Uma história, mas
pequena
Quero
contar-lhe uma pequena história. História porque conta coisas de dois amigos,
das suas aventuras, junto aos pequenos ribeiros, ao rio Mau e ao rio Arda, do
lugar das Juntas e da Lameira-Branca, que já ficavam do outro lado dos rios, da
“caça” ao peixe à mão, ou da pesca com a pequena cana-da-índia e um bocado de
sediela onde se prendia o chumbo e o anzol com uma isca, uma minhoca ou um
gafanhoto, das correrias encosta abaixo, dos banhos na levada do Carvalho, em
rio Mau, ou na do Alferes, do Martins ou do João do Vaz, no rio Arda. Quero
contar das pontes de madeira que atravessavam os pequenos ribeiros, das de
pedra com arco Romano, como a de rio Mau, que já eram maiores para passar
pessoas e os carros, os carros de bois, ou outros que houvesse. Como qualquer
história, desenrola-se num certo tempo, num certo espaço físico, tem as suas
personagens, mas não lembro o princípio e não sei se tem fim. Vai ser uma história
pequena e, ainda assim, incompleta. Mas quero conta-la à mesma. Não por ter a
certeza que vai gostar, mas porque sinto gosto em conta-la, à minha maneira, do
meu jeito, aproveitando enquanto a escrevo para relembrar, o que foi ou
simplesmente poderia ter sido. Porque nunca se conta o que realmente foi. Ou
falta ou tem a mais, ou apenas é imaginação. Não é uma conta de somar ou
subtrair, daquelas que se fazem com números, às vezes também se juntam letras,
como se fizesse algum sentido, pelo menos para mim, quando pequeno e via alguns
cadernos ou livros de quem já andava para ser Doutor, ou coisa que o valha.
Tinha algum jeito, somar letras com números, quem diabo se lembrou de tal
coisa. Porra para os senhores Doutores, tamanha confusão faziam com as coisas
simples: números são números, as letras são para fazer palavras, e não se fala
mais nisso.
É
apenas uma história. Como tantas histórias inventadas, querendo saciar o meu
desejo de algo escrever. O desejo de a partilhar, escrevendo, com aqueles a
quem eu não a poderei contar de outra forma, para que também eu não a esqueça. Porque
todas as histórias inventadas, um dia serão “desinventadas” se caírem no
esquecimento, se escritas não forem, voltando tudo ao início, como se nunca
tivessem existido. Um pouco como algo que achamos ter acontecido, mas de todo
não nos lembramos, não havendo alguém que também o recorde. Mas será sempre uma
história dos sonhos que existiram ou queriam ter existido, mesmo os não
sonhados nem pensados. Os dois amigos nasceram numa pequena aldeia do interior
de um pequeno país, Portugal, ainda soberano na altura que esta história
inventada se terá passado. Como a maior parte das aldeias serranas, estava
confinada a um isolamento próprio de quem é recatado, gosta de estar apenas no
seu cantinho, quanto mais escondido melhor, para que não perturbem o seu estar
de alma tranquilo, de parco alimento para o corpo, mais para a alma que por
vezes se inquieta dos medos que todo o nevoeiro consigo traz, por mais ao longe
se não poder vislumbrar vivalma, caminhante ou estática. Porque todas as coisas
vivas deviam ter alma, se for o caso de algumas não terem. Mesmo as outras, que
existem sem vida, nos mostram tantas vezes feições e cantares que de gente
parecem. Companhia nos faz, mesmo que para ali paradas sempre estejam, sem
crescer nem mingar, apenas existindo. Como quase tudo nestas aldeias, a
dimensão é minúscula: os ribeiros são pequenos, os rios ainda bebés, a gente
pouca, as casas pequenas, as pontes frágeis, os caminhos estreitos, os largos
acanhados, os campos apenas leirotos, quase todos. Enfim, tudo é desta medida,
para não destoar, não parecer mal aos demais. Mas um Homem, por ser de estatura
pequena, não é meio Homem.
Ainda pequenos – a
pescaria
A pequena
aldeia ficava afastada de quase tudo, perto de quase nada. Achada por alguns,
mas poucos, escondida no meio de pequenas serras. Perto dos campos que
cultivava, perto dos ribeiros que a percorriam, mais ao fundo. Perto da
floresta de pinheiros, eucaliptos, Carvalhas, sobreiros, mimosas e muitas
árvores diferentes que eu não lembro o nome. Não era uma floresta muito densa,
apenas a vegetação mais pequena é que abundava nos barrocos, onde quase não se
cortava o mato. Ai se abrigavam muitas espécies nativas, ai encontravam refúgio
mais seguro. Porque a densa vegetação sempre era um bom esconderijo para eles,
longe das pegadas dos homens, das enxadas e das motosserras, longe do barulho
infernal que é sempre a presença humana. Só os cães é que por lá se aventuravam
quando acompanhavam o dono nos dias de caça, ao coelho ou a qualquer coisa que
se mexesse, voasse perto. De pequenas casas cobertas de telha, umas mais
pequenas do que outras. A vida era sempre vivida ao sabor dos tempos que a
natureza trazia. Sempre assim tinha sido, nem sempre haveria de assim ser.
Como em todas
as aldeias do interior, a criançada era meio criada nos largos do lugar, nas
brincadeiras que aconteciam em qualquer lugar que assim desse, mais junto a
casa deste ou daquele, mais no centro onde sempre havia um pequeno adro junto à
capela, a algumas alminhas. Antes ou depois da escola, depois dos trabalhos de
casa, não os da escola, numa fugida logo seguida de um pregueiro. As pequenas
tarefas faziam parte integrante de todos os dias que se viviam. – Trabalho de
criança é pouco, mas quem não o aproveita é louco – assim diziam repetidamente
as tias Micas, senhoras entendidas dessas coisas dos conhecimentos antigos.
Certas ou não, o que elas diziam era certinho, todos os dias tínhamos as
tarefas já mais ou menos definidas. Trazer a água das fontes ao caneco ou ao
balde para a casa e para os animais, ir buscar um molho de erva aos campos,
cortar a lenha para a lareira, fazer mais isto e aquilo que era preciso. Mas a
prole costumava ser numerosa, entre todos era um instante, dava sempre tempo
para esta ou aquela brincadeira. Os rapazes eram sempre os mais traquinas, os
que estavam sempre à espera de escaparem, muitas vezes levando com o cinto
quando há noite regressavam de mais alguma aventura. Mas mesmo sabendo do
castigo que os esperavam, continuavam a ceder ao desejo de correr para longe,
junto com este e aquele.
O Manuel e o
Joaquim eram grandes amigos, desde que nasceram, ou quase. O Manuel era o mais
velho, com um ano de diferença, nenhuma diferença fazia. Cresceram juntos,
juntos com todos os miúdos da aldeia. Quase todas as famílias da aldeia eram
abastadas, isto é, abastados no número de filhos e trabalhos para os criar. Mas
era assim, só a natureza ou o destino poderia contrariar esta lei da natureza.
