Desejo
Desço pelo
caminho que leva ao cimo do lugar. Desço, pois mais acima, já entre o denso
pinhal que a envolve, quase a chegar ao lugar da Estrada, se situa o meu cantinho,
das noites e dos dias que por lá permaneço. Desço um pouco, para contemplar, junto
à casa do Sr. José do “Norte”, o telhado
das casas do “meu” pequeno lugar, pequena aldeia que por aqui foi crescendo, em
redor uns dos outros. É ainda manhã, não muito cedinho. Vêem-se para o lado
nascente, onde no fundo das encostas corre, ou apenas caminha, o meu querido
rio arda, pequenas neblinas brancas que se espreguiçam em direcção ao sol, ao
céu. São suaves ao olhar, divinamente
leves, por ali dormiram, acordando com o dia, esfumando-se no ar, diluindo-se
sem deixar rasto. Mas que são agradáveis de contemplar de ficar um pouco mais
a tentar reter na retina esta visão deslumbrante, de um acordar calmo e sereno,
demorado, sem pressa de se diluírem, tornarem-se invisíveis ao meu olhar. O dia
tem uma claridade cristalina, apetece sentir todos os tons refrescantes que o
olhar absorve, a alma sente. As montanhas, mais ao longe, dispõem-se como
pequena ondulação num mar sempre calmo, apenas se mexendo quando estas neblinas
acordam, decidem levantar-se em direcção à luz, ao calor do sol que vai espreitando
no cimo da encosta mais longínqua.
Algumas
chaminés já fumegam, algumas, mas poucas. O fumo é de cor cinza claro, suave,
vai ondulando pelo caminho que, também ele, ao céu se dirige, lá mais para
cima, mais além dos caminhos dos pequenos pássaros que há muito também já
acordaram. Os telhados são de uma cor de tijolo quente, uns mais que outros,
devido a não terem nascido no mesmo tempo, alguns, mais velhos, estão escuros,
com bocados de musgo que ali se decidiram fixar, para de mais alto também poderem
olhar o resto do lugar, assim como eu. É agradável, este sentir que com o olhar
tudo se alcança, que tudo o que nos envolve, nos conforta, podemos abraçar,
tentar entender o que cada telhado nos poderá contar, a vida que já viveu, as
vidas que sempre cobriu, agasalhou da chuva ou do sol escaldante do pico de
qualquer verão, quando se recolhe ao quinteiro, a uma sala mais fresca, para
uma sesta dormir, uma conversa com o vizinho ter, sentado no carro de bois que
no quinteiro também se abriga, por baixo, sempre, do telhado de telhas de barro
quente.
Depois
de alimentar esta inquietude de tudo absorver, continuo a descer, até as portas
dos quinteiros encontrar, as que dão para as casas. Já há muito que se
levantaram, os poucos que por aqui caminham, que a vida sempre levam. Os demais
já partiram, como partem todos os dias, como eu há pouco também partia, para
onde o local de trabalho os chama. Nesta fase mais ruim da economia, da falta
de trabalho, o lugar agradece pelos que dele deixaram de partir manhã cedo, em
casa obrigados a ficar. Malandro do lugar, rindo-se lá bem no fundo, desta má
sorte de alguns habitantes, boa sorte a dele que assim ganhou mais companhia
para o dia passar. Não é bom saber que estão desempregados, mas sabe bem ter
alguém para conversar, sentir que a vida habita com mais corações neste pequeno
lugar, pequena aldeia. A ver vamos quem tem mais força, se as preces de quem
quer voltar a arranjar emprego, se o malandreco do lugar, que com eles quer
ficar. Porque num passado não muito distante,
os caminhos sempre se apinhavam dos que por aqui trabalhavam a pequena
agricultura, da canalha que para a escola corria, da escola fugia para brincar
nos largos, que eram mais que muitos, todos os sítios davam para brincar. Ainda
lembro o bom gigante do sobreiro que ficava do lado de baixo da casa dos meus
pais, no lenhal que era da casa dos “Alferes”, da casa “Domingos” e da casa da
“Joana”, esta ultima a casa dos meus pais. Pois, eu sou o Fernando da “Joana”,
filho da Sr. Rosária e do Sr. António. Era assim que todos éramos conhecidos, éramos da casa de alguém, dos do “Pólvora”, do “Martins”, do “Gago”, do “Melo”,
do “Paiva”, do “Carvalho”, da “Joana”, da “Joana de cima”, do “Domingos”, do
“Alferes”, do “Ângelo da loja”, do “Pejôa”, da “Miquelina”, do “Questina”, do
“Beira-mar”, do “Regedor”, do “Louro”, do “Pinho”, do “Norton”, do “Mineiro”,
do “Zé do norte”, do “Malaquias”, da “Isaura ou do Rodolfo”, da “Ferruge”, do
“Salvador”, do “Castro”, e possivelmente mais alguma que eu agora não lembro. O
sobreiro era mesmo enorme, de tronco abastado, não muito alto formava a sua
copa, de braços majestosos e entroncados que davam para toda a canalha que se
aventurasse, por eles andar, fazer “ninho”. Junto a ele estava pousada uma
grande mó, que nunca quis ir para o moinho, que ainda hoje por lá perto anda.
