domingo, 14 de abril de 2013

Formiga amiga



    Mansores - Lugar das agras - Capela de Santo António - O pequeno sino da capela do meu lugar.
                                                                 

    Formiga amiga
- Bom dia senhora formiga,
  quer ser minha amiga?
- Não sei não, senhora gigante,
  ainda só a vi há um instante!
- Vá lá, apenas quero conversar,
  ter uma amiga para brincar!
- Mas como poderá lá ser,
  que coisas poderemos fazer?
- Brincamos ao faz-de-conta,
   mas sem eu ficar tonta!
- Não me parece boa ideia,
  tenho que trabalhar até à ceia.
- Não pode ser, só trabalhar,
  não há tempo para brincar?
- Que queres minha menina,
  tu és grande, eu pequenina.
- Mas eu sou ainda criança,
  dá-me alguma esperança!
- Eu vou por aqui andar,
  se quiseres podes observar!
- Eu quero mais, a sua atenção,
  senão ainda me dói o coração.
- Não pode ser, não poder ser,
  tenho muito que fazer!
- Não me deixe assim,
  que será de mim?
- Se queres ser minha amiga,
  deixa-me ser sempre formiga!

Domingo, dia 14 de Abril de 2013

Sem nome



                     Mansores - Lugar das Agras - Vista da capela de Santo António

Sem nome

Não me digas o teu nome.
Diz-me de ti, com verdade,
no rosto, na alma enorme,
teu jeito, gestos de liberdade. 

Não quero saber teu nome.
Só quero teu rosto guardar,
teu modo da vida alegrar,
mesmo na dor, na fome.

Se teu nome eu souber,
por certo irei esquecer.
Se me deres teu olhar,
eternamente irei guardar.


Quinta-feira, dia 11 de Abril de 2013

quarta-feira, 27 de março de 2013

Procurando



    Mansores, uma vista panorâmica do lugar da vila a partir do Calvário - lugar da Estrada.


Procurando

Dei-te os meus textos para ler,
Não tiveste tempo para o fazer.
Dei-te um pouco de mim,
De um jeito simples, assim.

Um tempo sem tempo para estar,
Um pouco com o amigo conversar.
Fiquei triste, o coração amargurado,
Num profundo silêncio guardado.

Invento uma mentira para não chorar,
Um querer não saber da verdade.
Serás ainda amigo, será saudade,
De um outro tempo só recordar?

Cabisbaixo, meu pequeno caminhar,
Caminhos pequenos, apenas vagueando.
Oh vento que me sussurras, neste estar
De alma vazia, por um amigo procurando.

Onde te posso encontrar, amigo?
Diz-me onde vais, que irei contigo.
Não te deixarei ir, assim tão sozinho,
Por esse carreiro, por esse caminho.


Quarta-feira, dia 20 de Março de 2013




domingo, 17 de março de 2013

Menino



    Mansores - Monte do Crasto - o Homem e a Natureza em Harmonia


Menino
Se ao menos eu me pudesse entender,
minha sorte, tudo que desejo ainda ser.
Quisesse eu compreender os universos,
das coisas e dos sentidos submersos.

Doí-me a alma por um vazio sentir,
Sem nunca o achar preencher.
Olho, penso, procuro descobrir,
que infame sorte a do meu ser.

Caminho entre dois mundos distantes,
Que procuro não confundir, equilibrar.
Não me decido, não me quero entregar
apenas a um só, todos somos amantes.

Sinto-me tantas vezes da vida ausente,
de quem não está só, mas assim sente.
Pudesse eu ser uma folha pequenina,
dançando ao vento, sempre menina.

Pudesse eu chorar de contente,
rir da minha pobre tristeza.
Não fugir de quem reza,
Não fugir de quem mente.

Pudesse, ao menos, menino ser
fundir-me na rocha, à beira rio,
Coberto de musgo, sem ter frio.
Assim ser, sem nunca ter de crescer.


Sexta-feira, 01 de Fevereiro de 2013

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Voando


    Mansores - vista panorâmica de uma parte do lugar das Agras


Voando

Vou juntando todos os pauzinhos,
que sempre encontro pelos caminhos.
Vou guardando todas as pedrinhas,
aquelas que estão mais sozinhas.
Para que coisa fazer ainda não sei,
mas ainda  assim as guardarei.
Se algo em mim um dia despertar,
será sempre coisa útil o guardar.
Assim como guardo sentimentos,
que de mim se vão desprendendo.
Temo perdê-los, isso não querendo;
quero vivê-los a todos os momentos.
Um dia vou construir pequena jangada,
Que não navegue, apenas se torne leve,
E assim se eleve no céu da minha alma,
E me leve ao encontro da minha amada.
Por cima das colinas irei planando,
Bem lá no alto, longe, aos pássaros
me juntarei, para lá do horizonte,
minha sorte buscarei, sem medos,
que no chão nunca irei cair,
tão perto do céu estarei,
tão perto do paraíso para onde quero ir.
Das pedrinhas uma torre farei,
Onde sozinho me fecharei.
Sempre à espera estarei,
de ti, que sempre amarei.

Segunda-feira, dia 11 de Fevereiro de 2013

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Sonhando


   Mansores - Lugar das Agras - " O meu berço de oiro"



Sonhando

Escrevo para adormecer a mente,
embalá-la, em suaves recordações,
pequena criação, imaginada.
Quero adormecer, todo o meu ser,
e continuar a longa caminhada,
aquela que ainda sonho fazer.
Dormindo, me levantarei,
por suaves encostas caminharei.
Lá mais ao longe, para além do olhar,
onde só a mente alcança, inventa,
meus sentidos despertam, posso tocar,
 os aromas sentir, leves murmúrios ouvir,
uma doce e suave claridade me afagar,
e, num suave gesto, teu rosto acariciar.
 Sentados, membros entrelaçados,
partilhando as mãos, olhos nos olhos,
na alma, o mundo dividindo por igual,
que num todo em nós se transforma.
Nessa quietude de movimentos,
embalando todos os sentimentos,
nos amaremos, nos idolatraremos,
sossegando o mundo em redor,
tudo transformando em amor,
no nosso amor, que ainda dorme,
acordado só no sonho, imaginado,
na tenra alma de criança sonhado,
tona-se adulto, sem nunca o ser,
sem nunca ter de crescer,
sem nunca haver de morrer.

Quinta-feira, dia 07 de Fevereiro de 2013 

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Carreiros


   Mansores - Vista típica dos campos de cultivo em socalcos





Carreiros
               
Talhados pelos pés, de gente cansada,
descalços ou arrastando algum calçado,
serpenteiam as encostas, todos os vales.
levam-nos a todos os lugares do mundo,
deste pequeno mundo, pois não há mais nenhum,
assim como este, feito à medida dos pés,
que por eles passam as vezes que puderem,
não as que quiserem.
De passo mais demorado quando encosta acima,
desenfreada corrida de canalha, encosta abaixo,
ou acima. Nem o pregueiro a apanha:
- Tomem lá juízo, tenham cuidado, ainda arranjam trabalhos!
- Raios partam a canalha, não ouvem, ou não querem saber.
Apenas da largura de ombro a ombro,
o mato ali não cresce. O chão polido,
suave aos calcanhares descalços.
Vistos de longe, quando o mato cobre gente,
mais parecem luras de coelhos.
Encurtam caminho, não as canseiras,
não o esforço, de canado à cabeça,
Algum molho de lenha ou carquejas,
Uma giga de erva cortado no lameiro.
O açafate com o comer para os Homens,
com algum cuidado, não vá o caldo entornar.
Para quem pelos montes anda a trabalhar,
lá mais em baixo, junto ao rio,
lá mais em cima, nas pedreiras,
aquelas onde a pedra é dura de roer.

Desde o começo do mundo,
deste pequeno mundo,
sempre existiram, nem sempre existirão.
Não conheciam dono nem senhor,
apenas os caminhares que por eles passavam.
Respeitados outrora, estimados,
pelo povo que labuta, caminhos sagrados.
Passava o pobre e o rico, o mendigo e o ladrão,
Todos à procura de ganhar o pão.
Para as festas nas Ermidas, lá no alto,
para os lameiros, junto aos rios,
às levadas, para os moinhos.
Para as pedreiras, lá no Castêlo,
onde a pedra dura, de granito,
deixava o corpo do pedreiro aflito.
Paulatinamente abandonados,
depressa foram apoderados.
Restam poucos, fica a lembrança,
ainda uma réstia de esperança,
de que estes ainda perdurem,
desejando o regresso dos caminhantes.

Aos carreiros que outrora ligavam toda esta pequena Freguesia de Mansores. Estreitos, apenas para se passar em fila indiana, alargavam-se quando alguém se cruzava em sentido contrário. Não se ficavam pela Freguesia, prolongavam-se por todas as Freguesias vizinhas com quem se fazia fronteira. Sem impacto ambiental, apenas se reconheciam pelo chão polido, sem vegetação. Alguns mais trabalhados, com pequenas escadarias, para melhor se ultrapassar os declives. Poucos ainda restam. Já poucos os respeitam, muitos foram tomados pelos donos dos terrenos com quem confrontavam. Todos assistimos de braços cruzados, não querendo levantar a voz, denunciar quem comete este abuso. O poder local é complacente e conivente nesta tomada de posse de muitos carreiros pelos proprietários dos terrenos que confrontam com os mesmos. O mesmo se passa com os terrenos ditos “maninhos”, muitos de uso dos aldeões para terem os seus lenhais, o mato para a cama do gado. Desde os primórdios que os seus antepassados fizeram uso deles. Agora, tudo é retirado, tudo é vedado, já pouco resta. Sinais dos tempos do Homem.


Ser livre




Ser livre

Quero resgatar-me do mundo,
comprar a minha liberdade, se preciso for.
Por algo que valha, que seja pouco o valor,
que o meu bolso não é fundo.

Na medida dos Homens foi avaliado,
para préstimo pouco ou nada valho.
Mas libertado não sou. Acorrentado
me prendem, como um bandalho.

Correntes de aço invisível, geladas,
com aloquetes sem chave, fechadas.
Se nada nem alguém me vale, me acode,
continuarei servindo quem manda e pode.

Vou rasgar as correntes, minhas vestes. 
Despir-me dos meus vícios, sacrifícios.
Morrerei fustigado pelos ventos agrestes,
mas livre, mesmo na minha condição pequena.