Deste modo nem faziam falta os brinquedos para brincar ao faz de conta. Os mais
velhos tinham sempre alguém mais novo que seria a sua boneca, ou boneco, para
ajudar a criar. Criados como se podia, cedo começavam a ajudar nas lidas da
casa, no pouco que podiam fazer, sempre era bem-vindo. Depois vinha a escola,
aos seis ou sete anos, conforme o mês em que nascessem. Foi já na escola que
esta amizade começou a ter outro vínculo, mais coniventes nas brincadeiras e
aventuras que começavam a acontecer. Quando podiam, combinavam isto ou aquilo
para fazerem sozinhos, escapando do bando que nos largos brincava. Estavam
sempre a inventar aventuras, fazer coisas mais destemidas. No verão era onde
tudo mais acontecia. No verão, onde os dias eram maiores, as noites mais
pequenas. Quando o calor os chamava para junto dos pequenos rios que corriam lá
mais ao fundo das encostas, um pouco distantes dos lugares, onde havia os
lameiros, as levadas, os moinhos, peixe para caçar ou pescar. Gostavam de ir
deitar a água aos lameiros, nos dias em que lhes pertencia. De manhã, muito
cedinho, o Nelo gostava de ir ao lameiro das Juntas, assim chamados por ficarem
junto a esse lugar, que era muito pequenino, apenas com duas famílias, e por
isso assim chamado. De gente trabalhadora e acolhedora, este lugar era sempre
muito querido por todos no lugar. As desfolhadas no outono eram a altura que
mais gente juntava. Grandes lavradores, os grandes canastros e as pipas cheias
de bom vinho. Gostava de ir só para passar as duas pontes estreitas, feitas em madeira
(dois troncos de eucalipto que chegavam de uma lado ao outro e tábuas pregadas
neles para se poder caminhar), que atravessavam o ribeiro que vinha do lado da
Barrosa e o que vinha do lado de Vér. As pontes só davam para passar pessoas,
uma de cada vez ou em fila indiana. Eram muito frágeis, com corrimão para se
apoiar, dado estarem ainda altas, uma a uns quatro metros de altura, e a outra
a cerca de dois metros. Os dois ribeiros ali davam as mãos, continuavam a
caminhada juntos, logo a seguir às duas pontes. Entre os dois ribeiros existe
uma encosta que termina no local onde se faz a união dos dois ribeiros. No
triângulo de terra que se formava antes dos ribeiros se abraçarem, que era uma encosta
bastante íngreme existiam dois moinhos, um mais acima que o outro. A água que
fazia girar o primeiro não tinha tempo para descansar, entrava logo no cubo do
outro moinho para o fazer também girar. Achava engraçado este aproveitamento
devido ao forte declive da encosta. Assim a água que vinha de uma levada dava
para tocar dois moinhos, bem pensado.
Quando lá
chegava, a primeira coisa fazia, era tapar com uma pequena porta de madeira, a
saída da levada para o rego que ia para os campos. Ele sabia que os peixes
durante a noite se aventuravam por esse rego para procurar comida, algum
gafanhoto que caísse na água, ou outra coisa qualquer que desse para comer.
Muitas vezes lá encontrava ele peixes grandes que ainda por lá andavam. Depois
era só esvaziar o rego e caçar o peixe escorregadio com as mãos. Mas o Manel
apenas gostava de caçar os peixes, não de os trazer para casa para comer.
Caçava-os e de seguida soltava-os, depois de os ter sentido junto a si, de os
olhar de mais perto. Gostava era de os ver a nadar, a esquivar-se logo que ouviam
algum barulho, sentiam a sua presença. Certo dia trouxe um numa saca de
plástico com água, ainda vivo. Quando chegou ao lugar, o peso de consciência
foi tão grande que teve que o libertar, soltando-o no tanque grande que havia
no centro do lugar, junto ao adro da capela, que era cheio pela água que vinha
das minas que existiam lá para os lados da Barrosa. Nunca mais o viu, decerto
terá morrido pois se calhar não se adaptou àquela água, talvez diferente da do
rio, talvez por estar só, talvez...
Certo dia
combinaram ir ao peixe para o rio Mau. Depois da refeição do meio-dia, do
jantar assim lhe chamavam, lá se meteram a caminho. Não era muito longe.
Meteram pelo Pouso, que era mais a direito, mais íngreme, lá desceram em direcção ao rio. Demorava cerca de vinte minutos a lá chegar. Iam começar pela
ponte da Feitoria e acabar junto ao moinho dos Herdeiros, já lá mais em baixo,
passando pela levada do Carvalho onde iriam dar alguns mergulhos. Na ponte da
Feitoria era agradável, não muito funda a levada, dava também para nadar. Mas
tinham comido há pouco, era melhor esperarem. Do lado de baixo da levada, o rio
era muito sinuoso, com muitas poças, não muito fundas, onde havia muito peixe,
dava para agarrar à mão, isto quanto dava. Por lá andaram bastante tempo, mas
com pouca sorte. Eles sempre se iam esquivando, mesmo quando se tentava agarrar
com as duas mãos, eles escapuliam que nem tiros, maus de agarrar, demasiados
escorregadios. E assim lá foram descendo o rio até à levada do carvalho. Ali já
deu para tirar a roupa, e em pilão, lá deram uns valentes mergulhos. Mas sempre
olhando em volta, não vá andar por ali alguém e os visse naquela figura. O pior
de tudo era quando alguém escondia a roupa. Aí era o cabo dos trabalhos. Por
isso, muitas vezes levavam a roupa para o outro lado do rio, onde ninguém
podia chegar sem eles darem por isso. No final era o sol que fazia de toalha,
os secava. A tarde ia passando, a pescaria sem render nada, mas não havia
problema.
- Porra, hoje
não caçamos nada. – Refilava o Nelo para o Quim.
- Deixa lá, desde
que não nos aleijemos, está tudo bem. – Respondia o Quim. Enquanto iam
conversando disto e daquilo, lá iam descendo o rio, ora por terra, ora dentro
dele com as calças arregaçadas. Já tardinha resolveram tentar a sorte pela última
vez, junto ao moinho dos Herdeiros. Ali o rio era baixinho, tinha muitas pedras
grandes onde o peixe se escondia. Com as mãos lá iam procurando por entre as
pedras, na esperança de agarrarem algum. De repente o Manel solta um grito e
atira algo para longe, todo a tremer. – O que foi, o que se passa?- perguntou o
Quim sem saber a razão de tanto alarido.
- Era uma
cobra, agarrei uma cobra! – Exclamou o Nelo ainda a tremer. – Por hoje já
chega, não meto a mão debaixo de mais nenhuma pedra – dizia o Nelo enquanto se
apressava a sair da água. O Quim é que não conteve uma gargalhada demorada pelo
infortúnio do colega. O caso era para rir. Bem, não sabiam se era para rir ou
chorar, pois tamanho cagaço iria demorar a esquecer. Por certo tão cedo o Manel
não ia aventurar-se a meter a mão debaixo de uma pedra para caçar peixe. E a pescaria
tinha sido dada por terminada, com os dois amigos regressando a casa de mãos
vazias, um ainda a tremer do susto, mas sempre na galhofa, sempre a contar mais
do que aquilo que realmente se tinha passado, afinal a cobra era enorme. Já
levavam que contar á rapaziada do lugar, a história iria sofrer algumas
alterações, mas continuaria a ser verdadeira, juravam por tudo de mais sagrado.
A caminhada de regresso a casa era a que fazia doer a barriga das pernas. Sempre
a subir, porque havia o rio de ficar lá no fundo? Subir o Pouso era a parte
pior. Muito íngreme nem dava para passar com o carro de bois, quer a descer ou
a subir. Para cima não conseguiam puxar o carro, para baixo a canga passava à
frente dos cornos, ainda os esganava.
- Vamos mais
depressa, ainda tenho que levar a água para casa, do fontanário da Capela – Ia
dizendo o Nelo ofegante com a caminhada. – Também eu, também eu. – Respondia o
Quim, intervalando o falar com o respirar mais acelerado. Nesse dia a chegada a
casa fez-se quase noitinha. Os irmãos não se pouparam nos comentários – Vai ser
o bonito quando o pai souber, ai vai, vai. – Dum lado e do outro não faltaram
alertas para o que já sabiam que os esperava: um pregueiro e talvez algumas
palmadas no rabo.