De verão era dos sítios mais procurado devido à sua sombra, ao fresquinho que
era brincar à sua sombra. Mas tudo que tem vida, um dia acaba por partir. Já
partiu há muito, deixou muitas recordações, a saudade desse tempo para sempre
continuará a existir, enquanto dele me lembrar, a memória não me abandonar.
Continuo
a caminhada, agora na direcção do ecoponto, pois o pouco lixo que trago ali vou
deixar, depois de separado conforme deve ser, para reciclar. Finda esta pequena
tarefa, continuo a alimentar a fome do olhar e da alma, que por aqui gostam de
passear. Mais adiante, junto à Capela de Santo António, encontro dois grandes
amigos, sentado num enorme bloco de cimento, paralelepípedo rectangular, mesmo
da altura ideal para se sentar, que ao que me parece, era do antigo posto do
leite que ali existia, na casa do “Martins”. Onde hoje se sentam, já muitos
litros de leite foram medidos, dos canados de todo o lugar. A produção de leite
era uma fonte de rendimento muito importante para qualquer lavrador. Com uma,
duas ou mais vacas, assim viviam muitas famílias. O seu leite que diariamente
produziam, as crias, quase uma por ano, eram a fonte de rendimento que
assegurava basicamente a sua subsistência. Existiam outras fontes de
rendimento, mas mais sazonais, como a venda de vinho, de feijão. Não me lembro
de ser hábito vender milho, que era a cultura mais importante da aldeia. O seu
uso era para cozer o pão para a família e para alimentar os animais que se
criavam. Outras pequenas vendas se faziam, a uma senhora que uma vez, ou mais,
por mês por cá andava. Eram os ovos, as galinhas, os galos, os coelhos e talvez
algo mais que agora não lembro. Quem
tinha tapadas, a venda de pinhal, pinheiros e eucaliptos, sempre constitui uma
grande fonte de riqueza, quer na venda, quer no abastecimento de lenha para as
lareiras que fumegavam todo o ano. Quem não tinha pinhais, sempre contava com a
generosidade de quem tinha, e lhe cedia lenha para a sua casa aquecer, a sua
comida cozinhar.
Quem
está sentado, não é um., mas dois grandes amigos: o meu pai, António, e o Sr.
Manuel do Martins. De gerações diferentes, um com setenta e seis anos, outro, o
Sr. Manuel, com noventa e tais anos. Este canto, junto ao muro da casa do
Alferes, é abrigado, dá o sol de frente, não se está mal. No pequeno largo que
fica em frente À capela, tem um pequeno cruzeiro mais a um canto, em frente à
casa do Sr. Manuel e da casa do Sr. Joaquim do “Fundões” ou “Domingos”, como se
goste de chamar. Na sua companhia estão ao todo sete gatos, de várias cores e
tamanhos, todos enrolados, por certo à espera de alguém. Digo isto porque já
sei o que se passa. Todas as semanas, não sei quantas vezes, passa por cá o
peixeiro. Ao entrar no lugar vai buzinando para acordar os fregueses, dizer que
chegou, que se apressem com os patacos, pois sardinha boa e outros peixe que o
mar sempre dá, não falta e ele o que quer é despejar as “canastras”. Agora já
não são canastras, como era antigamente. Nesses tempos, compravam-se às
canastras inteiras para salgar, como se faz com a carne do por que em casa se
matava. Agora existem as arcas frigorificas, tudo é diferente, talvez melhor
para a saúde, não para o paladar, que até com “renso” elas se comiam, depois de
demolhadas de um dia para o outro, como o bacalhau. Ali estavam à espera, pois
o peixeiro, como bom Samaritano que se preze, lá lhes lançava algum peixe para
logo de seguida desencadear luta acesa a ver quem agarrava primeiro. O que mais
me admirava eram os mais pequenos como bufavam aos grandes, não largando o que
agarravam, fugindo para um canto, de costas voltados, para mais sossegados se
deliciarem. A luta pela sobrevivência é tenaz, defende-se a vida com ela
própria, num acto de coragem imensurável. Adoro gatos, adoro tantos animais. Na
casa do Sr. Joaquim “Domingos”, no cume do telhado, estão dois gatos em barro,
um com um rato na boca e o outro para ele olhando, sem nada, talvez à espera
que o rato se escape da boca do outro, para logo de seguido o apanhar. Mas
ainda continua à espera.
