domingo, 12 de outubro de 2014

Sossegado





Gateira - Pequeno janelo para os gatos entrarem e saírem,  dar luz e arejar os estábulos ou adegas,                      protegidas com grades em ferro (  por vezes fechadas quando o justificasse.). Foto tirada no                 lugar das Agras, freguesia de Mansores,   Concelho de  Arouca.

Sossegado


Não é fácil começar a escrever sem se ter algo pré-definido. Um tema, uma conversa inacabada, um desejo, mesmo que momentâneo, um certo desvario da mente que nos diz o que fazer, como fazer, e que achamos de todo algo importante, algo digno de se registar. Acontece muitas vezes escrevermos apenas com a mente, no pensamento, na alma que se materializa em nós e toma forma humana, podendo com ela conversarmos, desabafarmos, estabelecermos um diálogo como se duas entidades distintas em nós existissem. Mas acontece muitas vezes, mais quando a companhia humana não abunda por perto ou não nos é aprazível. Esta forma de nos refugiarmos dentro de nós  é um pouco como nos escondermos fechando apenas os olhos, tapando os ouvidos, ficando todos enroladinhos, tornarmo-nos invisíveis, sem ter que enfrentar tudo e todos. Lembro alguém que uma vez disse que quando estava doente o melhor era ficar na cama até que tudo passasse, sem ir ao médico nem à farmácia, apenas esperar que o organismo se recompusesse, cuidasse de si de uma forma autossuficiente., sem ajuda externa, sem intrusos a perturbar essa difícil tarefa de colocar de novo em ordem o funcionamento de máquina tão complexa e capaz de mirabolantes feitos, tantas vezes medonhos à sua própria compreensão. Mas aqui estou eu, junto a mim, dentro e fora, mas sempre em meu redor. Não me procuro, apenas preencho as pegadas que o tempo deixa ficar, como quando pisamos terra mole, depois da sementeira, uma marca na areia, enquanto a onda que se foi em breve voltará. E será sempre assim, pelo menos acho que sempre assim foi. Por magia de alguns fenómenos naturais, ainda hoje podemos ver algumas marcas de outras pegadas, de outros seres que foram, e se foram diluindo nos tempos, restando apenas algumas marcas que do tempo se preservaram, escondidas longe do olhar, do tocar, protegidas dessas forças diabólicas que comandam as mudanças, que sempre fizeram existir o tempo. Porque o tempo só existe por haver mudança, por criar o passado, o que já passou. E é assim, cada gesto nosso no presente logo se torna passado. Não sei o que é realmente o presente ou o futuro. Apenas sei que o passado existe porque já houve presente. E esse passado se tonará cada vez maior se o futuro continuar a existir. Um futuro que mais tarde ou mais cedo se tornará presente, que depois logo vira passado. Mas será realmente assim? O passado que passou também não faz parte do presente enquanto aqui estou, enquanto minha mente o mantiver presente na minha vida, presente em tudo que faço e penso? E o futuro não será presente, sempre presente se o penso, se o desejo, se o planeio, se o anseio ou temo? Mas em que é que eu fico? Se de todo me for impossível reler tudo que já escrevi neste texto, como posso continuar e sentir que tudo está interligado, que tem algum nexo, algum sentido? E se eu em mim impuser que não o farei, que continuarei sempre a escrever sem olhar para o início da frase, do texto? A minha memória bastará para eu me equilibrar nesta corda tão bamba, tão solta e estreita, tão lá no alto que em baixo nada avisto, nada parece existir além do medo, da angústia, de todos os males que o meu corpo e alma padecem? Que poderei eu fazer senão quebrar este pacto que a mim impus?  Chega, já chega de me martirizar. Mesmo sem olhar, saberei que poderei a qualquer altura o fazer. Como quase tudo que sonho ainda fazer. A qualquer altura, quando o desejo não poder ser domada pela racionalidade que toda a sociedade em mim depositou, me elevar para além das cordas físicas que na terra me sustém, me fixam em redor de algo que é o percurso que estou destinado a percorrer, ou não, nesta sempre breve passagem pela denominada vida humana, chegará então a altura de tudo acontecer.  E se chegada a altura já não poder acontecer porque os elementos se tornaram passado, e o passado só é passado quando já nada se pode alterar? Então que fazer, se a altura chegada não for a altura em que seja exequível todo esse futuro sonhado num presente já distante, e que hoje é passado no momento em que o futuro é presente? Que Deuses me vão acudir em hora tão infame e dolorosa, que o corpo estarrece e a alma padece, o mundo se dilui? Tintas e pincéis desmaterializaram-se por obra de grande fado, de medonho destino que se apoderou de todo o tempo, do passado e presente, mesmo do que ainda não aconteceu? E já não existirá mais tempo em mim, que os ventos que já passaram não sopram mais, já não mais existem ou voltarão a existir. E se existiram é porque alguém os lembra, alguém sentiu a sua força, o seu calor ou frio que ele transportava no seu regaço, mudanças provocou, pó arrastou, árvores balançou ou tombou, rochas deslocou, telhados desfez, os moinhos fez girar e o grão em farinha se transformou, as velas puxaram os mastros que agarrados ao casco estavam e a viagem prosseguiram. E só existiram não pelo que eram mas pelo que fizeram. Se obra não existe, como poderei saber se aqui estiveram os artesãos?


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