Ainda pequenos – as
lutas
Isto
das brincadeiras entre os miúdos tem muito que se lhe diga. Tão depressa estão
bem como andam à pedrada uns aos outros. Todos têm uma alcunha, há sempre uma
história para rir deste e daquele.- Oh Manel carrapicel, ata a pila com um
cordel, vai há missa com umas calças de papel – E era uma risada geral, só para
enfurecer o Nelo que desatava a correr atrás deste e daquele, mas todos se
escapuliam. Mas nem sempre as brincadeiras ficavam por aqui. Havia muitas vezes
que as coisas chegavam a vias de facto, havendo grandes lutas entre os
diferentes bandos, porque isto da canalha, há sempre vários grupos que disputam
ao certo não sei o quê. Muitas vezes não chegavam os arrufos e alguma disputa
braçal, uns biqueiros, uns trambolhões. Tudo piorava quando se viravam a atirar
pedras uns aos outros. Quantas vezes se acabava a ir para casa com a cabeça
rachada. E em casa ainda se apanhava mais. O melhor era esconder, não se
queixar. No adro da pequena capela existiam duas
oliveiras e, em redor delas, um manto de erva verde e fofa, onde se juntavam
para brincar. O adro também dava para jogar à bola, mas sempre com medo por
causa dos vidros da janela da sacristia ou do telhado. Na maior parte das vezes
jogava-se descalço, pois descalço quase sempre se andava. O pio era quando se
acertava nalguma pedra, lá ia a unha do dedo grande. O curativo era um bocado
de terra para o sangue parar. E estava feito. Parecia que nada lhes pegava, “
em coisa ruim, doença não pega”.
As
brincadeiras eram muitas, conforme a altura, conforme a disposição, brincava-se
disto ou daquilo. Muitas vezes as coisas não corriam bem, haviam muitas
disputas, muitos amuos. Quando era o recreio da escola, era sempre um problema
para fazer as equipas. Todos queriam jogar do lado do Custódio, e não será
preciso dizer porquê. Mas a outra equipa ficava sempre com mais um ou dois,
para a coisa se equilibrar. A bola costumava ir sempre parar ao campo do
vizinho. Era o cabo dos trabalhos. Quando ele não estava em casa, tudo bem. Mas
quase sempre estava à janela, a observar, a ver qual dos magarefes lhe ia
calcar o quintal todo, os alfobres, alguma hortaliça que ficava toda
espatifada. Era o bem bonito. Se não tivéssemos pé ligeiro, lá ia mais uma bola
ao brejo. O tio Constantino assim se chamava, pois quase toda a gente mais
velha era tio daqui, tio dacolá. Não sei porquê, mas era tia Micas para todas
as Marias e por ai adiante. A pequena bola de borracha é que acabava com um
fim trágico: toda cortada aos bocados.
- Esta canalha
não tem mais que fazer? Dá-me cabo de tudo, seus estupores – Era a frase mais
comum que o Ti Constantino dizia lá da sua pequena janela, da sua pequena casa.
Já reformado devido à idade, tinha todo o tempo do mundo. Isto de ele já não
trabalhar era uma carga de trabalhos para nós. A professora por vezes
proibia-nos de jogar à bola pelas queixas que o vizinho fazia. Não estava para
se incomodar, a rapaziada que brincasse de outro jeito. Mas nós éramos uma
praga, não largávamos a eterna ideia de correr atrás da bola. Houve uma altura
que decidimos fazer uma vedação com estacas de mimosas, para a bola não sair do
recreio. A tarefa foi medonha. Todos, ou quase, ajudaram a cortar e a trazer as
mimosas que se recolheram nos montes que a escola rodeavam, a Norte e a Poente.
A Nascente e a Sul ficavam alguns leirotos do vizinho, que sempre à espreita
estava, debruçado na sua janela, a pequena janela da sua casinha. Não foi fácil
colocar a estacaria de pé. Tivemos que cavar junto ao muro da escola para as
enterrar. Mas a obra lá se foi fazendo. Pelo menos já muitas vezes a bola
deixava de saltar o recreio, fugir. Mas ainda assim continuava por vezes a
sair. Um remate mais torto, a bola lá subia em direcção ao Céu, acabando por
cair sempre na terra.
Ensinar
alguma coisa a esta rapaziada, era um pouco como pregar pregos em madeira seca
e com cerne. Nem à martelada se conseguia que eles entrassem, os pregos nas tábuas
e os ensinamentos na cabeça dos miúdos. A coitada da professora ia ao inferno
tantas vezes por dia, que o melhor era para lá sempre ficar. Quando a porta
estava fechada, as janelas serviam para muitos desertarem, tão fartos de estar
presos à cadeira. Queriam era correr e saltar, como gado bravio que não aceita
os freios, que não sabe andar à corda. Era o cabo dos trabalhos, para a
professora e para os pais.
Crescendo – a mudança
de escola
A
escola do lugar apenas dava até à quarta classe. Depois vinha a Telescola, que
ficava noutro lugar, na mesma freguesia. O Manel andava um ano á frente do
Joaquim, devido à idade. Não eram burros de todo. Lá iam aprendendo
mais-ou-menos, sempre passando de ano. Pois isto de reprovar era uma borga. No
final do ano todos queriam saber quem trazia a raposa, que era o mesmo que quem
tinha reprovado. Nunca trouxeram nenhuma para casa. Ainda bem, para eles e para
os pais. Passar mais um ano na mesma coisa era muito complicado.
Desta forma,
os dois amigos viam-se separados das brincadeiras diárias. Só no final do dia é
que se encontravam ou aos fins-de-semana. Mas sempre continuando a sua inabalável
amizade, às vezes com as suas crises, os seus amuos. Mas nada que o tempo não
sarasse, de regresso sempre acabariam por estar. As aventuras, a construção de
carros de rolamentos, as corridas pela estrada que não tinha carros, ou quase.
A descer era uma alegria. O regresso é que era mais cansativo, fazer de burro
de carga, pois a subir o carro não andava. – As estradas deviam ser sempre a
descer – Comentavam por vezes, como se isso fosse possível. O Manel lá se foi
habituando à nova escola. Não foi fácil, mas tudo passa, tudo se vai compondo,
tantas vezes ao jeito dos outros. Mas o regresso a casa, depois de quase uns
mil e quinhentos metros a caminhar, era a melhor parte do dia. Nesse tempo a
canalha andava sempre sozinha, ia para todo o lado sozinha. Bem cedo aprendia a
defender-se, a lidar com tudo que aparecia. O pior era quando chovia, chegavam
à escola encharcados. Muitas vezes acabava-se por adoecer com uma constipação.
Mas era assim para todos os do lugar. Tomavam conta uns dos outros. Felizmente
não haviam as monstruosidades de que hoje se fala. Ou se havia, para aqueles
lados ainda não tinha chegado, pelo menos que se soubesse.
Sem se
aperceberem, esta era a sua primeira separação, o ficar um em cada lado, à
semelhança do que o futuro já lhes tinha preparado, mesmo sem ainda saberem de
nada. Isto de crescer parece tudo um mar de rosas. Quando se é pequeno, assim
acontece este desejo de ser grande e forte, poder comandar o destino, o seu e o
dos outros, sem ouvir pregueiro, sem temer o cinto ou alguma vergasta. Mal
sabiam ainda que mais cedo do que alguém podia imaginar, iriam sonhar, querer
voltar a este tempo de menino. Mas o relógio do Sr. Tempo não para, nunca se
atrasa.