E já morto, poderei a liberdade viver,
sem nenhuma corrente me prender,
sem a algum dono ter que  obedecer,
sem nada haver, com nada para perder.

Sábado, 02 de Fevereiro de 2013



sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Destino



Destino
Fustigado pela vida, pela natureza,
percorro pequenos carreiros, estreitos,
Curvado, escondendo a face, a alma,
por vergonha, em suplício a Deus.

O olhar molhado pouco além vislumbra,
apenas um pouco adiante dos passos.
O frio molhado enregela a carne e os ossos,
de fracos trapos, pequena até a sombra.

Fraco atalho, este que tomei, escolhi,
lá mais atrás, numa das encruzilhadas
que a vida sempre nos oferece, fadadas
de cruel destino. E eu nada vi, pressenti.

Meus passos nunca me deixaram recuar,
poder atrás regressar, à encruzilhada voltar.
Se o fizesse, a memória se apagaria,
decerto o mesmo caminho escolheria.

Não foi da escolha o que hoje sinto,
mas o peito já quase não aguenta
tão impetuosa, a  grande tormenta,
dos elementos naturais, do que minto.

Fraco todo o meu ser, que não se contenta
nem com o destino, nem com a meditação.
Outra escolha não tomou, nem à condição
a quer ver, por medo de outra tormenta.


Sexta-feira, 18 de Janeiro de 2013


Chorando no berço




Chorando no berço
Abraça-me, leva-me contigo,
por onde vás, serei teu amigo.
Não me deixes aqui, a chorar,
apenas seguindo-te com o olhar.

Por mais que te custe, a mim será mais.
Leva-me no teu colo, no teu regaço,
assim apertadinho, num abraço,
que eu não choro mais.

Ainda não vás, se tiveres que ir.
Fica mais um bocadinho, o que poderes.
Pois sei que queres não partir,
não teres outros afazeres.

Leva-me no berço, na giga à cabeça,
que eu prometo não adormecer.
Ampara-me, para que nada aconteça,
Dá-me a mão para não estremecer.

Quero ir contigo para o lameiro,
Sentado apenas a olhar e a palrar,
Não vou chorar, não vou atrapalhar,
leva-me, ficarei sentado num liteiro.

Se não me poderes levar, me embala,
antes de ir, antes de partir, também a chorar.
Fica comigo no sonho, sempre a sonhar,
só acordarei quando ouvir a tua fala.

Quinta-feira, 18 de Janeiro de 2013

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Solidão




Solidão

A caminhada da vida, a minha e a de quem me rodeia, sinto que pode ser tudo, mas uniforme acho que nunca. É demasiado trivial fazer alusão às mudanças que naturalmente acontecem. Como qualquer caminhada, percorrendo qualquer caminho que escolhemos ou que simplesmente nos levou, a densidade com que nos embrenhamos nesse percurso será sempre o reflexo do nosso estado de alma, da nossa crença naquilo que fazemos. Acredito, sem qualquer hesitação, no que afirmo. Fazendo uma pequena meditação de tudo que acho alcançar sobre a minha realidade, o meu estar enquanto membro de uma sociedade, toda a informação que a mim chega, é sempre um repetir, talvez de forma diferente, do que eternamente se vai falando. Não sei se podemos escolher aquilo em que acreditamos, se somos forçados a isso. Penso que em muitas situações escolhemos errado, forçados ou não. Sempre existiram crises, divergências politicas e religiosas, os cristãos também já cometeram atrocidades, pelo menos assim acho quando olho o passado. Somos apenas Homens, nada mais do que isso. Podemos em muitos momentos nos sentirmos Reis e senhores de tudo, de todos. Mas a nossa condição Humana nunca nos abandonará. O que acho mais gratificante na vida é que um dia tudo tem um fim, tudo acaba, voltaremos ao pó, pelo menos o corpo. Não estou a ser sarcástico. Enquanto vivemos, devemos a obrigação ao Criador de sermos seres vivos, cheios de vida, caminhantes sempre em busca de algo melhor, sempre na procura da remissão dos nossos pecados. Porque sempre pecamos, sempre pecaremos, sempre cairemos. Por cansaço, por descuido, por um desvario momentâneo do corpo e da alma, assim dita a nossa condição de Humanos. Por mais que procure, dentro ou fora de mim, as leis que ditam o caminhar do universo são imutáveis. Desde o passado mais distante que há memória ou registo, os mesmos princípios se aplicam ao ser Humano, aos povos e civilizações que foram existindo e diluindo-se nos tempos.
Chove copiosamente. Este inverno tem sido muito chuvoso, como os que antigamente assim eram. Ainda falta a neve, a geada. Espero que não venha muito tarde, quando as primeiras sementeiras estejam já nascidas. A natureza sempre nos acompanha, ou seremos nós que a acompanhamos? Seja de uma forma ou de outra, é uma vivência inseparável. Mesmo achando controlar quase tudo, o Homem, sempre condicionados estamos aos seus desígnios. Como a outros condicionalismos estaremos sempre vulneráveis. Não somos seres solitários, pelo menos por natureza. Se por esse caminho optamos, penso que é apenas ilusório, um viver apenas diferente, tentando fugir ao que de mau o viver em grupo pode representar. Mas na nossa mente, saberemos sempre que, quando precisarmos, apenas nos basta abrir a porta ao mundo, caminhar em direcção a ele, emaranharmo-nos novamente nos desígnios colectivos. Mas será sempre assim, durante toda a nossa existência? Poderá acontecer sermos relegados de forma definitiva? E em que circunstâncias pode acontecer?
Sempre que me afasto, fico na margem apenas observando e tentando compreender todas as questões que me inquietam, da corrente deste rio que é o viver em sociedade, participando activamente, assusta-me pensar que jamais lá poderei voltar, conseguir acompanhar, diluir-me novamente. Seja por não me adaptar, por me excluírem, o sentir que a dada altura ficarei entregue apenas ao que sou enquanto ser vivo, leva-me a pensar o quão ingrato o viver pode ser. Um pouco à semelhança do que acontece na natureza, as sociedades também são selectivas em deixar viver apenas os mais fortes, os que conseguem adaptar-se às suas exigências, não às de cada um. Pensando bem, apenas serei membro da sociedade enquanto ela assim o ditar. Então os tormentos se levantam, sobre toda a caminhada que já foi percorrida, o que devia ter sido feito e não foi. As nossas fragilidades são expostas, mais que estar nu no meio da rua, ao olhar de todos, são dissecadas todas as entranhas do nosso ser físico e psicológico. Tudo é avaliado, desde o funcionamento do nosso organismo, ao nosso pensar, às nossas convicções. Tudo em nós é retalhado até se vislumbrar os mais pequenos detalhes que nos possam incriminar. Seremos julgados de todas as formas possíveis. Não haverá misericórdia nem perdão.
Não estou a exagerar. Qualquer um pode constactar que assim é. Basta olhar um pouco com mais atenção, ver que existem mulheres que são despedidas por estarem grávidas, funcionários que são despedidos por terem uma certa idade, algumas mazelas no corpo. Já não são rentáveis, há que substituir, não se incomodando, esta sociedade, com o que irá acontecer a este homem ou mulher. De uma forma trivial somos postos de lado, entregues apenas ao nosso mundo mais pessoal, mais íntimo, como a família ou amigos. Dei o exemplo do trabalho por ser o mais fácil de compreender e aceitar, que é uma realidade que não se pode contestar. E todos sabemos da importância que o trabalhar representa na vida de cada um de nós. Além de ser uma forma de granjear o sustento para o corpo, é o sentir-se vivo e útil enquanto membro de toda a sociedade. Mesmo que muitas vezes seja desempenhado apenas como uma obrigação, é um meio para realizarmos outros projectos pessoais, como ter o nosso lar, construir a nossa família. Considero que trabalhar é talvez a única forma de sermos independentes, isto claro à luz da legalidade e idoneidade pessoal. Não estou a considerar o trabalho apenas aquele que se faz formalmente, em troca de uma remuneração acordada. Falo do acto de produzir ou criar, seja em que actividade for. Os artistas também trabalham. É um trabalho diferente, mas ainda assim, muito mais criativo e também necessário numa sociedade Humanizada. Porque o Homem sempre necessitou da arte, de se revelar e sentir de muitas formas.  
Posso achar que sei avaliar a minha caminhada pessoal. Sei os erros que cometi, os caminhos que escolhi e não o devia ter feito. Mas só agora o sei, depois do erro cometido. Porque só se levanta quem primeiro caiu, assim eu procuro erguer-me novamente. E a caminhada colectiva, a de toda a sociedade? Será que vai pelo caminho correcto, na direcção que todos desejamos? E se não vai, de quem é a culpa? Se é uma caminhada colectiva, a culpa será colectiva. Como sempre, as maiorias são as responsáveis, mas quem sofre as consequências negativas são as minorias. Este modelo, dito democrático, será o melhor? Não estarão os mercados financeiros fora de controlo, insensíveis às aspirações dos cidadãos comuns, imunes a qualquer acto fiscalizador e punitivo? Serão esses mercados os donos do mundo actual? Apesar de a pergunta parecer dirigir-se a algo abstracto, a verdade é que quem faz as leis, quem dita as regras desses mercados são seres humanos, homens e mulheres que deveriam ser de condição igual à dos do cidadão comum. Mas todos sabemos que se refugiam no alto das torres dos palácios que para si criaram, longe das tormentas que causam aos que vivem fora dessas torres de marfim. Como seria diferente se eles comessem da mesma panela, se tratassem nos mesmos hospitais, vivessem com os escassos patacos que a maioria ganha. Com toda a certeza que a panela se encheria de outras iguarias, as listas de espera desapareceriam, os ordenados seriam diferentes.      
Mas mais que esta solidão que me atinge, é o pensar no futuro que mais me preocupa. Seremos capazes de reinventar a sociedade, a forma de viver, de modo a que as famílias voltem a ser o centro de toda a sociedade? Voltaremos a ter as famílias capazes de cuidarem dos seus, sem deixar quem quer que seja de fora? Quando já não poder trabalhar, que destino terei se não me souber ou poder defender? Enquanto vivemos uma vida mais activa, não devemos descorar a preparação para os dias que um dia chegarão. Um pouco como a formiga, que vai granjeando no verão, para ter que comer quando o inverno chegar. Como na natureza, o inverno também acabará por chegar às nossas vidas. Como estarei eu preparado quando ele chegar? Terei granjeado e guardado o suficiente? Terei construído o meu pequeno nicho de forma a suportar a sua aspereza?


