Mas não devemos ter medo da vida enfrentar, de desvendar novos caminhos, mesmo que a outra “casa” nos possa levar. Se assim o for, que novamente se ganhe raízes, se arranje nova tralha para guardar, outros vizinhos com quem falar. Que não deixemos de viver, encarecidamente a mim peço, que em mim nasça uma nova força, que me apazigúe o peito e a alma, que de saudade não me deixe morrer, sem antes toda a minha vida viver. Só desejo, toda a minha vida, viver.

13 de Dezembro de 2012


segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

" A esmola "





“A esmola”

Não há muito tempo, já eu era um rapazola grande, era comum ver pessoas que andavam, de porta em porta, a pedir esmola. Não que hoje não aconteça algo parecido, mas de diferente envolvência, diferente nos propósitos, hoje pede-se, na maior parte dos casos, por razões que nos parecem um pouco duvidosas, ficando-se, na maior parte dos casos, com a sensação de estarmos a contribuir não se sabe ao certo para quê. Acredito que muitas vezes as pessoas que pedem são sinceras no seu propósito. Noutros casos, acho que apenas o fazem para alimentar certas situações menos claras. Pedir é sempre pedir. É algo que todos nós fazemos, uns mais, outros menos. Mas todos nós acabamos por necessitar dos outros, nesta ou noutra situação. Mas o pedir esmola, como eu lembro de algum tempo atrás, era diferente. Quem pedia, era para alimentar o corpo, talvez um pouco a alma. Muitos pobres que pediam, já eram conhecidos no lugar. Vinham arrastando o amontoado de trapos que os cobria, dormiam em qualquer palheiro ou quinteiro que se lhes dava para ficarem. Aceitavam tudo, agradeciam o que recebiam e não recebiam. Eram de uma simplicidade extrema, afáveis no falar, rezando sempre pela alma dos que lhes alimentavam o corpo e a alma. Acolhidos mais facilmente por quem também era pobre, por quem conhecia bem o que estavam a passar, por quem sentia o que lhes ia no corpo e na alma. Muitos dos que hoje davam, também já tinham andado a pedir, de lugar em lugar, de freguesia em freguesia. Sabiam bem das amarguras da vida, do não ter pão para si e para os seus, das mazelas que as doenças deixavam, tantas vezes incapacitados para trabalhar, vagueavam de porta em porta à espera que ela se abrisse, que dela saísse uma palavra, uma malga de sopa, um bocado de pão que tinha sido cozido já há quase uma semana pela dona da casa, no forno que ficava por cima da lareira ou noutro local, conforme a arquitectura da casa. Mas era sempre bem-vindo, por pouco que fosse, não se recusava. Se não desse para mais, dava para entreter a barriga de algum pobre animal que por vezes partilhava o mesmo caminho, a mesma sina.  Em casa dos meus pais, principalmente a minha mãe, todos os que se abeiravam da porta eram convidados a sentarem-se à nossa mesa. Muitos aceitavam, outros não, não sei ao certo porquê, talvez hoje possa imaginar, ficavam pelo quinteiro, sentados na beira do carro dos bois que ai se abrigava. A panela da sopa dava sempre para todos. O resto que havia, umas batatas cozidas com alguma coisa que se tinha ido buscar à salgadeira, onde se guardava a carne, depois de salgada, do porco que sempre se matava todos os anos, era repartido por todos. A conversa era em redor do visitante. A minha mãe, sempre ela, gostava de perguntar por este ou aquele, deste ou daquele lugar, pessoas que conhecera ou ouvira falar, e que já há muito tempo não via. Sabia que era uma forma de saber as novidades, alegres ou tristes, das outras bandas. Poucas vezes o visitante nos olhava de frente. Por timidez, uma certa vergonha, um orgulho que mesmo ferido gostava de manter, ia comendo e falando, quase ao mesmo tempo. Havia um senhor que era mudo, que apenas dizia alguns sons. Achávamos que o percebíamos, que sempre sabíamos o que queria. Também não era difícil, não se tratava de nenhum discurso filosófico, de uma argumentação sobre uma qualquer tese. Buscava apenas o que o que qualquer corpo e alma simples necessitam para se saciar: uma tigela de sopa e um sentir de uma carinho que sempre