O Nelo tinha
esta nova aventura, de conhecer novas caras, de arranjar mais inimigos que
amigos. Porque era quase sempre assim, isto de juntar os vários lugares da
Freguesia dava no que dava. Era impossível escapar às rivalidades antigas entre
alguns lugares. Os maiores tentando sempre subjugar os mais pequenos, como acontece
em tudo na vida, com todos. Não aceitar o jugo, querer preservar a sua
liberdade dá sempre em batalhas verbais e não só. Mas como qualquer lei sagrada
da matemática, assim sempre acontece, não havendo forma mágica de escapar.
Firme nos seus desígnios, mesmo açoitado, não quebrava, não desfalecia. O seu
gosto por ser livre era a sua própria vida. Nada valia uma sem a outra.
Os livros
nunca lhe pesaram, nem a bola no recreio, nem o caminho de regresso a casa. As
primeiras saudades rebentavam naquele olhar que por vezes andava triste. Queria
voltar para a outra escola, queria estar onde tinha estado, onde já não podia
estar. Foi o ano mais difícil de que tinha memória. – Então Nelo, que se passa?
– Perguntava quase sempre o amigo Quim. A resposta era sempre a mesma: - Nada, está tudo bem. – Respondia o
Nelo, mas sem conseguir enganar o amigo, convence-lo das suas palavras. Os dias
desse ano foram todos maiores, mais tristes. Roía-lhe a Alma este estar longe
da primeira escola, aquela que seria a única a considerar sua. Então, no último
ano, na quarta-classe, tudo tinha sido diferente, maravilhoso em todos os
sentidos. O regresso dos que um dia tinham partido com os seus filhotes,
canalha da mesma idade, foi uma lufada de “diferente” que engrandeceu a pequena
aldeia. Eram olhares diferentes, meninos mais finos, mais bem vestidos, outra
forma de viver, mas não deixavam de ser miúdos. Olhados com algum espanto e
admiração por quase todos, eram o centro das atenções nesses primeiros tampos.
Um tempo que acabou por se prolongar na vida.
*
A grande mudança –
começar a trabalhar
O sexto ano na
Telescola marcou os dois amigos pelo reencontro na mesma escola. Foi um ano
muito diferente daquele que tinha acabado. As caminhadas para a escola eram
feitas sem o pesar de outro tempo. Mesmo havendo outros colegas, a sua ligação
ao Quim era demasiado forte, demasiado especial para ser substituída por
outros. Era habitual saírem no final da escola a correr, virados ao lugar,
passando pela paragem da camioneta que trazia outros colegas que estudavam já
na Vila grande. Havia alguns dias que eram coincidentes no horário, outros não.
Uma das brincadeiras que por vezes faziam, era tocar nas campainhas das casas
que as tinham. Quando o morador abria a porta já as pernas da canalha iam
longe, em correria ofegante, pelo correr e rir ao mesmo tempo, o coração aos
pulos.
- Um dia ainda
nos apanham. – Dizia o Quim que era mais moderado nas brincadeiras.
- Pois sim, e
pernas para nos apanhar. Eles que venham que não há medo. – E medo não havia,
já ao longe, espreitando para ver quem vinha à porta ver o que era.
- Estupores de
canalha. Um dia destes ainda vos apanho. – Ouvia-se lá do cimo das escadas da
casa onde se tinha tocado a campainha. Depois do pequeno susto, aquele que dava
emoção a tudo, pois se assim não fosse não valia a pena andar a tocar às campainhas
das casas.
No percurso
para a Telescola, havia uma casa grande onde morava apenas um casal já de
alguma idade. Tinham vários pomares, a maior parte de macieiras. Costumavam
vender a fruta em sua casa. Por vezes os dois amigos e os restantes companheiros
iam lá comprar. Bom, comprar alguma da que acabavam por trazer. Isto porque
entravam todos para gerar alguma confusão. Enquanto a Senhora ia pesando e
fazendo as contas com algum, outros mais atrás, iam enchendo os bolsos e a
sacola. Era um roubar apenas para alimentar o corpo, pois, fruta, pouca ou
nenhuma se tinha em casa e não se comprava que era muito cara. A maior parte da
fruta que comiam durante o ano era a que iam apanhando, rabaçando melhor
dizendo, pelos campos da lavoeira, onde a um canto dos campos quase sempre
havia uma árvore de fruto ou um vimeiro.
Esse ano
passou tão depressa que parece que não existiu. Um tempo em que já se falava o
que se iria ser quando se fosse grande. Os dois amigos ainda só pensavam em
divertir-se, nada de pensar já no trabalho. Mas as decisões tinham que se
tomar. Feita a Telescola, ou era começar a trabalhar ou continuar os estudos,
já no Secundário. Para o Nelo chegava cedo de mais esse dia. O Quim é que tinha
sorte. Mais um ano na Telescola, sem ter que pensar mais nada. Os professores
achavam que era uma pena aquele moço não ir estudar, aprendia tão bem, era
mesmo uma pena. O que eles não sabiam era que esta coisa de estudar não coloca
pão em cima da mesa.
- É tudo muito
bonito, mas quem é que trabalha? – Respondia assim o Nelo aos professores
quando o aconselhavam a continuar a estudar. Lá em casa todos trabalhavam,
todos ajudavam. Isto de continuar a estudar, já um rapazola grande, não era
muito fácil. A mãe e o pai não eram contra, apenas os preocupava os gastos. O
Nelo era um rapazito trabalhador, mas muito franzino, com pouca força de
braços.
- Até era
melhor que ele estudasse. Talvez arranjasse um emprego melhor, já que no duro
pouco se aguenta – Assim comentava sua mãe com as amigas. E assim lá se decidiu.
Era preciso ir com os outros maiores para ver como se fazia a matrícula. E mais
uma vez ia ficar longe do seu amigo. O Quim já lhe tinha dito que não queria ir
estudar, já estava farto de livros.
- Vou começar
a trabalhar logo que saia da telescola. Não falta trabalho. – Assim desabafava
o Quim, já pensando em juntar os tostões que fosse ganhando para comprar uma
motorizada, isto quando tivesse idade para tirar carta.
A
vida começava a ser bastante diferente. O Nelo a estudar e o Quim a trabalhar,
apenas tinham algum tempo à noite, isto quando era verão, e os fins-de-semana,
quando o trabalho o permitisse. O Nelo lá se ia adaptando aos novos colegas,
mas sempre esperando encontrar-se com o Quim para trocarem as novidades. As
namoradas ainda não tinham nascido, apenas alguma confraternização, pouco mais
que isso. Que as havia muito bonitas, lá isso havia. Mas estavam longe, não
eram para o seu bico. Os primeiros encantamentos já tinham acontecido no final
da primária, depois novas aparições durante a telescola, e iam sempre
continuando. As brincadeiras de grupo começaram, aos poucos, a tirar o lugar
que devia ser para o estudo. De ano para ano era mais difícil passar, até que
no nono ano aconteceu o esperado: a primeira raposa lá para casa. O Quim tinha
acabado a telescola e começado a trabalhar. Começou nas obras, para um vizinho
que fazia pequenos trabalhos. Adaptou-se facilmente, embora sendo um trabalho
duro, era mais robusto que o Nelo. O dinheiro ao fim do mês compensava as
canseiras do dia-a-dia. E foi sem grande surpresa que comprou um gravador.
Sempre gostaram de música, de fazer pequenos bailes para passarem o domingo com
as colegas do lugar. Quando era o aniversário de alguém, não podia faltar a
pequena festa com bolo.