Depois
da passagem, de os cumprimentar e com eles um pouco, porque é sempre pouco o
tempo que passamos com os nossos, regresso a casa, caminhando e pensando
daquelas coisas da vida que sempre acabamos pensando. Se o destino assim o
quiser, se um dia tiver a mesma idade que eles, quem terei eu para conversar? O
envelhecer pode ser um pouco assustador. Não que o seja de todo, mas pode ser
se nos imaginarmos um dia sós, com pouca saúde para nos cuidar, dependentes de
alguém para tudo e para nada. E se não houver esse “alguém”? As famílias vivem
tempos difíceis, de conseguir conciliar tudo. Ou é o sustento que necessitam de
granjear, ou o ficar cuidado dos progenitores ou de alguém que em casa esteja
precisando. A escolha não é fácil, por vezes nem escolha existe, apenas a
obrigação, a necessidade de trabalhar fora para ter pão na mesa. Ficam os mais
velhos deitados à sua sorte, a alguma solidão. As estruturas sociais que se
estão a construir na Freguesia são muito importantes. Ter um espaço para
acolher quem assim o desejar, alguém para cuidar, para estar. Mas este povo da
aldeia é por vezes um pouco “casmurro”. O que quero dizer, é que o seu apego à
casa, às suas rotinas diárias, são um pequeno obstáculo a transpor, a sair da
sua casa e conviver num local diferente, por mais acolhedor que seja. Não sei
como vai ser a sua adaptação, se assim o querem. Digo isto porque o meu pai diz
que para lá não quer ir, “nem morto”. A vida é feita de mudanças, talvez seja
mais pacífico, mais tranquila a mudança, a existir. É um centro de dia, mas é
muito importante, penso eu, para colmatar este tempo que todos os dias se
passa, quantas vezes, sozinho em casa. Uma sociedade avalia-se no seu todo. Se
essa sociedade não tiver possibilidade de cuidar dos que precisam, que tipo de
sociedade é? Estaremos a caminhar para um tempo em que achamos que o melhor é
“ desfazermos-nos” de quem não pode trabalhar, como já aconteceu tantas vezes na
história da humanidade? É preciso reflectir, ponderar o que realmente estamos a
fazer, ao impregnarmos toda a forma de viver de conceitos e obrigações que a
isso necessariamente vão levar. Serão, já hoje, os nossos filhos e os nossos
reformados, um peso para a sociedade? Penso desta forma, assim me interrogo,
dado que cada vez são mais os custos com ter um filho, cuidar de alguém que
precisa, e os apoios sociais estão a ser todos retirados, apenas nos impondo
condições, não questionando se temos possibilidades para isso. Falo como pai,
falo como alguém que também ajuda a cuidar dos seus pais já reformados. Falo do
que sinto, da realidade que constato Tiram o abono de família, exigem
propinas, temos que suportar a estadia longe de casa de quem tem que se
ausentar para frequentar o ensino que não temos perto de casa. Sem qualquer
apoio, tudo são despesas, desde o alojamento, o transporte, a alimentação, as
propinas, o material que é preciso adquirir. É uma grande aventura sonhar criar
filhos num “país que parece não os querer”. É preciso dizer que se não
existirem novas gerações, um dia tudo acaba?
A
caminhada de regresso é pequena, mas sempre a subir. Moro no “alto das Agras”,
como antigamente assim dizíamos. Corre mais vento, é mais frio, mais sombrio
devido às árvores que rodeiam a casa. Mas é onde gosto de estar, como todos e
os seus cantinhos, onde nos sentimos aconchegados, nos sentimos em “casa”. Onde
moramos juntamente com as recordações que se impregnaram nas paredes, em todos
os cantos, em todas as tralhas que sempre vamos guardando, fazendo tudo parte
de nós, como se fossemos um todo, um único ser. O ditado é velho: minha casa
meu lar, minha rede eu pescar. Do tempo em que se nascia em casa, se vivia,
nela se morria, ainda sinto esse existir para muitos. O seu apego às raízes,
como uma árvore, que já adulta é difícil de mudar de sítio, quase sempre acaba
por definhar, até morrer. Assim somos muitos de nós, quando nos levam, a vida
nos leva para longe das nossas raízes. Se não for por vontade própria, as
recordações serão o veneno que nos matará. Deixem lá estar os castelos de torres
de marfim, que eu por mim, nesta humilde casinha quero continuar, nunca dela
por muito tempo me ausentar. Não vá morrermos, eu e ela, pelas saudades que nos
envenenarão. Deixem estar os que assim querem estar, deixem-nos até a morte os
levar, que assim nada sentirão.
Doença
incurável, esta de que os aldeões quase sempre padecem. Mesmo que a vida os
leve para longe, sempre de regressão estão, como as andorinhas que todos os
anos sempre regressarão. Mas não devemos ter medo da vida enfrentar, de
desvendar novos caminhos, mesmo que a outra “casa” nos possa levar. Se assim o
for, que novamente se ganhe raízes, se arranje nova tralha para guardar,
outros vizinhos com quem falar. Que não deixemos de viver, encarecidamente a
mim peço, que em mim nasça uma nova força, que me apazigúe o peito e a alma,
que de saudade não me deixe morrer, sem antes toda a minha vida viver. Só
desejo, toda a minha vida, viver.
13 de Dezembro de 2012
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