se lhe apegava às roupas, que eram muitos trapos velhos, e que, ainda assim, lhe chegava ao coração, à alma. Nunca senti que, na casa dos meus pais, a presença de quem pedia esmola fosse uma consumição, mais um a atrapalhar a porra da vida, que poucas vezes corria como se queria. Mas não é difícil entender este espírito generoso, calorento com que se acolhia quem se abeirava da porta, de uma casa onde a pobreza também ali morava. A pobreza, não a miséria, pois Deus nos tinha dado a sorte de termos alguma saúde para trabalhar, algum juízo para a vida sabermos levar. Isto porque a minha mãe, ainda hoje, lembra e conta as passagens que viveu em pequena ou as que lhe contaram, das vidas dos seus familiares ou vizinhos, entregues à mesma sorte. Hoje sinto, que ao receber todas estas pessoas, era uma forma de ela falar com os seus antepassados, retribuir desta forma quem os tinha acolhido, dar-lhes também o pouco que tinha. Pois Eles, os seus antepassados, “um dia” também andaram de porta em porta a pedir esmola. Tempo de uma miséria extrema, de não haver pão. Sem qualquer apoio social, como hoje felizmente existe, quem era pobre e deixava de ter forças ou saúde para trabalhar, só lhe restava pedir esmola. Vidas tristes, difíceis de imaginar os tormentos de quem vagueava de porta em porta, de Aldeia em Aldeia, de Freguesia em Freguesia, por vezes de Concelho em Concelho. Alimentando-se do que o dia dava, vestindo-se dos farrapos que lhes iam oferecendo, sem possibilidade de uma higiene mínima, expostos às condições climatéricas, tendo que arranjar forças e ânimo para todos os dias se levantar, das palhas onde pernoitava, tantas vezes partilhando o seu sono com os animais que estavam no quinteiro ou em algum palheiro, assim levar a vida, tentando manter alguma condição Humana, pois de Humanos estou falando.
                Lembra, a minha mãe, nas conversas que ainda temos, a sua falecida avó, que também acabou os seus dias a pedir de porta em porta, acabando por falecer num dia trágico, quando, por onde andava, um touro se soltou de um curral e a marrou, provocando-lhe a morte. A vida pode ter destas coisas. A vida pode ter tantas coisas, coisas que nem na nossa imaginação ousamos conceber. A vida pode tomar muitas formas, muitas mudanças, muitos desafios. Ao escrever estas lembranças, mesmo que não sejam das minhas vivências mas que fazem parte de mim por as ter ouvido e escutado com atenção, de corpo e alma, de mim já fazem parte, em mim já despertam pequenas lágrimas que ficam contidas, mas que foram choradas, fico a imaginar todo o drama que é alguém ter de sair para o caminho, bater de porta em porta. Se calhar, também eles já tinham ouvido as mesmas histórias que eu ouço de minha mãe. Também eles, esses que tem a grandeza de não se renegarem, de aceitarem pedir esmola, de aceitar a cruz que Deus lhes deu, sintam que pecado é roubar ou matar, que pedir é acto de fé, de acreditar que existe alguém para partilhar, mesmo por pouco que tenha. Também Jesus andou de terra em terra, aceitou comida e dormida de quem lha deu; e era Jesus, filho de Deus. Também Ele nos quis ensinar que nada de desonroso existe em pedir esmola, andar de porta em porta. Hoje, ao olhar o meu passado e o daqueles que comigo o partilham, sinto uma vontade imensa de olhar o céu, procurar por todas essas almas que já partiram, meditar um pouco sobre os sacrifícios da vida, nestas aldeias pobres, de gente que trabalha, de gente que ainda luta. Poucos já restam, dessa casta de gente honrosa, capaz de aceitar os sacrifícios que a vida lhes dá, lutar sempre sem esmorecer, acreditar sempre que amanhã será um novo dia, talvez melhor. Os pobres, os verdadeiros pobres, aqueles que foram assim criados, sabem saciar-se com pouco, ser felizes apenas com o cantar das águas nas fontes, do chilrear dos passarinhos que em seu redor procuram migalhas, do cantar com alegria, com alguém, uma canção triste do fado da vida. É na vivência diária que, entre si, vão alimentando o resto do corpo e da alma, do que a mesa não teve para dar.