Entretanto
o grupo alargou-se, já eram mais três compinchas nas brincadeiras e aventuras.
Mais nas brincadeiras, pois as aventuras eram mais restritas, apenas a três ou
quatro. É que há noite nem todos podiam sair, ficar um pouco até mais tarde.
Foi por essa altura que resolveram descobrir o que havia num armazém ali perto,
entretanto meio abandonado por falência da empresa dona do mesmo. Durante os
fins-de-semana começaram a inspeccionar as redondezas, a maquietar o plano para
à noite o realizarem. Não foi fácil decidir, mas a curiosidade era tanta que
não dava como escapar. Era preciso arranjar lanternas, ir sem fazer barulho,
descobrir forma de entrar sem chamar as atenções. Durante um desses fins-de-semana
em que aproveitavam para jogar à bola junto a uma serração que ali ficava
perto, aconteceu um pequeno acidente. Nessa altura o serrim não era
aproveitado, e as serrações para se desfazerem dele, faziam a sua queima ao ar
livre, ficando ali a fumegar durante dias ou semanas. Num desses passeios
resolveram subir até um monte de serrim que estava a fumegar, ardendo
lentamente no seu interior. O pior foi quando uma casaca em brasa entrou para
dentro da bota do Quim. Foi uma aflição a descalçar a bota para o tirar. Mas o
mal já estava feito: uma queimadura que iria dar que curar. Com este incidente,
nesse domingo a brincadeira acabou mais cedo. De regresso a casa, era preciso
colocar qualquer coisa para não piorar a ferida. – Vai ser o bom e o bonito
para eu ir trabalhar amanhã. – Suspirava o Quim com a lágrima de dor, não pela
ferida, mas pela preocupação de ter de faltar ao trabalho, de ter de explicar
em casa o sucedido. Mas na segunda-feira acabou por ir trabalhar, sabe-se lá
como. O espírito de sacrifício sempre foi apanágio dos mais humildes.
O
armazém ainda tinha alguns produtos alimentares, na maior parte fora de
validade. Mas isso não era problema, as conservas, o chã em saquetas, as
bolachas de água e sal marchavam que não era brincadeira. Depois da aventura,
eram repartidas, e cada um guardava o seu quinhão de tão gostoso e diferente
tesouro que era para as barrigas ávidas de sabores diferentes. O café em pó é
que era uma porcaria. Um dia o Beto despejou no seu quintal o mal fadado
artigo. A sua mãe é que achou tão estranho aquele pó preto que ali aparecera.
Acho que o Beto nunca lhe chegou a contar a verdade.
Com
todas estas aventuras, o Quim a trabalhar e a ganhar dinheiro, o Nelo, o Beto e
o Tono ainda a passear livros, as ideias começaram a ficar mais auspiciosas. Já
com aparelhagem de som e montes de cassetes que se iam comprando nas feiras,
não era má ideia ter um pequeno salão para as festas, até um pequeno bar. E a
obra lá foi ganhando forma. Para fazer o balcão era preciso umas tábuas grossas
e largas que se iriam colocar na borda do lagar que já não era usado. Bom, as
tábuas já sabíamos onde estavam. Era preciso trazê-las, pela noite para não se
terem de pagar. Mais alguns amigos se juntaram à aventura. Numa sexta-feira à
noite, lá se juntaram todos na casa do Beto e seguiram caminho, sempre com
poucas palavras. Todos sabiam o que tinham que fazer. O silêncio era a sua
melhor camuflagem, não vá serem apanhados e levarem uma carga de porrada do
dono e depois dos pais em casa. Tudo estava a correr bem até que já a meio
caminho no regresso a casa, ouviram e viram as luzes de um carro que se dirigia
ao lugar, mais acima, antes da curva que dava para a recta onde estavam. Foi um
salve-se quem poder a saltar para os campos na berma de estrada, que ficavam
mais fundos. O pulo não foi complicado dado a altura do combro de cerca de um
metro e pouco. O pior foi que o campo estava com água, ficando todos, ou quase,
ensopados após a queda. Mas o importante era encostarem-se ao combro para não
serem vistos. As tábuas tinham voado junto com eles. Foi por um triz que quem
vinha no carro não os descobriu. Bom, quando o barulho do carro se afastou
junto com as luzes, todos regressaram á estrada, e a galhofa era geral. Já
estavam longe da serração, não devia haver perigo, sempre dava para desanuviar
do cagaço que tinham apanhado. Uns mais molhados do que os outros, lá se
meteram novamente a caminho. Por aquele dia chegava. Deixaram as duas tábuas de
pinho em casa do Beto, onde iria ser o futuro bar, num salão que outrora já
fora uma adega, e cada um foi para casa dormir. No dia seguinte os carpinteiros
lá começaram a obra. O Quim era o mais habilidoso para estas coisas. O Beto era
mais para a música e ensinar passos de dança. O Nelo fazia as compras no
supermercado, tratava mais da logística das coisas. O Tono ajudava em tudo,
principalmente na música. E assim nasceu o primeiro bar na aldeia. A roda de
amigos eram os clientes habituais. Mais tarde, alguns moços mais velhos sempre
vinham espreitar a ver o que se passava. Eram bons clientes, pagavam bem, mesmo
quando acabava o rum e substituíamos por aguardente. Junto com a coca-cola nem
se notava, e estava feita uma cuba-livre.
O bar ainda
durou alguns meses, mais de um ano, até que já não satisfazia os sonhos da
pequenada que ia crescendo. Agora já se procuravam bares a sério, alguma discoteca
onde desse para entrar: eram os dezassete anos, os dezoito, já se estava a
ficar grande. A escola continuava a dar cabo da cabeça ao Nelo e ao Beto e ao
Tono. O Quim lá ia juntando os tostões para o grande sonho concretizar.
*
Dos
jogos no Barrocal e dos banhos no rio arda
Aos domingos
de manhã era habitual jogarem futebol. Onde houvesse um largo apropriado, lá se
juntavam maiores com mais pequenos. Quem jogava pior oferecia-se para ir à
baliza, para não ficar de fora. Pelo menos era o que o Nelo e o Quim ao princípio
faziam quando queriam jogar com os grandes. O Barrocal era um largo que ficava
na Avitureira, já no caminho que dava para a Lameira-Branca. A Lameira-Branca
era um pequeno lugar que ficava já depois do ribeiro que dividia as freguesias.
Apenas com uma família, o casario ficava no cimo de uma pequena encosta,
rodeada pelos campos de cultivo que se estendiam até esse ribeiro. Tinham um
moinho de água só para eles. Eram praticamente autossuficientes no que respeita
à alimentação.
O jogo durava
a manhã toda, quase sempre entre o lugar das Agras e o da Avitureira. As
pequenas picardias sempre existiam, ninguém queria perder. Era muito renhido,
todos davam o seu melhor. Depois da refeição do meio-dia, no verão é claro,
costumavam ir para o rio Arda nas suas aventuras. Quase todo o lugar gostava de
se aventurar nestes pequenos passeios, sempre um dia diferente nas vidas
rotineiras que quase todos levavam. Os maiores por vezes faziam pequenos
piqueniques nos lameiros que junto às levadas existiam. A canalha mais nova
queria era brincar na água. Um dia quase todos os miúdos do lugar resolveram
construir uma pequena jangada com os paus de eucalipto que ali perto existiam
de um corte de pinhal. Cada um levou um toro de eucalipto, conforme podia.