Quarta-feira, dia 16 de Janeiro de 2013

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

A carta


A carta
Tinham acabado de cear. Arrumou-se a louça para a banca. Os restos, poucos, foram para o cão que há muito ladrava no quinteiro. A fogueira estava a definhar. Alguém colocou mais dois troncos de eucalipto da giga que estava a um canto, encostada à lareira. Enquanto alguém lavava a loiça com água quente tirada da panela grande que estava ao lume, outro sacudia a toalha no alto das escadas, para o quinteiro. Já era noite há muito. De manhã as galinhas e os pássaros haveriam de apanhar até há última migalha. Depois, embrulhava o resto da broa de milho na toalha e guardava na masseira. A mesa da cozinha, onde comiam as refeições, tinha uma tampa que se levantava para guardar o pão no seu interior, na chamada masseira. A masseira era usada para amassar o pão, que depois havia de ir ao forno e ficar em ricas broas. Por debaixo da masseira, quase até ao chão, formava-se um armário de toda a largura e comprimento do fundo da masseira, que era mais larga e comprida no cimo, onde tinha a tampa. Tinha duas portas onde se costumava guardar outras coisas, como os púcaros com rojões. O dia de trabalho tinha acabado. Alguns sentaram-se em redor da lareira. O filho mais velho foi buscar as cartas para jogar com o pai, em frente à lareira.
- Vai lá buscar o papel e a caneta para se fazer a carta. – Vai a mãe para a filha mais velha. Dali a nada já tudo estava sobre a mesa: o envelope próprio para avião, a caneta e o bloco com as folhas de carta. Debruçaram-se ambas sobre a mesa, uma de cada lado nos bancos corridos, feitos de madeira, com os mais novos de lado a querer saber o que se ia escrever. A tia estava lá do outro lado do Atlântico, nunca a tinham conhecido pessoalmente, nunca chegariam a conhecer. A carta começava sempre do mesmo jeito: “ Desejo que esta carta a vá encontrar, e a toda a família, de perfeita saúde, que nós por cá estamos todos bem”. O silêncio, de todos que estavam em redor na cozinha, era absoluto. Apenas a patroa da casa ia ditando as frases, uma após outra. Por vezes pedia para lhe lerem o que já estava escrito. Todos sentiam o valor daquelas linhas que se escreviam, com cuidado para dar poucos erros. Pensavam nas emoções que aconteciam quando o carteiro lhes entregava uma carta com uns selos diferentes, o que queriam ouvir quando ela fosse lida em voz alta. Porque saber ler não era para todos da casa. Aqueles pequeninos desenhos que se faziam por cima das linhas direitas de uma folha de papel, apenas os que um dia aprenderam podiam transformar em palavras, em frases, em tudo que por lá também acontecia. Era a alma, as lágrimas contidas de quem a ditava que ali iriam ser gravadas. Como quem talha na pedra ou na madeira alguma forma, assim se talhava no papel todo o sentir de quem vive com a dor de não poder estar com os seus amados.
Depois de lida vária vezes, lá vinham os beijos e abraços de despedida, sempre até breve. Já pouco se escreve. Já quase nada se escreve para meter num envelope e pôr no correio. Tudo é tão diferente, talvez melhor, quem sabe. Mas uma carta será sempre uma carta. Escrever com a nossa caligrafia, presumar para que seja bonita no conteúdo e na apresentação. A emoção de talharmos no papel algo que poderá perdurar por muitas gerações, sempre revivida com a nostalgia própria de quem ama tocar o passado, imaginar o sentir de quem a escreveu e de quem a recebeu. Quem não gosta de receber uma carta amiga, de alguém que será sempre especial porque nos deu um pouco de tudo que é? Acho que amanhã vou escrever uma carta.



Sexta-feira, dia 11 de Janeiro de 2013 

Uma história, mas pequena


Uma história, mas pequena

                Quero contar-lhe uma pequena história. História porque conta coisas de dois amigos, das suas aventuras, junto aos pequenos ribeiros, ao rio Mau e ao rio Arda, do lugar das Juntas e da Lameira-Branca, que já ficavam do outro lado dos rios, da “caça” ao peixe à mão, ou da pesca com a pequena cana-da-índia e um bocado de sediela onde se prendia o chumbo e o anzol com uma isca, uma minhoca ou um gafanhoto, das correrias encosta abaixo, dos banhos na levada do Carvalho, em rio Mau, ou na do Alferes, do Martins ou do João do Vaz, no rio Arda. Quero contar das pontes de madeira que atravessavam os pequenos ribeiros, das de pedra com arco Romano, como a de rio Mau, que já eram maiores para passar pessoas e os carros, os carros de bois, ou outros que houvesse. Como qualquer história, desenrola-se num certo tempo, num certo espaço físico, tem as suas personagens, mas não lembro o princípio e não sei se tem fim. Vai ser uma história pequena e, ainda assim, incompleta. Mas quero conta-la à mesma. Não por ter a certeza que vai gostar, mas porque sinto gosto em conta-la, à minha maneira, do meu jeito, aproveitando enquanto a escrevo para relembrar, o que foi ou simplesmente poderia ter sido. Porque nunca se conta o que realmente foi. Ou falta ou tem a mais, ou apenas é imaginação. Não é uma conta de somar ou subtrair, daquelas que se fazem com números, às vezes também se juntam letras, como se fizesse algum sentido, pelo menos para mim, quando pequeno e via alguns cadernos ou livros de quem já andava para ser Doutor, ou coisa que o valha. Tinha algum jeito, somar letras com números, quem diabo se lembrou de tal coisa. Porra para os senhores Doutores, tamanha confusão faziam com as coisas simples: números são números, as letras são para fazer palavras, e não se fala mais nisso.
                É apenas uma história. Como tantas histórias inventadas, querendo saciar o meu desejo de algo escrever. O desejo de a partilhar, escrevendo, com aqueles a quem eu não a poderei contar de outra forma, para que também eu não a esqueça. Porque todas as histórias inventadas, um dia serão “desinventadas” se caírem no esquecimento, se escritas não forem, voltando tudo ao início, como se nunca tivessem existido. Um pouco como algo que achamos ter acontecido, mas de todo não nos lembramos, não havendo alguém que também o recorde. Mas será sempre uma história dos sonhos que existiram ou queriam ter existido, mesmo os não sonhados nem pensados. Os dois amigos nasceram numa pequena aldeia do interior de um pequeno país, Portugal, ainda soberano na altura que esta história inventada se terá passado. Como a maior parte das aldeias serranas, estava confinada a um isolamento próprio de quem é recatado, gosta de estar apenas no seu cantinho, quanto mais escondido melhor, para que não perturbem o seu estar de alma tranquilo, de parco alimento para o corpo, mais para a alma que por vezes se inquieta dos medos que todo o nevoeiro consigo traz, por mais ao longe se não poder vislumbrar vivalma, caminhante ou estática. Porque todas as coisas vivas deviam ter alma, se for o caso de algumas não terem. Mesmo as outras, que existem sem vida, nos mostram tantas vezes feições e cantares que de gente parecem. Companhia nos faz, mesmo que para ali paradas sempre estejam, sem crescer nem mingar, apenas existindo. Como quase tudo nestas aldeias, a dimensão é minúscula: os ribeiros são pequenos, os rios ainda bebés, a gente pouca, as casas pequenas, as pontes frágeis, os caminhos estreitos, os largos acanhados, os campos apenas leirotos, quase todos. Enfim, tudo é desta medida, para não destoar, não parecer mal aos demais. Mas um Homem, por ser de estatura pequena, não é meio Homem.   