                Hoje, se falta a electricidade já é um Deus nos acuda. Se a Internet não funciona, o mundo está para acabar. Se a televisão não dá, seja lá qual for a razão, já não se sabe viver, é melhor morrer. Se o telemóvel pifou, ai se não se arranja ou se compra outro, sem ele já nem se sabe respirar, é o Apocalipse.
                Dizemos que estamos em crise. Os meus filhos já andam preocupados que quando acabarem os estudos não vão arranjar trabalho. Eu estou desempregado. Que fazer? Que coisa poderei eu lhes dizer? Que pensar? Que coisas a mim contar? Por estranho que possa parecer, apenas me sinto angustiado quando não me sinto motivado para fazer alguma coisa, diferente, por simples que possa ser ou parecer. Só sinto falta é se ânimo não tenho, não me quero reger pelas leis da sociedade, do que ela dita ser importante ou essencial para se ser alguém, importante de preferência, rico ainda melhor. Quero antes descobrir outras riquezas, daquelas que não reluzem ao olhar invejoso dos outros, daquelas que a mim me saciam, me fazem contente, me dão um pouco de felicidade, não muita para não me envaidecer. Quero ter um vizinho com uma fogueira acesa, para que eu possa ir pedir um pouco de borralho, que trarei na palma das duas mãos, bem juntinhas, com cuidado para não me queimar, depois de primeiro me ter colocado um pouco de cinza, daquela que já arrefeceu, e de seguida um pouco de borralho, vermelho como um tição, que quando chegar a casa só será preciso assoprar para a minha fogueira também acender. Quero que as fontes tenham água, ou a nascente nas Bouças ou na quinta da Cavada, que fica mais abaixo, para poder encher os canecos e os baldes com água pura e cristalina, para à noite se cozinhar, a lavagem ao gado deitar, numa bacia me lavar, talvez apenas os pés e a ponta do nariz. Quero apenas no largo da capela a outra canalha encontrar, para correr e brincar, uma algazarra podermos fazer. Quero apenas á noite os poucos livros na sacola arrumar, antes de deitar, para no dia seguinte, logo de manhã, para a escola poder ir, e aprender, coisas do saber, coisas que há para aprender, o mundo conhecer e entender, um dia poder com ele também comunicar, me fazer entender.
                Ainda não faltou o pão, mas todos andam famintos. Que lhes falta? Que geração somos, que geração estamos a criar? Não somos capazes de viver com algumas dificuldades, continuarmos a lutar, a fazer o que entretanto nos é possível fazer, aguardando com esperança o dia de amanhã? Porque não acreditamos, porque não confiamos? Será o saber dos valores humanos que se estão a perder? Será o sentir que se um dia esmola se tiver que pedir, apenas vamos encontrar portas fechadas? Estão já elas hoje fechadas, para dar pão ou um conselho com alma e coração? Estamos também fechados, e por assim estarmos, todo o resto julgamos? Quem sou, o que sou, o que desejo ainda ser? Esta será a pergunta mais difícil de responder, para mim e talvez para todos. O que somos, enquanto seres individuais e sociedade? O que defendemos, o que almejamos conquistar, com os outros partilhar, para um todo contribuir? Que passos estamos dispostos a dar, que caminhos ainda seremos capazes de percorrer para com alguém ir ter? Seremos capazes de deixar o barco ou a charrua para seguir o chamamento de alguém?