Depois de todos juntos, amarrados com cordas e umas tábuas por cima, lá se
meteram à água, entre a levada do Sr. João do Vaz e da do Alféres. Não dava
para ir muitos, mas era uma aventura diferente. O Nelo e o Quim, juntamente com
outros amigos, gostavam de andar em bóias, que eram as câmaras de ar de pneus
de camião, já usadas, do lado de baixo da levada do Sr. João do Vaz. Tinha um
pequeno rápido, onde as águas corriam mais veloz. Mais abaixo fazia uma
curva à esquerda, em que a água descansava para repouso dos aventureiros.
Depois era o regresso ao local de partida, e assim sucessivamente. Tardes bem
passadas, com muita genica de braços para não virar das bóias Apesar dos
perigos que qualquer rio constitui, nunca aconteceu nenhuma desgraça. Com a
ajuda de Deus e a entre a ajuda, lá iam cuidando uns dos outros para que
ninguém se afogasse. Era preciso respeitar o rio, conhecer os locais onde só
quem sabia nadar bem se aventurava. Poucos sabiam nadar bem. Os outros
desenrascavam-se, nadavam à “cão”. O rio Arda era muito bonito, com as suas
margens limpas, os lameiros cultivados, os moinhos quase sempre a trabalhar,
moendo a farinha que havia de ser pão ou alimento para os animais. A sua água
era uma bênção de Deus da mãe natureza. Criava peixe, regava os campos, fazia
girar as Mós do moinho. Em tempos também transportava a madeira e a lenha que
se fazia nas suas margens, e que em determinados locais era depois retirada do seu
leito, em sítios onde era acessível para os carros de bois a transportarem. Não
podia chegar ao rio Douro senão “perdia-se”, deixava de se poder alcançar. Os
nossos amigos, o Nelo e o Quim sempre participavam com o resto do lugar nestas
aventuras. Pouco sabiam nadar, mas que gostavam da água não havia qualquer
dúvida.
*
O
tempo vai passando
Os anos iam
acontecendo com a mesma frequência. A vida simples, o trabalho ou a escola,
componham a vida dos dois amigos. Nas férias grandes, e nas outras, o Nelo ia
sempre trabalhar para arranjar algum dinheiro. Dava para as suas coisas
pessoais, por vezes alguma ida a uma festa ou outra coisa qualquer. Durante
toda a secundária apenas foi a um passeio escolar. O dinheiro era sempre a
maior questão que se colocava quando se falava em comprar o que quer que fosse.
Os livros, requisitava-os na biblioteca, os que houvesse. Quando não havia, ia
pedindo emprestado, tirando algumas cópias. Tudo um pouco confuso, um pouco sem
se perceber bem como era possível estudar alguma coisa desse jeito. Quando não
tinha dinheiro para tirar a senha da cantina, entrava pela janela da mesma e
fazia de conta que ia repetir a sopa. As funcionárias permitiam que se
repetisse a sopa e algum pão. Muitos dias o almoço eram duas tigelas de sopa e
alguns pães. A roupa que usava eram na maior parte do irmão mais velho. Era
assim em quase todas as casas humildes. Mas não se aborrecia, não se sentia
incomodado com esta realidade. O Nelo desde cedo percebeu que existem os pobres
e os ricos. Entre estes existem os meios-termos, nem ricos, nem pobres. Abaixo
dos pobres talvez só os miseráveis. Ele era pobre, como a maioria dos amigos.
Mas isso nunca o tinha impedido de viver, sonhar. Nunca, até ao nono ano, em
que se começava a ver esta ou aquela miúda com outros olhos. Eram os primeiros
namoricos, o ficar parado apenas a olhar, sem vontade de ir jogar sempre à
bola. O seu mundo estava a mudar, não por vontade própria. Quando existiam
actividades em que era necessário pagar para se participar, ficava sempre de
fora. Custava-lhe muito ver os outros irem num passeio, numa viagem de
finalistas, e ele sem poder sequer sonhar em ir. O gosto pela escola começava a
desvanecer-se. – Tu é que tens sorte, podes fazer o que te apetece, já tens
dinheiro. – Desabafava tantas vezes com o Quim, que por vezes lhe emprestava
algum dinheiro em alguma aflição, como pagar o passe. Quando chegavam as férias
lá acertava tudo com o dinheiro que ia ganhar aos meios-dias, ou às semanas
para quem lhe dava trabalho. Desde a agricultura à construção civil, passando
pelo pinhal, tudo servia. O importante era trabalhar para ganhar algum
dinheiro. Quando o dinheiro é muito suado, melhor é guardado. Aprendeu desde
cedo o valor de saber gerir os seus gastos, nunca entrando em maluquices, nunca
explorando o suor dos pais. Era algo que mantinha com respeito, uma forma de
altivez.
Durante todo o
tempo em que frequentou a secundária, um dos melhores momentos do dia era o
regresso a casa, de autocarro. A escola ficava a uns dezassete quilómetros, o
que ainda dava para brincar um bocado durante a viagem. Da paragem do autocarro
até casa era cerca de um quilómetro, feito em caminhada. Quando vinham todos à
mesma hora, era divertido. Juntavam-se os do sétimo ano até ao décimo-primeiro.
O grupo dividia-se em mini-grupos conforme as idades. No inverno era aborrecido
por causa da chuva, já se regressava a casa depois de escurecer, já início da
noite, tudo escuro como um breu. As brincadeiras sempre aconteciam, tentando
meter conversa com esta ou com aquela, tentando agradar, os primeiros passos na
aprendizagem da corte que um dia teria de fazer à sua namorada. Ainda era cedo
para isso, mas as atenções já estavam para lá viradas. Tempos de brincadeira
simples, mas marcante no crescimento de todos os miúdos. Existe sempre alguém
que nunca se esquece, esta ou aquela brincadeira, uma conversa mais pessoal,
mais para além da pura brincadeira, uma troca de olhares que pelo momento em si
para sempre o iria acompanhar, ao pequeno Nelo, que ainda sonhava que todo o
mundo ficava já ali, ao seu alcance, à sua espera. Mal podia imaginar que o
crescer apenas lhe iria retirar a magia de outros tempos, de tantos sonhos, de
tantos quereres intensos que lhe invadiam a alma, o seu grande e curioso olhar.
De uma forma
natural os anos iam passando, sem uma real percepção do que isso em si
significava. Naquele tempo ninguém ficava mais velho, pelo menos a pequenada,
que apenas ficava maior. A caixinha de recordações ia crescendo como outra
coisa qualquer, sempre aconchegadinha para todos os pequenos tesouros que por
vezes a vida lhe ia dando. Naquela pequenina caixinha apenas cabiam as coisas
boas, as memórias que haveriam de ser. As más, não era preciso guardá-las, pois
as sacanas dificilmente se perdiam, dificilmente eram esquecidas. Das beldades
femininas que a vida lhe tinha dado a conhecer, muitas guardava em segredo,
para que não houvesse quem lhas roubasse, as recordações. Pois tudo era vivido,
quase sempre, no mundo do imaginário, tão adoradas princesas, mas que ele nunca
chegaria a ser o seu príncipe. Ciente de mal fadado destino, queria apenas
contrariá-lo em sonhos, dos sonhos de quem era senhor.
*
A
motorizada do Quim
Os tostões já
eram muitos e o Quim lá realizou o seu sonho: uma bonita motorizada, novinha do trinco para estimar, para muito tempo durar. Para o Nelo também foi uma
alegria, como companheiro já ia ter algumas boleias garantidas para as festas
ou outra coisa qualquer. Como um brinquedo novo, a euforia era mais que muita.