Ainda pequenos – a pescaria

A pequena aldeia ficava afastada de quase tudo, perto de quase nada. Achada por alguns, mas poucos, escondida no meio de pequenas serras. Perto dos campos que cultivava, perto dos ribeiros que a percorriam, mais ao fundo. Perto da floresta de pinheiros, eucaliptos, Carvalhas,  sobreiros, mimosas e muitas árvores diferentes que eu não lembro o nome. Não era uma floresta muito densa, apenas a vegetação mais pequena é que abundava nos barrocos, onde quase não se cortava o mato. Ai se abrigavam muitas espécies nativas, ai encontravam refúgio mais seguro. Porque a densa vegetação sempre era um bom esconderijo para eles, longe das pegadas dos homens, das enxadas e das motosserras, longe do barulho infernal que é sempre a presença humana. Só os cães é que por lá se aventuravam quando acompanhavam o dono nos dias de caça, ao coelho ou a qualquer coisa que se mexesse, voasse perto. De pequenas casas cobertas de telha, umas mais pequenas do que outras. A vida era sempre vivida ao sabor dos tempos que a natureza trazia. Sempre assim tinha sido, nem sempre haveria de assim ser.
Como em todas as aldeias do interior, a criançada era meio criada nos largos do lugar, nas brincadeiras que aconteciam em qualquer lugar que assim desse, mais junto a casa deste ou daquele, mais no centro onde sempre havia um pequeno adro junto à capela, a algumas alminhas. Antes ou depois da escola, depois dos trabalhos de casa, não os da escola, numa fugida logo seguida de um pregueiro. As pequenas tarefas faziam parte integrante de todos os dias que se viviam. – Trabalho de criança é pouco, mas quem não o aproveita é louco – assim diziam repetidamente as tias Micas, senhoras entendidas dessas coisas dos conhecimentos antigos. Certas ou não, o que elas diziam era certinho, todos os dias tínhamos as tarefas já mais ou menos definidas. Trazer a água das fontes ao caneco ou ao balde para a casa e para os animais, ir buscar um molho de erva aos campos, cortar a lenha para a lareira, fazer mais isto e aquilo que era preciso. Mas a prole costumava ser numerosa, entre todos era um instante, dava sempre tempo para esta ou aquela brincadeira. Os rapazes eram sempre os mais traquinas, os que estavam sempre à espera de escaparem, muitas vezes levando com o cinto quando há noite regressavam de mais alguma aventura. Mas mesmo sabendo do castigo que os esperavam, continuavam a ceder ao desejo de correr para longe, junto com este e aquele.
O Manuel e o Joaquim eram grandes amigos, desde que nasceram, ou quase. O Manuel era o mais velho, com um ano de diferença, nenhuma diferença fazia. Cresceram juntos, juntos com todos os miúdos da aldeia. Quase todas as famílias da aldeia eram abastadas, isto é, abastados no número de filhos e trabalhos para os criar. Mas era assim, só a natureza ou o destino poderia contrariar esta lei da natureza. Deste modo nem faziam falta os brinquedos para brincar ao faz de conta. Os mais velhos tinham sempre alguém mais novo que seria a sua boneca, ou boneco, para ajudar a criar. Criados como se podia, cedo começavam a ajudar nas lidas da casa, no pouco que podiam fazer, sempre era bem-vindo. Depois vinha a escola, aos seis ou sete anos, conforme o mês em que nascessem. Foi já na escola que esta amizade começou a ter outro vínculo, mais coniventes nas brincadeiras e aventuras que começavam a acontecer. Quando podiam, combinavam isto ou aquilo para fazerem sozinhos, escapando do bando que nos largos brincava. Estavam sempre a inventar aventuras, fazer coisas mais destemidas. No verão era onde tudo mais acontecia. No verão, onde os dias eram maiores, as noites mais pequenas. Quando o calor os chamava para junto dos pequenos rios que corriam lá mais ao fundo das encostas, um pouco distantes dos lugares, onde havia os lameiros, as levadas, os moinhos, peixe para caçar ou pescar. Gostavam de ir deitar a água aos lameiros, nos dias em que lhes pertencia. De manhã, muito cedinho, o Nelo gostava de ir ao lameiro das Juntas, assim chamados por ficarem junto a esse lugar, que era muito pequenino, apenas com duas famílias, e por isso assim chamado. De gente trabalhadora e acolhedora, este lugar era sempre muito querido por todos no lugar. As desfolhadas no outono eram a altura que mais gente juntava. Grandes lavradores, os grandes canastros e as pipas cheias de bom vinho. Gostava de ir só para passar as duas pontes estreitas, feitas em madeira (dois troncos de eucalipto que chegavam de uma lado ao outro e tábuas pregadas neles para se poder caminhar), que atravessavam o ribeiro que vinha do lado da Barrosa e o que vinha do lado de Vér. As pontes só davam para passar pessoas, uma de cada vez ou em fila indiana. Eram muito frágeis, com corrimão para se apoiar, dado estarem ainda altas, uma a uns quatro metros de altura, e a outra a cerca de dois metros. Os dois ribeiros ali davam as mãos, continuavam a caminhada juntos, logo a seguir às duas pontes. Entre os dois ribeiros existe uma encosta que termina no local onde se faz a união dos dois ribeiros. No triângulo de terra que se formava antes dos ribeiros se abraçarem, que era uma encosta bastante íngreme  existiam dois moinhos, um mais acima que o outro. A água que fazia girar o primeiro não tinha tempo para descansar, entrava logo no cubo do outro moinho para o fazer também girar. Achava engraçado este aproveitamento devido ao forte declive da encosta. Assim a água que vinha de uma levada dava para tocar dois moinhos, bem pensado.
Quando lá chegava, a primeira coisa fazia, era tapar com uma pequena porta de madeira, a saída da levada para o rego que ia para os campos. Ele sabia que os peixes durante a noite se aventuravam por esse rego para procurar comida, algum gafanhoto que caísse na água, ou outra coisa qualquer que desse para comer. Muitas vezes lá encontrava ele peixes grandes que ainda por lá andavam. Depois era só esvaziar o rego e caçar o peixe escorregadio com as mãos. Mas o Manel apenas gostava de caçar os peixes, não de os trazer para casa para comer. Caçava-os e de seguida soltava-os, depois de os ter sentido junto a si, de os olhar de mais perto. Gostava era de os ver a nadar, a esquivar-se logo que ouviam algum barulho, sentiam a sua presença. Certo dia trouxe um numa saca de plástico com água, ainda vivo. Quando chegou ao lugar, o peso de consciência foi tão grande que teve que o libertar, soltando-o no tanque grande que havia no centro do lugar, junto ao adro da capela, que era cheio pela água que vinha das minas que existiam lá para os lados da Barrosa. Nunca mais o viu, decerto terá morrido pois se calhar não se adaptou àquela água, talvez diferente da do rio, talvez por estar só, talvez...
Certo dia combinaram ir ao peixe para o rio Mau. Depois da refeição do meio-dia, do jantar assim lhe chamavam, lá se meteram a caminho. Não era muito longe. Meteram pelo Pouso, que era mais a direito, mais íngreme, lá desceram em direcção ao rio. Demorava cerca de vinte minutos a lá chegar. Iam começar pela ponte da Feitoria e acabar junto ao moinho dos Herdeiros, já lá mais em baixo, passando pela levada do Carvalho onde iriam dar alguns mergulhos. Na ponte da Feitoria era agradável, não muito funda a levada, dava também para nadar. Mas tinham comido há pouco, era melhor esperarem. Do lado de baixo da levada, o rio era muito sinuoso, com muitas poças, não muito fundas, onde havia muito peixe, dava para agarrar à mão, isto quanto dava. Por lá andaram bastante tempo, mas com pouca sorte. Eles sempre se iam esquivando, mesmo quando se tentava agarrar com as duas mãos, eles escapuliam que nem tiros, maus de agarrar, demasiados escorregadios. E assim lá foram descendo o rio até à levada do carvalho. Ali já deu para tirar a roupa, e em pilão, lá deram uns valentes mergulhos. Mas sempre olhando em volta, não vá andar por ali alguém e os visse naquela figura. O pior de tudo era quando alguém escondia a roupa. Aí era o cabo dos trabalhos. Por isso, muitas vezes levavam a roupa para o outro lado do rio, onde ninguém podia chegar sem eles darem por isso. No final era o sol que fazia de toalha, os secava. A tarde ia passando, a pescaria sem render nada, mas não havia problema.
- Porra, hoje não caçamos nada. – Refilava o Nelo para o Quim. 
- Deixa lá, desde que não nos aleijemos, está tudo bem. – Respondia o Quim. Enquanto iam conversando disto e daquilo, lá iam descendo o rio, ora por terra, ora dentro dele com as calças arregaçadas. Já tardinha resolveram tentar a sorte pela última vez, junto ao moinho dos Herdeiros. Ali o rio era baixinho, tinha muitas pedras grandes onde o peixe se escondia. Com as mãos lá iam procurando por entre as pedras, na esperança de agarrarem algum. De repente o Manel solta um grito e atira algo para longe, todo a tremer. – O que foi, o que se passa?- perguntou o Quim sem saber a razão de tanto alarido.
- Era uma cobra, agarrei uma cobra! – Exclamou o Nelo ainda a tremer. – Por hoje já chega, não meto a mão debaixo de mais nenhuma pedra – dizia o Nelo enquanto se apressava a sair da água. O Quim é que não conteve uma gargalhada demorada pelo infortúnio do colega. O caso era para rir. Bem, não sabiam se era para rir ou chorar, pois tamanho cagaço iria demorar a esquecer. Por certo tão cedo o Manel não ia aventurar-se a meter a mão debaixo de uma pedra para caçar peixe. E a pescaria tinha sido dada por terminada, com os dois amigos regressando a casa de mãos vazias, um ainda a tremer do susto, mas sempre na galhofa, sempre a contar mais do que aquilo que realmente se tinha passado, afinal a cobra era enorme. Já levavam que contar á rapaziada do lugar, a história iria sofrer algumas alterações, mas continuaria a ser verdadeira, juravam por tudo de mais sagrado. A caminhada de regresso a casa era a que fazia doer a barriga das pernas. Sempre a subir, porque havia o rio de ficar lá no fundo? Subir o Pouso era a parte pior. Muito íngreme  nem dava para passar com o carro de bois, quer a descer ou a subir. Para cima não conseguiam puxar o carro, para baixo a canga passava à frente dos cornos, ainda os esganava.
- Vamos mais depressa, ainda tenho que levar a água para casa, do fontanário da Capela – Ia dizendo o Nelo ofegante com a caminhada. – Também eu, também eu. – Respondia o Quim, intervalando o falar com o respirar mais acelerado. Nesse dia a chegada a casa fez-se quase noitinha. Os irmãos não se pouparam nos comentários – Vai ser o bonito quando o pai souber, ai vai, vai. – Dum lado e do outro não faltaram alertas para o que já sabiam que os esperava: um pregueiro e talvez algumas palmadas no rabo.


