quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Sobreviver


De uma forma melancólica, quase entorpecida de lembranças que a memória teima em recordar, os dias passam-se sem um calendário definido. Alguma dificuldade em me situar no tempo, no tempo dos outros Homens. A vida tem destas coisas, destes tropeções que nos deixam bastante feridos. Um ferimento na alma, cá dentro, sem escoriações vistas do exterior, pelo menos assim penso. Como uma árvore que tem diversas raízes, assim eu me agarro às que ainda tem vida, ainda estão ligadas à terra mãe e me sustentam com o alimento que recolhem. São por certo raízes bem profundas, longe dos machados dos homens. Escondidas na terra profunda, seguram-me, não me deixam ser arrastado pelas tempestades da vida. Agarrado a elas vou-me firmando e afirmando, ora baloiçando até quase raspar no chão, outras vezes é a folhagem que sucumbe rasgada pela chuva que não é miudinha, pedras de gelo que me fustigam, relâmpagos que me assustam de morte. O clima ameno não encontra lugar para se sentar, por aqui uns tempos ficar, me cuidar, deixar cuidar-me.
 Não são tempos fáceis, granjeio o pouco que há para me alimentar, recolho-me nas vestes que há muito me fazem companhia, me aconchegam. Os passos são mais curtos, as distancias a percorrer são mais pequenas, apenas as viagens ao meu íntimo é que se alargaram, se vão demorando cada vez mais. Uma forma de estar vivo, mesmo hibernando de tantos outros mundos que ainda há pouco percorria diariamente em freimas descontroladas na pressa e no esforço de as conseguir fazer. De repente, num ápice, quase sem dar conta, deparo-me com todo o tempo do mundo que parece ser tão pouco para as viagens que desejo nunca terminar. São outras viagens, apenas me basta o olhar sereno tentando compreender, aceitar o meu fado.
Morrendo num mundo, renasço noutros bem diferentes, cheios de uma magia estranha, um pouco assombrada pelos parcos meios que começam a escassear para o corpo alimentar, já que a alma perdida anda em viagens pelo interior das raízes que se estendem até ao meu início, ao início da minha existência. Saciada de tantas vivências, tenho que a chamar, pedir-lhe que me acompanhe em mais uma demanda pelo mundo dos outros homens à procura de alimento, à procura de outros ventos que não me açoitem, apenas acariciem a face que reluz com o suor que brota de todos os poros de uma pele já muito envelhecida, também cansada.
  Tenho que lhe pedir encarecidamente que para o pé de mim venha, que não me abandone neste tempo, que de mim tenha piedade, do corpo que tenho que alimentar para que ela também comigo ainda viva mais algum tempo. Não sei se conseguirei convencê-la a aceitar a mortalidade já que ela imortal já o é. Nem que seja por breves instantes, que me acompanhe e me dê ânimo e fé para acreditar que atrás de um monte está outro, depois de uma onda sempre outras virão. O tempo não para, não quero que pare já para mim, quero ver e fazer acontecer tantas coisas. Por muito cansado que o corpo esteja, será a alma a levar meus pés a caminhar, meu rosto a sorrir e a chorar por tantos carreiros em que me quero aventurar.
Se todos os medos que me invadem eu pudesse enfrentar, ciente da minha pequenez, ciente da minha vontade de não me quedar!... Não me acobardo às tarefas ditas mais miúdas que são essenciais para me cuidar, me manter vivo e afastado de qualquer dependência. Mas quero tanto ter um tempo que aconteça durante as minhas viagens desde a raiz mais profunda até ao cume dos rebentos que todos os dias quero fazer brotar, fazer crescer em direcção ao sol, à lua que, adormecida, me faz companhia, suspensa no vazio do firmamento, que ali se mantém sempre distante, para que seja de todos.