O Quim conduzia bem, muito senhor do que fazia. Ainda bem para ele e para os
que com ele tinham a sorte de viajar. As viagens eram sempre curtas, pelas
freguesias vizinhas, mais para o lado norte, a vizinha Escariz e Fermedo. Já
com dezoito anos, as aventuras tomavam uma dimensão diferente, os grupos agora
eram outros, as brincadeiras de infância tinham que ficar para trás. Aos
sábados há noite e aos domingos de tarde, percorriam-se sempre umas dezenas de
quilómetros. Foi um tempo muito passageiro, sem a magia do de outrora. Tudo que
acontecia ficava muito superficial, não o marcava tão profundamente como os
simples olhares de outrora, o simples conversar, o caminhar junto. Apesar de
toda esta nova euforia do resto do novo grupo, o Nelo começava o que seria o
calvário de grande parte do resto da vida. Sonhador de uma outra forma de estar
e viver, sentia alguma dificuldade em se sentir completo. Gostava muito dos
seus amigos, continuava a gostar muito do Quim. Nas pequenas viagens que faziam
em grupo à procura dos largos onde as moças se juntavam para conviver, sempre
descobriu agradáveis companhias, as miúdas de outrora que já tinham virado umas
mulherzinhas, e que, como ele, outros segredos da vida desejavam descobrir.
Ainda novo, a nostalgia nascia como uma seara que alguém havia acabado de
semear, e as sementes com o calor e a humidade despontavam para a luz do dia,
dando um tom esverdeado ao campo que ainda há pouco era de um preto/castanho,
sem vida. Mas o que nascia nele não era esse prado de um verde vivo, antes uma série
de indefinições, um sentir que não se deseja, apenas acontece porque tem que
acontecer, porque outrora se pecou, ousou sonhar mais que o sonho possível
(como se o sonhar devesse obedecer a alguma regra). Porque lhe acontecia, que
semente tinha nele germinado, de onde tinha vindo? O pequeno Nelo, de
aventureiro destemido e sonhador, começava a transformar-se em rapaz mais
sisudo, mais penoso no pensar, mais pesado no caminhar, como se aquele caminho
apenas o fizesse por obrigação: não ia, a vida é que o levava. Dai até o
secundário terminar, o ir para a tropa cumprir o serviço militar obrigatório,
foi um ápice.
Todos os
sonhos de menino pareciam findar, de uma forma trágica, como se um abismo se
tivesse abeirado de si. Com medo de mais um passo dar, ficava-se pelo que a
vida lhe ia trazendo, sem lamentar, resignado à sua sorte, ao saber que a
caixinha não mais iria crescer, pelo menos por agora. Quase todos os amigos
começavam a partir. Partiam uns para a faculdade, outros para o mundo do
trabalho ou de alguma arte que há muito já andavam a aprender, outros
emigravam. Sem uma arte aprendida, apenas com o secundário, as perspectivas não
eram nada animadoras. Sabedor dos custos de frequentar uma universidade, sabia
que não tinha qualquer possibilidade para tentar esse caminho, que não era o
sonho, apenas um caminho a percorrer para o alcançar: conversar com o mundo.
Mas para isso ao certo ainda não sabia o que fazer, se o ia fazer. Coisas
demais, que outrora lhe pareciam intocáveis. Por vezes o mundo fica lá fora, é
preciso sair de casa. Sair da sua aldeia era abandonar a sua casa, abandonar
tudo que o acarinhou, o berço que ao mundo o tinha trazido e ajudado a criar.
Das pessoas aos animais que sempre amara, aos carreiros que sempre conhecera de
cor, já no tempo que no ventre de sua mãe os percorria. Este pequeno cantinho
que um dia achou ser o paraíso para toda a vida, espaço não tinha para tantos
sonhos que ainda queria sonhar. – Então Nelo, como vai a vida? – Perguntava o
amigo Quim sempre que o encontrava aos fins-de-semana, já depois da tropa. –
Vai para ai, mais-ou-menos.- Mas ambos sabiam que era muito mais o menos que o
mais. O Quim entretanto tinha começado a trabalhar por conta própria, já tinha
a sua empresa. Era um sonho que tinha concretizado. Mas queria mais, queria
continuar a crescer, quem sabe um dia ser uma grande empresa Nacional. Sempre
tentava animar o amigo, tentando perceber o que realmente queria fazer da vida,
na vida. – Se eu ao menos soubesse! – Era a resposta habitual, numa conversa
que por vezes era um pouco cansativa, ao contrário do que acontecia no passado.
Para o Nelo, o crescer tinha sido o pior que lhe podia acontecer. Ele que
gostava tanto do mundo do conhecimento, que estava sempre pronto a opinar sobre
tudo e sobre nada, que poucas coisas lhe escapavam, sempre ávido de querer
saber mais, não sabia sequer o que fazer à sua vida. Ingratidão das
ingratidões.
*
A grande aventura
Por
esta altura já a vida tinha um ar muito sério, cheio de compromissos, obrigações.
Quem não estava a estudar na universidade, que eram muito poucos, e não tinha
um emprego, ficava por casa ajudando os pais na pequena lavoura que se fazia
para sustento da casa. Como assim sempre fora, pelo menos para uma grande parte
dos moradores. Hoje, como no passado, muitos tinham que procurar levar a vida
longe da aldeia, quem sabe se ele também não teria de emigrar, como outros
amigos o já tinham feito.
Para
o Nelo parecia que tudo tinha chegado ao fim, pelo menos para o pequeno
sonhador, que deixou apenas de ser pequeno. Com alguma instrução que tinha e
vontade de trabalhar, não foi difícil conseguir trabalho. Não o que tinha
sonhado, mas era trabalho, sempre certo o salário ao fim do mês. Mas era um
pouco duro fisicamente, dai resolver voltar a estudar à noite. Dois anos mais
tarde, a grande mudança na sua vida. Resolveu traçar um novo rumo para a sua
vida.
Há
coisas que nunca nos saem da cabeça. Bom, isto é, não sabemos ao certo como lá
entraram, mas que andam sempre a matutar no nosso pensamento, lá isso andam. É
uma consumição. Assim andava o Nelo até que a coisa já não dava para aguentar.
Tinha que fazer alguma coisa. Começou a sondar uns tios que viviam no Porto, já
há muitos anos. Eles é que o poderiam ajudar, pensava ele, mas sem dizer nada a
quem quer que fosse. Ainda não sabia o que ia fazer ao certo. O melhor era só
falar à família quando tudo estivesse realmente resolvido. O plano era muito
simples: arranjar trabalho e tentar estudar à noite. Podia ser que um dia
conseguisse tirar um curso superior. Isto porque precisava de saber falar ao
mundo, saber a linguagem que o mundo entende. Para isso não havia outro
remédio, tinha que voltar a estudar, regressar ao mundo do conhecimento. Este
sonhar acordado, despertou novamente o menino adormecido dentro dele. Os tios
apoiaram-no, dando-lhe o incentivo que lhe faltava. Trabalho era o que não
faltava na grande cidade: trabalho, não emprego. E em poucos meses a grande
mudança, para o melhor ou para o pior, ia-se dar, tal a determinação que o Nelo
tinha. Sabia que ia ser muito duro largar a pequena aldeia, os amigos. Não ia
para longe, mas a vida seria muito diferente. Já não seria morador, apenas
visitante quando as folgas do trabalho na restauração assim o permitissem. Só o espírito sonhador o conseguia apaziguar da dor que era afastar-se da família e
dos amigos. Parecia que ia para outro mundo.