Ainda pequenos – as lutas

                Isto das brincadeiras entre os miúdos tem muito que se lhe diga. Tão depressa estão bem como andam à pedrada uns aos outros. Todos têm uma alcunha, há sempre uma história para rir deste e daquele.- Oh Manel carrapicel, ata a pila com um cordel, vai há missa com umas calças de papel – E era uma risada geral, só para enfurecer o Nelo que desatava a correr atrás deste e daquele, mas todos se escapuliam. Mas nem sempre as brincadeiras ficavam por aqui. Havia muitas vezes que as coisas chegavam a vias de facto, havendo grandes lutas entre os diferentes bandos, porque isto da canalha, há sempre vários grupos que disputam ao certo não sei o quê. Muitas vezes não chegavam os arrufos e alguma disputa braçal, uns biqueiros, uns trambolhões. Tudo piorava quando se viravam a atirar pedras uns aos outros. Quantas vezes se acabava a ir para casa com a cabeça rachada. E em casa ainda se apanhava mais. O melhor era esconder, não se queixar.   No adro da pequena capela existiam duas oliveiras e, em redor delas, um manto de erva verde e fofa, onde se juntavam para brincar. O adro também dava para jogar à bola, mas sempre com medo por causa dos vidros da janela da sacristia ou do telhado. Na maior parte das vezes jogava-se descalço, pois descalço quase sempre se andava. O pio era quando se acertava nalguma pedra, lá ia a unha do dedo grande. O curativo era um bocado de terra para o sangue parar. E estava feito. Parecia que nada lhes pegava, “ em coisa ruim, doença não pega”.
                As brincadeiras eram muitas, conforme a altura, conforme a disposição, brincava-se disto ou daquilo. Muitas vezes as coisas não corriam bem, haviam muitas disputas, muitos amuos. Quando era o recreio da escola, era sempre um problema para fazer as equipas. Todos queriam jogar do lado do Custódio, e não será preciso dizer porquê. Mas a outra equipa ficava sempre com mais um ou dois, para a coisa se equilibrar. A bola costumava ir sempre parar ao campo do vizinho. Era o cabo dos trabalhos. Quando ele não estava em casa, tudo bem. Mas quase sempre estava à janela, a observar, a ver qual dos magarefes lhe ia calcar o quintal todo, os alfobres, alguma hortaliça que ficava toda espatifada. Era o bem bonito. Se não tivéssemos pé ligeiro, lá ia mais uma bola ao brejo. O tio Constantino  assim se chamava, pois quase toda a gente mais velha era tio daqui, tio dacolá. Não sei porquê, mas era tia Micas para todas as Marias  e por ai adiante. A pequena bola de borracha é que acabava com um fim trágico: toda cortada aos bocados.
- Esta canalha não tem mais que fazer? Dá-me cabo de tudo, seus estupores  – Era a frase mais comum que o Ti Constantino dizia lá da sua pequena janela, da sua pequena casa. Já reformado devido à idade, tinha todo o tempo do mundo. Isto de ele já não trabalhar era uma carga de trabalhos para nós. A professora por vezes proibia-nos de jogar à bola pelas queixas que o vizinho fazia. Não estava para se incomodar, a rapaziada que brincasse de outro jeito. Mas nós éramos uma praga, não largávamos a eterna ideia de correr atrás da bola. Houve uma altura que decidimos fazer uma vedação com estacas de mimosas, para a bola não sair do recreio. A tarefa foi medonha. Todos, ou quase, ajudaram a cortar e a trazer as mimosas que se recolheram nos montes que a escola rodeavam, a Norte e a Poente. A Nascente e a Sul ficavam alguns leirotos do vizinho, que sempre à espreita estava, debruçado na sua janela, a pequena janela da sua casinha. Não foi fácil colocar a estacaria de pé. Tivemos que cavar junto ao muro da escola para as enterrar. Mas a obra lá se foi fazendo. Pelo menos já muitas vezes a bola deixava de saltar o recreio, fugir. Mas ainda assim continuava por vezes a sair. Um remate mais torto, a bola lá subia em direcção ao Céu, acabando por cair sempre na terra.
                Ensinar alguma coisa a esta rapaziada, era um pouco como pregar pregos em madeira seca e com cerne. Nem à martelada se conseguia que eles entrassem, os pregos nas tábuas e os ensinamentos na cabeça dos miúdos. A coitada da professora ia ao inferno tantas vezes por dia, que o melhor era para lá sempre ficar. Quando a porta estava fechada, as janelas serviam para muitos desertarem, tão fartos de estar presos à cadeira. Queriam era correr e saltar, como gado bravio que não aceita os freios, que não sabe andar à corda. Era o cabo dos trabalhos, para a professora e para os pais.  
Crescendo – a mudança de escola

                A escola do lugar apenas dava até à quarta classe. Depois vinha a Telescola, que ficava noutro lugar, na mesma freguesia. O Manel andava um ano á frente do Joaquim, devido à idade. Não eram burros de todo. Lá iam aprendendo mais-ou-menos, sempre passando de ano. Pois isto de reprovar era uma borga. No final do ano todos queriam saber quem trazia a raposa, que era o mesmo que quem tinha reprovado. Nunca trouxeram nenhuma para casa. Ainda bem, para eles e para os pais. Passar mais um ano na mesma coisa era muito complicado.
Desta forma, os dois amigos viam-se separados das brincadeiras diárias. Só no final do dia é que se encontravam ou aos fins-de-semana. Mas sempre continuando a sua inabalável amizade, às vezes com as suas crises, os seus amuos. Mas nada que o tempo não sarasse, de regresso sempre acabariam por estar. As aventuras, a construção de carros de rolamentos, as corridas pela estrada que não tinha carros, ou quase. A descer era uma alegria. O regresso é que era mais cansativo, fazer de burro de carga, pois a subir o carro não andava. – As estradas deviam ser sempre a descer – Comentavam por vezes, como se isso fosse possível. O Manel lá se foi habituando à nova escola. Não foi fácil, mas tudo passa, tudo se vai compondo, tantas vezes ao jeito dos outros. Mas o regresso a casa, depois de quase uns mil e quinhentos metros a caminhar, era a melhor parte do dia. Nesse tempo a canalha andava sempre sozinha, ia para todo o lado sozinha. Bem cedo aprendia a defender-se, a lidar com tudo que aparecia. O pior era quando chovia, chegavam à escola encharcados. Muitas vezes acabava-se por adoecer com uma constipação. Mas era assim para todos os do lugar. Tomavam conta uns dos outros. Felizmente não haviam as monstruosidades de que hoje se fala. Ou se havia, para aqueles lados ainda não tinha chegado, pelo menos que se soubesse.
Sem se aperceberem, esta era a sua primeira separação, o ficar um em cada lado, à semelhança do que o futuro já lhes tinha preparado, mesmo sem ainda saberem de nada. Isto de crescer parece tudo um mar de rosas. Quando se é pequeno, assim acontece este desejo de ser grande e forte, poder comandar o destino, o seu e o dos outros, sem ouvir pregueiro,  sem temer o cinto ou alguma vergasta. Mal sabiam ainda que mais cedo do que alguém podia imaginar, iriam sonhar, querer voltar a este tempo de menino. Mas o relógio do Sr. Tempo não para, nunca se atrasa.
O Nelo tinha esta nova aventura, de conhecer novas caras, de arranjar mais inimigos que amigos. Porque era quase sempre assim, isto de juntar os vários lugares da Freguesia dava no que dava. Era impossível escapar às rivalidades antigas entre alguns lugares. Os maiores tentando sempre subjugar os mais pequenos, como acontece em tudo na vida, com todos. Não aceitar o jugo, querer preservar a sua liberdade dá sempre em batalhas verbais e não só. Mas como qualquer lei sagrada da matemática, assim sempre acontece, não havendo forma mágica de escapar. Firme nos seus desígnios, mesmo açoitado, não quebrava, não desfalecia. O seu gosto por ser livre era a sua própria vida. Nada valia uma sem a outra.
Os livros nunca lhe pesaram, nem a bola no recreio, nem o caminho de regresso a casa. As primeiras saudades rebentavam naquele olhar que por vezes andava triste. Queria voltar para a outra escola, queria estar onde tinha estado, onde já não podia estar. Foi o ano mais difícil de que tinha memória. – Então Nelo, que se passa? – Perguntava quase sempre o amigo Quim. A resposta era sempre a mesma:           - Nada, está tudo bem. – Respondia o Nelo, mas sem conseguir enganar o amigo, convence-lo das suas palavras. Os dias desse ano foram todos maiores, mais tristes. Roía-lhe a Alma este estar longe da primeira escola, aquela que seria a única a considerar sua. Então, no último ano, na quarta-classe, tudo tinha sido diferente, maravilhoso em todos os sentidos. O regresso dos que um dia tinham partido com os seus filhotes, canalha da mesma idade, foi uma lufada de “diferente” que engrandeceu a pequena aldeia. Eram olhares diferentes, meninos mais finos, mais bem vestidos, outra forma de viver, mas não deixavam de ser miúdos. Olhados com algum espanto e admiração por quase todos, eram o centro das atenções nesses primeiros tampos. Um tempo que acabou por se prolongar na vida.

*
A grande mudança – começar a trabalhar

O sexto ano na Telescola marcou os dois amigos pelo reencontro na mesma escola. Foi um ano muito diferente daquele que tinha acabado. As caminhadas para a escola eram feitas sem o pesar de outro tempo. Mesmo havendo outros colegas, a sua ligação ao Quim era demasiado forte, demasiado especial para ser substituída por outros. Era habitual saírem no final da escola a correr, virados ao lugar, passando pela paragem da camioneta que trazia outros colegas que estudavam já na Vila grande. Havia alguns dias que eram coincidentes no horário, outros não. Uma das brincadeiras que por vezes faziam, era tocar nas campainhas das casas que as tinham. Quando o morador abria a porta já as pernas da canalha iam longe, em correria ofegante, pelo correr e rir ao mesmo tempo, o coração aos pulos.
- Um dia ainda nos apanham. – Dizia o Quim que era mais moderado nas brincadeiras.
- Pois sim, e pernas para nos apanhar. Eles que venham que não há medo. – E medo não havia, já ao longe, espreitando para ver quem vinha à porta ver o que era.
- Estupores de canalha. Um dia destes ainda vos apanho. – Ouvia-se lá do cimo das escadas da casa onde se tinha tocado a campainha. Depois do pequeno susto, aquele que dava emoção a tudo, pois se assim não fosse não valia a pena andar a tocar às campainhas das casas.
No percurso para a Telescola, havia uma casa grande onde morava apenas um casal já de alguma idade. Tinham vários pomares, a maior parte de macieiras. Costumavam vender a fruta em sua casa. Por vezes os dois amigos e os restantes companheiros iam lá comprar. Bom, comprar alguma da que acabavam por trazer. Isto porque entravam todos para gerar alguma confusão. Enquanto a Senhora ia pesando e fazendo as contas com algum, outros mais atrás, iam enchendo os bolsos e a sacola. Era um roubar apenas para alimentar o corpo, pois, fruta, pouca ou nenhuma se tinha em casa e não se comprava que era muito cara. A maior parte da fruta que comiam durante o ano era a que iam apanhando, rabaçando melhor dizendo, pelos campos da lavoeira, onde a um canto dos campos quase sempre havia uma árvore de fruto ou um vimeiro.
Esse ano passou tão depressa que parece que não existiu. Um tempo em que já se falava o que se iria ser quando se fosse grande. Os dois amigos ainda só pensavam em divertir-se, nada de pensar já no trabalho. Mas as decisões tinham que se tomar. Feita a Telescola, ou era começar a trabalhar ou continuar os estudos, já no Secundário. Para o Nelo chegava cedo de mais esse dia. O Quim é que tinha sorte. Mais um ano na Telescola, sem ter que pensar mais nada. Os professores achavam que era uma pena aquele moço não ir estudar, aprendia tão bem, era mesmo uma pena. O que eles não sabiam era que esta coisa de estudar não coloca pão em cima da mesa.
- É tudo muito bonito, mas quem é que trabalha? – Respondia assim o Nelo aos professores quando o aconselhavam a continuar a estudar. Lá em casa todos trabalhavam, todos ajudavam. Isto de continuar a estudar, já um rapazola grande, não era muito fácil. A mãe e o pai não eram contra, apenas os preocupava os gastos. O Nelo era um rapazito trabalhador, mas muito franzino, com pouca força de braços.
- Até era melhor que ele estudasse. Talvez arranjasse um emprego melhor, já que no duro pouco se aguenta – Assim comentava sua mãe com as amigas. E assim lá se decidiu. Era preciso ir com os outros maiores para ver como se fazia a matrícula. E mais uma vez ia ficar longe do seu amigo. O Quim já lhe tinha dito que não queria ir estudar, já estava farto de livros.
- Vou começar a trabalhar logo que saia da telescola. Não falta trabalho. – Assim desabafava o Quim, já pensando em juntar os tostões que fosse ganhando para comprar uma motorizada, isto quando tivesse idade para tirar carta.