                Gostaria que um dia todos fossemos capazes, incluindo-me naturalmente, de desligar a electricidade, a água, o gás, o telemóvel, enfim, toda a tecnologia a que estamos ligados, como se estivéssemos em algum hospital sujeitos aos cuidados intensivos, e ver se conseguíamos viver, continuar a respirar e a comunicar, a conviver, apenas por um dia, para podermos tomar consciência da dependência a que estamos sujeitos com a nossa actual forma de viver. Isto, está claro, se viver numa aldeia, tenha lareira, fontes e canados para se ir buscar a água, lenha guardado no alpendre para cozinhar. Eu não estou a afirmar que não é bom desfrutar dos benefícios da tecnologia. Apenas estou a sugerir que sejamos capazes de fazer este pequeno exercício, ver como reagiríamos. Considero muito importante tomar consciência de tudo o que somos, que nos envolve, e sermos capazes de, perante alguma dificuldade da vida, continuar a respirar, a socializar, a trabalhar, enfim, a viver.
                Quando fui para a secundária, com onze anos, comecei a convencer os meus pais para fazerem um pequena casa de banho, com sanita, lavatório, bidé e um chuveiro. A retrete que existia dava apenas para fazer as necessidades. Mas não tinha uma sanita, era apenas uma estrutura em cimento, com um assento em madeira, e que ligava directamente à fossa. Como era natural, o cheiro das fezes vinha para cima, era preciso deitar água com um balde para ficar mais ou menos limpa. Ficava no cimo das escadas, fora da porta da cozinha. Durante a noite, cada quarto tinha o seu penico, pois ninguém queria ir à retrete durante a noite, abrir a porta da cozinha, sair de casa para fazer as suas necessidades. De manhã todos despejavam o penico na retrete. E mesmo assim, já era muito melhor do que a que havia antigamente, no canto do quintal. Esta pelo menos ficava junto á casa, logo no pátio que dava para a cozinha. Para nos lavarmos, era usada uma bacia. A água era aquecida numa panela de ferro, com três pernas, muito preta. Maiorzito, como via os chuveiros na escola, e gostava, temperava a água e enchia um regador. Depois, já dentro da bacia, pegava no regador e deitava por mim abaixo, como se fosse um chuveiro. Gostava muito de o fazer, até que consegui lá convencer os meus pais a fazer a tão desejava casa de banho. Ficou no mesmo local da antiga retrete.  Era pequena, mas já dava. Com sanita, lavatório, bidé, e o tão esperado chuveiro. Tinha água quente que vinha de uma caldeira que se instalou na lareira. Estava perfeita. Foi uma grande obra na casa dos meus pais. Assim como as janelas de alumínio que vieram substituir as velhas de madeira, que já estavam podres. No meu quarto, e do meu irmão mais velho, o Joaquim, andava sempre a colocar plásticos no sítio onde devia ter vidros, para não entrar o frio nem a chuva. No quarto de fora, um que se fez ao lado da antiga retrete, para o meu falecido tio Manuel, dos Moreiras da Mata, irmão da minha avó paterna, a Sra. Ermelinda, era bem pior. Como não tinha telha a cobrir, apenas uma placa em betão, era muito frio no inverno e muito quente no verão. A placa em betão tinha rachado e metia água em alguns sítios. Tínhamos que desviar a cama e colocar bacias a apanhar a água. Quando caia geada ou neve, dentro do quarto a água também gelava. Dormia com o meu irmão, com uma carrada de cobertores, cobrindo até a cabeça, para se aguentar o frio. Mas éramos canalha nova, aquecíamos mais depressa os pés do que agora. Nascido e criado numa família pobre, vejo com outros olhos as dificuldades actuais. Também as sinto, mas não ouso blasfemar. Comparativamente, ainda vivemos bem melhor do que os nossos antepassados. Preocupa-me é o futuro, a forma como se estão a “criar” as novas gerações. O seu espírito de sacrifício, a forma de lidar com as adversidades da vida, sem nunca desistirem, nunca se quedarem, nunca procurarem