E
ia mesmo. Não na distância física, mas na envolvência que a sua vida iria
tomar. Parece coisa de tolos, mas por vezes é assim que as mudanças são
sentidas, como eram sentidas no caso do Nelo. Não falava disto a quem quer que
fosse por vergonha, por este sentir provinciano. Não tinha vergonha de o
sentir, tinha era a certeza que os outros não o entenderiam. O melhor era mesmo
ficar calado, viver só para si. Nos dias que antecederam à sua mudança, fez
várias caminhadas pelos sítios que mais gostava. Era a sua forma de se
despedir, sem beijos nem abraços, apenas um olhar que achava ser entendido por
tudo o que o rodeava. Não estava senil, era assim que gostava de ser, os outros
não precisavam de saber do amor que sentia por toda aquela aldeia, por tantos
amigos que iria deixar de ver todos os dias. Mas sentia que precisava de fazer
desta vez uma caminhada diferente. A caixinha de recordações seria intocável,
fosse qual fosse o fim deste novo desafio na sua vida. Só pedia a Deus saúde
para vencer as adversidades, adaptar-se ao mundo dos outros, que esperava
também ser um pouco seu, a seu tempo. E num domingo à tarde, o Nelo apanhou a
carreira que o ia levar para longe, tão longe de tudo que tinha vivido até
então.
*
Sem conhecer mais
Depois da sua
partida, pouca coisa sei da vida dos dois amigos. Mesmo assim resolvi
escrevê-la para não me esquecer. O que se passou a seguir com o Nelo, ao certo
não sei. Apenas sei que acabou por tirar o curso que tanto desejava. Por lá
casou e formou família. A caixinha de recordações da pequena aldeia, das
primeiras namoradas do lugar ou da escola secundária, tinha-se fechado, talvez
para sempre. Costuma voltar à aldeia algumas vezes por ano, principalmente nas
férias escolares, para trazer os miúdos. Restaurou a casa que era de seus pais,
e vai dando que fazer aos do lugar que lhe tratam do pequeno quintal. Talvez
seja a nostalgia de tempos aqui vividos que o fazem regressar, querer partilhar
com os seus filhos a magia que sempre sentiu pela aldeia natal. A ver vamos, se
a aldeia os cativa. Mas não acredito, as cidades tem tudo, são mais
apetecíveis. As aldeias são como a casa de um pobre: muito trabalho, poucas
comodidades. Os encantamentos que tem, apenas são capazes de os herdar os mais
sensíveis às coisas simples da vida, da natureza. É preciso compreender este
mundo rural, saber adaptar-se, gostar de plantar e ver crescer, respirar por
entre a floresta o ar puro, mais húmido junto a algum ribeiro, que no verão
refresca o corpo e a alma. É um tempo que passa mais devagar. Mas hoje poucas
coisas são iguais ao tempo em que cá viveu. Os moinhos caíram por abandono, os
lameiros estão a monte, os rios e as levadas densas de vegetação que quase não
dá para passar nas suas margens. É o abandono, as pessoas tiveram que partir à
procura de melhores condições de vida. A pequena agricultura deixou de ser
viável, as pessoas desejam outras coisas. Esta pequena aldeia tem a sorte de
não estar muito longe dos grandes centros. Muitos ainda optam por viver cá,
mesmo trabalhando fora. É a sua sorte, a sua salvação. Mas nem todas têm esta
sorte, ficam mais longe de tudo. A aldeia ainda vai tendo vida, vai tendo
gente. Será que a próxima geração ainda a vai querer, a vai amar do jeito dos
seus pais. Até quando?
O Quim também
partiu. Vive no centro do país, em Coimbra, onde tem uma grande empresa de
construção. Como o Nelo, também regressa esporadicamente à aldeia, por vezes já
combinados para se encontrarem. O Beto e o Tono também acabaram por partir.
Hoje vivem em Lisboa. Formaram uma sociedade num bar-concerto e habitualmente
fazem digressões pelo país e no estrangeiro como disco-jóqueis. A aldeia
continua lá.
Tudo
deve ter um fim. Tudo deve terminar no fim. Mas nem tudo tem fim, mas nem tudo
termina no fim, pelo menos ao nosso olhar, ao nosso entendimento.
Desconhecendo, o fim, tudo parece prolongar-se no infinito. Supomos, achamos
que, não temos a certeza do que quer que seja, pouco ou nada acabamos por achar
saber. Serão sempre mais as dúvidas que as certezas. E tudo começa com o
primeiro passo de uma qualquer coisa. No estado inicial, no início, se é que é
possível definir esse ponto imaginário numa qualquer vida, existência, tudo
existe num único ser, num único ponto. Ali se adensa tudo, e o ser nada
confere-lhe a certeza de tudo que é. Descolando desse ponto, seja em que
sentido for, a linha do conhecimento que adquirimos afasta-se de modo
exponencial das certezas que buscamos. Refugiamo-nos nas argumentações que
sempre encontram algo para se alimentar, para se agarrar, mesmo que nelas
próprias. Entrelaçadas, vão caindo num abismo, mas sempre entrelaçadas, já não
havendo onde se apoiar, onde se alimentar. Vagueando, como tudo o resto,
esperando alguma força invisível, que a atraia, a fixe junto a ela, a faça
girar em torno dela, para que não se sinta perdida na perdição que pode ser o
simples facto de se existir. Tantas vezes apenas nos sentimos saciados pelo que
ainda não alcançamos, que nunca iremos alcançar. Mas argumentamos numa certeza
absoluta que se assim fosse ou deixasse de ser, tudo seria perfeito, devia ser
na certeza absoluta o melhor caminho que devia ter sido tomado. Mesmo que
satisfeitos achamos estar, devêssemos estar, a alma é sempre de uma inquietude
que nos ultrapassa no entendimento, na compreensão. Só o cansaço nos pode fazer
acreditar que por hoje já chega.
Porque
se lembra esta pequena história, sem pés nem cabeça, sem grande coisa? Apenas
tento compreender, descobrir de que forma será possível não deixar morrer estas
pequenas aldeias. Não encontro o caminho, talvez não exista um caminho. Nos
tempos primeiros, em que elas começaram, na maior parte dos casos, foi porque
alguém fugia de outras maiores, para sua segurança, talvez fugidos de qualquer
coisa. Já foram férteis, criadoras de muito alimento que chegava para todos.
Mas as cidades estão sempre ávidas de nova gente. Se nelas não nasce, de outras
terras tem que vir. As aldeias vão fornecendo essa mão-de-obra mais castigada
pela vida, que aceita as tarefas que os outros têm vergonha de fazer, que não
querem fazer. Partem, tantas vezes parecendo “vender a alma ao diabo”, trocando
a sua liberdade em troca do bem-estar, da comodidade. Não querem passar a fome
que os seus pais e avós já passaram, querem dar aos filhos os brinquedos que
nunca tiveram. Depois, as gerações seguintes já não regressam, com receio, com
medo de aqui se sentirem sós, longe de um cinema, de um teatro, de uma boa
pastelaria, de um hospital se for necessário. As aldeias são o parente pobre,
aquele que se visita uma vez por ano, para não parecer mal.
Muitas
destas aldeias estão abandonadas, apenas restam os escombros do casario que
outrora existiu. Algumas transformaram-se em resorts turísticos, apenas para
turismo, sem uma vida própria, autossuficiente, dependendo dela e dos seus para
a vida levar. Talvez seja a única solução para que se preserve alguma história.
O passado é passado, nunca volta. A existir algo no futuro, sustentável, será
diferente, assente noutra realidade que não a do passado, penso eu.
Quarta-feira,
dia 02 de Janeiro de 2013