                A vida começava a ser bastante diferente. O Nelo a estudar e o Quim a trabalhar, apenas tinham algum tempo à noite, isto quando era verão, e os fins-de-semana, quando o trabalho o permitisse. O Nelo lá se ia adaptando aos novos colegas, mas sempre esperando encontrar-se com o Quim para trocarem as novidades. As namoradas ainda não tinham nascido, apenas alguma confraternização, pouco mais que isso. Que as havia muito bonitas, lá isso havia. Mas estavam longe, não eram para o seu bico. Os primeiros encantamentos já tinham acontecido no final da primária, depois novas aparições durante a telescola, e iam sempre continuando. As brincadeiras de grupo começaram, aos poucos, a tirar o lugar que devia ser para o estudo. De ano para ano era mais difícil passar, até que no nono ano aconteceu o esperado: a primeira raposa lá para casa. O Quim tinha acabado a telescola e começado a trabalhar. Começou nas obras, para um vizinho que fazia pequenos trabalhos. Adaptou-se facilmente, embora sendo um trabalho duro, era mais robusto que o Nelo. O dinheiro ao fim do mês compensava as canseiras do dia-a-dia. E foi sem grande surpresa que comprou um gravador. Sempre gostaram de música, de fazer pequenos bailes para passarem o domingo com as colegas do lugar. Quando era o aniversário de alguém, não podia faltar a pequena festa com bolo.
                Entretanto o grupo alargou-se, já eram mais três compinchas nas brincadeiras e aventuras. Mais nas brincadeiras, pois as aventuras eram mais restritas, apenas a três ou quatro. É que há noite nem todos podiam sair, ficar um pouco até mais tarde. Foi por essa altura que resolveram descobrir o que havia num armazém ali perto, entretanto meio abandonado por falência da empresa dona do mesmo. Durante os fins-de-semana começaram a inspeccionar as redondezas, a maquietar o plano para à noite o realizarem. Não foi fácil decidir, mas a curiosidade era tanta que não dava como escapar. Era preciso arranjar lanternas, ir sem fazer barulho, descobrir forma de entrar sem chamar as atenções. Durante um desses fins-de-semana em que aproveitavam para jogar à bola junto a uma serração que ali ficava perto, aconteceu um pequeno acidente. Nessa altura o serrim não era aproveitado, e as serrações para se desfazerem dele, faziam a sua queima ao ar livre, ficando ali a fumegar durante dias ou semanas. Num desses passeios resolveram subir até um monte de serrim que estava a fumegar, ardendo lentamente no seu interior. O pior foi quando uma casaca em brasa entrou para dentro da bota do Quim. Foi uma aflição a descalçar a bota para o tirar. Mas o mal já estava feito: uma queimadura que iria dar que curar. Com este incidente, nesse domingo a brincadeira acabou mais cedo. De regresso a casa, era preciso colocar qualquer coisa para não piorar a ferida. – Vai ser o bom e o bonito para eu ir trabalhar amanhã. – Suspirava o Quim com a lágrima de dor, não pela ferida, mas pela preocupação de ter de faltar ao trabalho, de ter de explicar em casa o sucedido. Mas na segunda-feira acabou por ir trabalhar, sabe-se lá como. O espírito de sacrifício sempre foi apanágio dos mais humildes.
                O armazém ainda tinha alguns produtos alimentares, na maior parte fora de validade. Mas isso não era problema, as conservas, o chã em saquetas, as bolachas de água e sal marchavam que não era brincadeira. Depois da aventura, eram repartidas, e cada um guardava o seu quinhão de tão gostoso e diferente tesouro que era para as barrigas ávidas de sabores diferentes. O café em pó é que era uma porcaria. Um dia o Beto despejou no seu quintal o mal fadado artigo. A sua mãe é que achou tão estranho aquele pó preto que ali aparecera. Acho que o Beto nunca lhe chegou a contar a verdade.
                Com todas estas aventuras, o Quim a trabalhar e a ganhar dinheiro, o Nelo, o Beto e o Tono ainda a passear livros, as ideias começaram a ficar mais auspiciosas. Já com aparelhagem de som e montes de cassetes que se iam comprando nas feiras, não era má ideia ter um pequeno salão para as festas, até um pequeno bar. E a obra lá foi ganhando forma. Para fazer o balcão era preciso umas tábuas grossas e largas que se iriam colocar na borda do lagar que já não era usado. Bom, as tábuas já sabíamos onde estavam. Era preciso trazê-las, pela noite para não se terem de pagar. Mais alguns amigos se juntaram à aventura. Numa sexta-feira à noite, lá se juntaram todos na casa do Beto e seguiram caminho, sempre com poucas palavras. Todos sabiam o que tinham que fazer. O silêncio era a sua melhor camuflagem, não vá serem apanhados e levarem uma carga de porrada do dono e depois dos pais em casa. Tudo estava a correr bem até que já a meio caminho no regresso a casa, ouviram e viram as luzes de um carro que se dirigia ao lugar, mais acima, antes da curva que dava para a recta onde estavam. Foi um salve-se quem poder a saltar para os campos na berma de estrada, que ficavam mais fundos. O pulo não foi complicado dado a altura do combro de cerca de um metro e pouco. O pior foi que o campo estava com água, ficando todos, ou quase, ensopados após a queda. Mas o importante era encostarem-se ao combro para não serem vistos. As tábuas tinham voado junto com eles. Foi por um triz que quem vinha no carro não os descobriu. Bom, quando o barulho do carro se afastou junto com as luzes, todos regressaram á estrada, e a galhofa era geral. Já estavam longe da serração, não devia haver perigo, sempre dava para desanuviar do cagaço que tinham apanhado. Uns mais molhados do que os outros, lá se meteram novamente a caminho. Por aquele dia chegava. Deixaram as duas tábuas de pinho em casa do Beto, onde iria ser o futuro bar, num salão que outrora já fora uma adega, e cada um foi para casa dormir. No dia seguinte os carpinteiros lá começaram a obra. O Quim era o mais habilidoso para estas coisas. O Beto era mais para a música e ensinar passos de dança. O Nelo fazia as compras no supermercado, tratava mais da logística das coisas. O Tono ajudava em tudo, principalmente na música. E assim nasceu o primeiro bar na aldeia. A roda de amigos eram os clientes habituais. Mais tarde, alguns moços mais velhos sempre vinham espreitar a ver o que se passava. Eram bons clientes, pagavam bem, mesmo quando acabava o rum e substituíamos por aguardente. Junto com a coca-cola nem se notava, e estava feita uma cuba-livre.
O bar ainda durou alguns meses, mais de um ano, até que já não satisfazia os sonhos da pequenada que ia crescendo. Agora já se procuravam bares a sério, alguma discoteca onde desse para entrar: eram os dezassete anos, os dezoito, já se estava a ficar grande. A escola continuava a dar cabo da cabeça ao Nelo e ao Beto e ao Tono. O Quim lá ia juntando os tostões para o grande sonho concretizar.   
*
Dos jogos no Barrocal e dos banhos no rio arda
Aos domingos de manhã era habitual jogarem futebol. Onde houvesse um largo apropriado, lá se juntavam maiores com mais pequenos. Quem jogava pior oferecia-se para ir à baliza, para não ficar de fora. Pelo menos era o que o Nelo e o Quim ao princípio faziam quando queriam jogar com os grandes. O Barrocal era um largo que ficava na Avitureira, já no caminho que dava para a Lameira-Branca. A Lameira-Branca era um pequeno lugar que ficava já depois do ribeiro que dividia as freguesias. Apenas com uma família, o casario ficava no cimo de uma pequena encosta, rodeada pelos campos de cultivo que se estendiam até esse ribeiro. Tinham um moinho de água só para eles. Eram praticamente autossuficientes no que respeita à alimentação.
O jogo durava a manhã toda, quase sempre entre o lugar das Agras e o da Avitureira. As pequenas picardias sempre existiam, ninguém queria perder. Era muito renhido, todos davam o seu melhor. Depois da refeição do meio-dia, no verão é claro, costumavam ir para o rio Arda nas suas aventuras. Quase todo o lugar gostava de se aventurar nestes pequenos passeios, sempre um dia diferente nas vidas rotineiras que quase todos levavam. Os maiores por vezes faziam pequenos piqueniques nos lameiros que junto às levadas existiam. A canalha mais nova queria era brincar na água. Um dia quase todos os miúdos do lugar resolveram construir uma pequena jangada com os paus de eucalipto que ali perto existiam de um corte de pinhal. Cada um levou um toro de eucalipto, conforme podia. Depois de todos juntos, amarrados com cordas e umas tábuas por cima, lá se meteram à água, entre a levada do Sr. João do Vaz e da do Alféres. Não dava para ir muitos, mas era uma aventura diferente. O Nelo e o Quim, juntamente com outros amigos, gostavam de andar em bóias, que eram as câmaras de ar de pneus de camião, já usadas, do lado de baixo da levada do Sr. João do Vaz. Tinha um pequeno rápido, onde as águas corriam mais veloz. Mais abaixo fazia uma curva à esquerda, em que a água descansava para repouso dos aventureiros. Depois era o regresso ao local de partida, e assim sucessivamente. Tardes bem passadas, com muita genica de braços para não virar das bóias  Apesar dos perigos que qualquer rio constitui, nunca aconteceu nenhuma desgraça. Com a ajuda de Deus e a entre a ajuda, lá iam cuidando uns dos outros para que ninguém se afogasse. Era preciso respeitar o rio, conhecer os locais onde só quem sabia nadar bem se aventurava. Poucos sabiam nadar bem. Os outros desenrascavam-se, nadavam à “cão”. O rio Arda era muito bonito, com as suas margens limpas, os lameiros cultivados, os moinhos quase sempre a trabalhar, moendo a farinha que havia de ser pão ou alimento para os animais. A sua água era uma bênção de Deus  da mãe natureza. Criava peixe, regava os campos, fazia girar as Mós do moinho. Em tempos também transportava a madeira e a lenha que se fazia nas suas margens, e que em determinados locais era depois retirada do seu leito, em sítios onde era acessível para os carros de bois a transportarem. Não podia chegar ao rio Douro senão “perdia-se”, deixava de se poder alcançar. Os nossos amigos, o Nelo e o Quim sempre participavam com o resto do lugar nestas aventuras. Pouco sabiam nadar, mas que gostavam da água não havia qualquer dúvida.