caminhos fáceis que hipotecam o seu futuro, e os demais. A perseverança é uma qualidade que vai faltando a muitos. Existe um espírito “existencialista”, vivendo apenas o presente e um futuro muito próximo. Faltam estadistas, Homens de visão mais alargada, mais conhecedores das diferentes realidades dos que constituem a actual sociedade, que visionem mais além, que desafiam as presentes leis económicas, que lancem bases para uma construção sólida, com alicerces que sustentem o futuro. Hoje é comum ouvir-se “...isto não vale a pena”, como se de uma opinião sábia se tratasse. Quantas vezes é apenas o admitir de não se estar disposto a fazer algo que só as gerações seguintes iriam tirar proveito. Se fazemos uma plantação de pinhal, apenas se pensa naquilo que em vida possamos colher. Não está certo nem errado, mas que seria de nós se os nossos antepassados não tivessem deixado pinheiros a crescer, castanheiros, ainda sem dar fruto, na sua vida? Que tínhamos hoje para colher? O que vamos deixar para as gerações futuras colher? Já parecemos aqueles da canção”... Eles comem tudo, Eles comem tudo e não deixam nada.”. Devastados por estes princípios, assim sinto, que, por todos os meandros da sociedade, se vai padecendo. Pior que uma peste, por mais “vidas” dizimar, por mais difícil de se curar.
                Não motivado nem aliciado pelas esferas politicas, que posso eu fazer, que poderão todos os cidadãos, que como eu pensam, fazer? Será cobardia este alhear-se do que se passa e decide nas reuniões de uma Junta de Freguesia ou de uma Assembleia Autárquica? Será preciso dizer que está errado, quando de outra forma não o pode ser? O que move os nossos representantes políticos, à luz da constituição do regime democrático que nos governa, ou desgoverna, a deliberar por tais caminhos? Ao conhecermos um pouco melhor os senhores do poder, seja ele em que esfera for, verifica-se que pertencem quase exclusivamente a um determinado sector da sociedade, mais abastada, ocupando uma posição confortável na hierarquia social, pois ao contrário do que muitos dizem, sempre existiu e existirá. Isto, por si só, nem é bom nem mau, é apenas um constactar um facto real. A pergunta que a mim coloco, é muito simples: isto é uma lei sagrada da matemática, ou é algo mais complexo, abrangendo muitos outros significados? Poderão estes Senhores, nascidos e criados longe das portas de quem anda ou já andou a pedir esmola, compreender as dificuldades dos muitos pobres, as suas ansiedades como seres Humanos, no dizer, iguais?
                A dor é algo difícil de quantificar, talvez impossível de mensurar. Cada um sente de forma diferente. Poderei eu dizer que sei a dor que alguém sente, se nunca estive em situação idêntica? Poderei eu teorizar, se nunca essa realidade vivi? Para muitos conceitos isso acontece. Para outros é mera utopia, de quem deseja lavar as mãos, encenando uma falsa caricatura, mostrando o seu desdém em forma de sabedoria. Uma forma hipócrita de parecer bem, aos que de bem nada tem. Porque quem realmente sente, vive a vida de uma forma mais cristalina, a estes, esse lamurio nada dizem, ou melhor dizendo, apenas dizem da hipocrisia de que é feito. Porque apenas agindo, fazendo algo para atenuar esse sofrimento, se compreende que se esteja “sentindo” a dor desse alguém que sofre. Não busco a perfeição nas palavras nem nos actos. Apenas me interrogo quando vejo certas barbaridades cometidas á luz do direito, do poder que tem. E nada os incomoda, dormem de consciência tranquila. Dormem o tanas, que raio de consciência podem lá ter. Apenas se iludem nas mentiras que muitas vezes contam, na esperança que se torne verdade. Verdadeiros alquimistas no mistério da transformação. A um povo acomodado vão enganando, iludindo. Mas porque o fazem? Esta talvez seja, sempre, a minha maior interrogação!    
               
    

10 de Dezembro de 2012