*
O tempo vai passando
Os anos iam acontecendo com a mesma frequência. A vida simples, o trabalho ou a escola, componham a vida dos dois amigos. Nas férias grandes, e nas outras, o Nelo ia sempre trabalhar para arranjar algum dinheiro. Dava para as suas coisas pessoais, por vezes alguma ida a uma festa ou outra coisa qualquer. Durante toda a secundária apenas foi a um passeio escolar. O dinheiro era sempre a maior questão que se colocava quando se falava em comprar o que quer que fosse. Os livros, requisitava-os na biblioteca, os que houvesse. Quando não havia, ia pedindo emprestado, tirando algumas cópias. Tudo um pouco confuso, um pouco sem se perceber bem como era possível estudar alguma coisa desse jeito. Quando não tinha dinheiro para tirar a senha da cantina, entrava pela janela da mesma e fazia de conta que ia repetir a sopa. As funcionárias permitiam que se repetisse a sopa e algum pão. Muitos dias o almoço eram duas tigelas de sopa e alguns pães. A roupa que usava eram na maior parte do irmão mais velho. Era assim em quase todas as casas humildes. Mas não se aborrecia, não se sentia incomodado com esta realidade. O Nelo desde cedo percebeu que existem os pobres e os ricos. Entre estes existem os meios-termos, nem ricos, nem pobres. Abaixo dos pobres talvez só os miseráveis. Ele era pobre, como a maioria dos amigos. Mas isso nunca o tinha impedido de viver, sonhar. Nunca, até ao nono ano, em que se começava a ver esta ou aquela miúda com outros olhos. Eram os primeiros namoricos, o ficar parado apenas a olhar, sem vontade de ir jogar sempre à bola. O seu mundo estava a mudar, não por vontade própria. Quando existiam actividades em que era necessário pagar para se participar, ficava sempre de fora. Custava-lhe muito ver os outros irem num passeio, numa viagem de finalistas, e ele sem poder sequer sonhar em ir. O gosto pela escola começava a desvanecer-se. – Tu é que tens sorte, podes fazer o que te apetece, já tens dinheiro. – Desabafava tantas vezes com o Quim, que por vezes lhe emprestava algum dinheiro em alguma aflição, como pagar o passe. Quando chegavam as férias lá acertava tudo com o dinheiro que ia ganhar aos meios-dias, ou às semanas para quem lhe dava trabalho. Desde a agricultura à construção civil, passando pelo pinhal, tudo servia. O importante era trabalhar para ganhar algum dinheiro. Quando o dinheiro é muito suado, melhor é guardado. Aprendeu desde cedo o valor de saber gerir os seus gastos, nunca entrando em maluquices, nunca explorando o suor dos pais. Era algo que mantinha com respeito, uma forma de altivez.
Durante todo o tempo em que frequentou a secundária, um dos melhores momentos do dia era o regresso a casa, de autocarro. A escola ficava a uns dezassete quilómetros, o que ainda dava para brincar um bocado durante a viagem. Da paragem do autocarro até casa era cerca de um quilómetro, feito em caminhada. Quando vinham todos à mesma hora, era divertido. Juntavam-se os do sétimo ano até ao décimo-primeiro. O grupo dividia-se em mini-grupos  conforme as idades. No inverno era aborrecido por causa da chuva, já se regressava a casa depois de escurecer, já início da noite, tudo escuro como um breu. As brincadeiras sempre aconteciam, tentando meter conversa com esta ou com aquela, tentando agradar, os primeiros passos na aprendizagem da corte que um dia teria de fazer à sua namorada. Ainda era cedo para isso, mas as atenções já estavam para lá viradas. Tempos de brincadeira simples, mas marcante no crescimento de todos os miúdos. Existe sempre alguém que nunca se esquece, esta ou aquela brincadeira, uma conversa mais pessoal, mais para além da pura brincadeira, uma troca de olhares que pelo momento em si para sempre o iria acompanhar, ao pequeno Nelo, que ainda sonhava que todo o mundo ficava já ali, ao seu alcance, à sua espera. Mal podia imaginar que o crescer apenas lhe iria retirar a magia de outros tempos, de tantos sonhos, de tantos quereres intensos que lhe invadiam a alma, o seu grande e curioso olhar.
De uma forma natural os anos iam passando, sem uma real percepção do que isso em si significava. Naquele tempo ninguém ficava mais velho, pelo menos a pequenada, que apenas ficava maior. A caixinha de recordações ia crescendo como outra coisa qualquer, sempre aconchegadinha para todos os pequenos tesouros que por vezes a vida lhe ia dando. Naquela pequenina caixinha apenas cabiam as coisas boas, as memórias que haveriam de ser. As más, não era preciso guardá-las, pois as sacanas dificilmente se perdiam, dificilmente eram esquecidas. Das beldades femininas que a vida lhe tinha dado a conhecer, muitas guardava em segredo, para que não houvesse quem lhas roubasse, as recordações. Pois tudo era vivido, quase sempre, no mundo do imaginário, tão adoradas princesas, mas que ele nunca chegaria a ser o seu príncipe. Ciente de mal fadado destino, queria apenas contrariá-lo em sonhos, dos sonhos de quem era senhor.         
*
A motorizada do Quim
Os tostões já eram muitos e o Quim lá realizou o seu sonho: uma bonita motorizada, novinha do trinco  para estimar, para muito tempo durar. Para o Nelo também foi uma alegria, como companheiro já ia ter algumas boleias garantidas para as festas ou outra coisa qualquer. Como um brinquedo novo, a euforia era mais que muita. O Quim conduzia bem, muito senhor do que fazia. Ainda bem para ele e para os que com ele tinham a sorte de viajar. As viagens eram sempre curtas, pelas freguesias vizinhas, mais para o lado norte, a vizinha Escariz e Fermedo. Já com dezoito anos, as aventuras tomavam uma dimensão diferente, os grupos agora eram outros, as brincadeiras de infância tinham que ficar para trás. Aos sábados há noite e aos domingos de tarde, percorriam-se sempre umas dezenas de quilómetros. Foi um tempo muito passageiro, sem a magia do de outrora. Tudo que acontecia ficava muito superficial, não o marcava tão profundamente como os simples olhares de outrora, o simples conversar, o caminhar junto. Apesar de toda esta nova euforia do resto do novo grupo, o Nelo começava o que seria o calvário de grande parte do resto da vida. Sonhador de uma outra forma de estar e viver, sentia alguma dificuldade em se sentir completo. Gostava muito dos seus amigos, continuava a gostar muito do Quim. Nas pequenas viagens que faziam em grupo à procura dos largos onde as moças se juntavam para conviver, sempre descobriu agradáveis companhias, as miúdas de outrora que já tinham virado umas mulherzinhas, e que, como ele, outros segredos da vida desejavam descobrir. Ainda novo, a nostalgia nascia como uma seara que alguém havia acabado de semear, e as sementes com o calor e a humidade despontavam para a luz do dia, dando um tom esverdeado ao campo que ainda há pouco era de um preto/castanho, sem vida. Mas o que nascia nele não era esse prado de um verde vivo, antes uma série de indefinições, um sentir que não se deseja, apenas acontece porque tem que acontecer, porque outrora se pecou, ousou sonhar mais que o sonho possível (como se o sonhar devesse obedecer a alguma regra). Porque lhe acontecia, que semente tinha nele germinado, de onde tinha vindo? O pequeno Nelo, de aventureiro destemido e sonhador, começava a transformar-se em rapaz mais sisudo, mais penoso no pensar, mais pesado no caminhar, como se aquele caminho apenas o fizesse por obrigação: não ia, a vida é que o levava. Dai até o secundário terminar, o ir para a tropa cumprir o serviço militar obrigatório, foi um ápice.
Todos os sonhos de menino pareciam findar, de uma forma trágica, como se um abismo se tivesse abeirado de si. Com medo de mais um passo dar, ficava-se pelo que a vida lhe ia trazendo, sem lamentar, resignado à sua sorte, ao saber que a caixinha não mais iria crescer, pelo menos por agora. Quase todos os amigos começavam a partir. Partiam uns para a faculdade, outros para o mundo do trabalho ou de alguma arte que há muito já andavam a aprender, outros emigravam. Sem uma arte aprendida, apenas com o secundário, as perspectivas não eram nada animadoras. Sabedor dos custos de frequentar uma universidade, sabia que não tinha qualquer possibilidade para tentar esse caminho, que não era o sonho, apenas um caminho a percorrer para o alcançar: conversar com o mundo. Mas para isso ao certo ainda não sabia o que fazer, se o ia fazer. Coisas demais, que outrora lhe pareciam intocáveis. Por vezes o mundo fica lá fora, é preciso sair de casa. Sair da sua aldeia era abandonar a sua casa, abandonar tudo que o acarinhou, o berço que ao mundo o tinha trazido e ajudado a criar. Das pessoas aos animais que sempre amara, aos carreiros que sempre conhecera de cor, já no tempo que no ventre de sua mãe os percorria. Este pequeno cantinho que um dia achou ser o paraíso para toda a vida, espaço não tinha para tantos sonhos que ainda queria sonhar. – Então Nelo, como vai a vida? – Perguntava o amigo Quim sempre que o encontrava aos fins-de-semana, já depois da tropa. – Vai para ai, mais-ou-menos.- Mas ambos sabiam que era muito mais o menos que o mais. O Quim entretanto tinha começado a trabalhar por conta própria, já tinha a sua empresa. Era um sonho que tinha concretizado. Mas queria mais, queria continuar a crescer, quem sabe um dia ser uma grande empresa Nacional. Sempre tentava animar o amigo, tentando perceber o que realmente queria fazer da vida, na vida. – Se eu ao menos soubesse! – Era a resposta habitual, numa conversa que por vezes era um pouco cansativa, ao contrário do que acontecia no passado. Para o Nelo, o crescer tinha sido o pior que lhe podia acontecer. Ele que gostava tanto do mundo do conhecimento, que estava sempre pronto a opinar sobre tudo e sobre nada, que poucas coisas lhe escapavam, sempre ávido de querer saber mais, não sabia sequer o que fazer à sua vida. Ingratidão das ingratidões.  
*
A grande aventura
                Por esta altura já a vida tinha um ar muito sério, cheio de compromissos, obrigações. Quem não estava a estudar na universidade, que eram muito poucos, e não tinha um emprego, ficava por casa ajudando os pais na pequena lavoura que se fazia para sustento da casa. Como assim sempre fora, pelo menos para uma grande parte dos moradores. Hoje, como no passado, muitos tinham que procurar levar a vida longe da aldeia, quem sabe se ele também não teria de emigrar, como outros amigos o já tinham feito.
                Para o Nelo parecia que tudo tinha chegado ao fim, pelo menos para o pequeno sonhador, que deixou apenas de ser pequeno. Com alguma instrução que tinha e vontade de trabalhar, não foi difícil conseguir trabalho. Não o que tinha sonhado, mas era trabalho, sempre certo o salário ao fim do mês. Mas era um pouco duro fisicamente, dai resolver voltar a estudar à noite. Dois anos mais tarde, a grande mudança na sua vida. Resolveu traçar um novo rumo para a sua vida.
                Há coisas que nunca nos saem da cabeça. Bom, isto é, não sabemos ao certo como lá entraram, mas que andam sempre a matutar no nosso pensamento, lá isso andam. É uma consumição. Assim andava o Nelo até que a coisa já não dava para aguentar. Tinha que fazer alguma coisa. Começou a sondar uns tios que viviam no Porto, já há muitos anos. Eles é que o poderiam ajudar, pensava ele, mas sem dizer nada a quem quer que fosse. Ainda não sabia o que ia fazer ao certo. O melhor era só falar à família quando tudo estivesse realmente resolvido. O plano era muito simples: arranjar trabalho e tentar estudar à noite. Podia ser que um dia conseguisse tirar um curso superior. Isto porque precisava de saber falar ao mundo, saber a linguagem que o mundo entende. Para isso não havia outro remédio, tinha que voltar a estudar, regressar ao mundo do conhecimento. Este sonhar acordado, despertou novamente o menino adormecido dentro dele. Os tios apoiaram-no, dando-lhe o incentivo que lhe faltava. Trabalho era o que não faltava na grande cidade: trabalho, não emprego. E em poucos meses a grande mudança, para o melhor ou para o pior, ia-se dar, tal a determinação que o Nelo tinha. Sabia que ia ser muito duro largar a pequena aldeia, os amigos. Não ia para longe, mas a vida seria muito diferente. Já não seria morador, apenas visitante quando as folgas do trabalho na restauração assim o permitissem. Só o espírito sonhador o conseguia apaziguar da dor que era afastar-se da família e dos amigos. Parecia que ia para outro mundo.
                E ia mesmo. Não na distância física, mas na envolvência que a sua vida iria tomar. Parece coisa de tolos, mas por vezes é assim que as mudanças são sentidas, como eram sentidas no caso do Nelo. Não falava disto a quem quer que fosse por vergonha, por este sentir provinciano. Não tinha vergonha de o sentir, tinha era a certeza que os outros não o entenderiam. O melhor era mesmo ficar calado, viver só para si. Nos dias que antecederam à sua mudança, fez várias caminhadas pelos sítios que mais gostava. Era a sua forma de se despedir, sem beijos nem abraços, apenas um olhar que achava ser entendido por tudo o que o rodeava. Não estava senil, era assim que gostava de ser, os outros não precisavam de saber do amor que sentia por toda aquela aldeia, por tantos amigos que iria deixar de ver todos os dias. Mas sentia que precisava de fazer desta vez uma caminhada diferente. A caixinha de recordações seria intocável, fosse qual fosse o fim deste novo desafio na sua vida. Só pedia a Deus saúde para vencer as adversidades, adaptar-se ao mundo dos outros, que esperava também ser um pouco seu, a seu tempo. E num domingo à tarde, o Nelo apanhou a carreira que o ia levar para longe, tão longe de tudo que tinha vivido até então.
*
Sem conhecer mais
Depois da sua partida, pouca coisa sei da vida dos dois amigos. Mesmo assim resolvi escrevê-la para não me esquecer. O que se passou a seguir com o Nelo, ao certo não sei. Apenas sei que acabou por tirar o curso que tanto desejava. Por lá casou e formou família. A caixinha de recordações da pequena aldeia, das primeiras namoradas do lugar ou da escola secundária, tinha-se fechado, talvez para sempre. Costuma voltar à aldeia algumas vezes por ano, principalmente nas férias escolares, para trazer os miúdos. Restaurou a casa que era de seus pais, e vai dando que fazer aos do lugar que lhe tratam do pequeno quintal. Talvez seja a nostalgia de tempos aqui vividos que o fazem regressar, querer partilhar com os seus filhos a magia que sempre sentiu pela aldeia natal. A ver vamos, se a aldeia os cativa. Mas não acredito, as cidades tem tudo, são mais apetecíveis. As aldeias são como a casa de um pobre: muito trabalho, poucas comodidades. Os encantamentos que tem, apenas são capazes de os herdar os mais sensíveis às coisas simples da vida, da natureza. É preciso compreender este mundo rural, saber adaptar-se, gostar de plantar e ver crescer, respirar por entre a floresta o ar puro, mais húmido junto a algum ribeiro, que no verão refresca o corpo e a alma. É um tempo que passa mais devagar. Mas hoje poucas coisas são iguais ao tempo em que cá viveu. Os moinhos caíram por abandono, os lameiros estão a monte, os rios e as levadas densas de vegetação que quase não dá para passar nas suas margens. É o abandono, as pessoas tiveram que partir à procura de melhores condições de vida. A pequena agricultura deixou de ser viável, as pessoas desejam outras coisas. Esta pequena aldeia tem a sorte de não estar muito longe dos grandes centros. Muitos ainda optam por viver cá, mesmo trabalhando fora. É a sua sorte, a sua salvação. Mas nem todas têm esta sorte, ficam mais longe de tudo. A aldeia ainda vai tendo vida, vai tendo gente. Será que a próxima geração ainda a vai querer, a vai amar do jeito dos seus pais. Até quando?
O Quim também partiu. Vive no centro do país, em Coimbra, onde tem uma grande empresa de construção. Como o Nelo, também regressa esporadicamente à aldeia, por vezes já combinados para se encontrarem. O Beto e o Tono também acabaram por partir. Hoje vivem em Lisboa. Formaram uma sociedade num bar-concerto e habitualmente fazem digressões pelo país e no estrangeiro como disco-jóqueis. A aldeia continua lá.
                Tudo deve ter um fim. Tudo deve terminar no fim. Mas nem tudo tem fim, mas nem tudo termina no fim, pelo menos ao nosso olhar, ao nosso entendimento. Desconhecendo, o fim, tudo parece prolongar-se no infinito. Supomos, achamos que, não temos a certeza do que quer que seja, pouco ou nada acabamos por achar saber. Serão sempre mais as dúvidas que as certezas. E tudo começa com o primeiro passo de uma qualquer coisa. No estado inicial, no início, se é que é possível definir esse ponto imaginário numa qualquer vida, existência, tudo existe num único ser, num único ponto. Ali se adensa tudo, e o ser nada confere-lhe a certeza de tudo que é. Descolando desse ponto, seja em que sentido for, a linha do conhecimento que adquirimos afasta-se de modo exponencial das certezas que buscamos. Refugiamo-nos nas argumentações que sempre encontram algo para se alimentar, para se agarrar, mesmo que nelas próprias. Entrelaçadas, vão caindo num abismo, mas sempre entrelaçadas, já não havendo onde se apoiar, onde se alimentar. Vagueando, como tudo o resto, esperando alguma força invisível, que a atraia, a fixe junto a ela, a faça girar em torno dela, para que não se sinta perdida na perdição que pode ser o simples facto de se existir. Tantas vezes apenas nos sentimos saciados pelo que ainda não alcançamos, que nunca iremos alcançar. Mas argumentamos numa certeza absoluta que se assim fosse ou deixasse de ser, tudo seria perfeito, devia ser na certeza absoluta o melhor caminho que devia ter sido tomado. Mesmo que satisfeitos achamos estar, devêssemos estar, a alma é sempre de uma inquietude que nos ultrapassa no entendimento, na compreensão. Só o cansaço nos pode fazer acreditar que por hoje já chega.
                Porque se lembra esta pequena história, sem pés nem cabeça, sem grande coisa? Apenas tento compreender, descobrir de que forma será possível não deixar morrer estas pequenas aldeias. Não encontro o caminho, talvez não exista um caminho. Nos tempos primeiros, em que elas começaram, na maior parte dos casos, foi porque alguém fugia de outras maiores, para sua segurança, talvez fugidos de qualquer coisa. Já foram férteis, criadoras de muito alimento que chegava para todos. Mas as cidades estão sempre ávidas de nova gente. Se nelas não nasce, de outras terras tem que vir. As aldeias vão fornecendo essa mão-de-obra mais castigada pela vida, que aceita as tarefas que os outros têm vergonha de fazer, que não querem fazer. Partem, tantas vezes parecendo “vender a alma ao diabo”, trocando a sua liberdade em troca do bem-estar, da comodidade. Não querem passar a fome que os seus pais e avós já passaram, querem dar aos filhos os brinquedos que nunca tiveram. Depois, as gerações seguintes já não regressam, com receio, com medo de aqui se sentirem sós, longe de um cinema, de um teatro, de uma boa pastelaria, de um hospital se for necessário. As aldeias são o parente pobre, aquele que se visita uma vez por ano, para não parecer mal.
                Muitas destas aldeias estão abandonadas, apenas restam os escombros do casario que outrora existiu. Algumas transformaram-se em resorts turísticos, apenas para turismo, sem uma vida própria, autossuficiente, dependendo dela e dos seus para a vida levar. Talvez seja a única solução para que se preserve alguma história. O passado é passado, nunca volta. A existir algo no futuro, sustentável, será diferente, assente noutra realidade que não a do passado, penso eu.
                Quarta-feira, dia 02 de Janeiro de 2013