A carta
Tinham acabado
de cear. Arrumou-se a louça para a banca. Os restos, poucos, foram para o cão
que há muito ladrava no quinteiro. A fogueira estava a definhar. Alguém colocou
mais dois troncos de eucalipto da giga que estava a um canto, encostada à
lareira. Enquanto alguém lavava a loiça com água quente tirada da panela grande
que estava ao lume, outro sacudia a toalha no alto das escadas, para o
quinteiro. Já era noite há muito. De manhã as galinhas e os pássaros haveriam
de apanhar até há última migalha. Depois, embrulhava o resto da broa de milho
na toalha e guardava na masseira. A mesa da cozinha, onde comiam as refeições,
tinha uma tampa que se levantava para guardar o pão no seu interior, na chamada
masseira. A masseira era usada para amassar o pão, que depois havia de ir ao
forno e ficar em ricas broas. Por debaixo da masseira, quase até ao chão,
formava-se um armário de toda a largura e comprimento do fundo da masseira, que
era mais larga e comprida no cimo, onde tinha a tampa. Tinha duas portas onde
se costumava guardar outras coisas, como os púcaros com rojões. O dia de
trabalho tinha acabado. Alguns sentaram-se em redor da lareira. O filho mais
velho foi buscar as cartas para jogar com o pai, em frente à lareira.
- Vai lá
buscar o papel e a caneta para se fazer a carta. – Vai a mãe para a filha mais
velha. Dali a nada já tudo estava sobre a mesa: o envelope próprio para avião,
a caneta e o bloco com as folhas de carta. Debruçaram-se ambas sobre a mesa,
uma de cada lado nos bancos corridos, feitos de madeira, com os mais novos de
lado a querer saber o que se ia escrever. A tia estava lá do outro lado do
Atlântico, nunca a tinham conhecido pessoalmente, nunca chegariam a conhecer. A
carta começava sempre do mesmo jeito: “ Desejo que esta carta a vá encontrar, e
a toda a família, de perfeita saúde, que nós por cá estamos todos bem”. O
silêncio, de todos que estavam em redor na cozinha, era absoluto. Apenas a
patroa da casa ia ditando as frases, uma após outra. Por vezes pedia para lhe
lerem o que já estava escrito. Todos sentiam o valor daquelas linhas que se
escreviam, com cuidado para dar poucos erros. Pensavam nas emoções que
aconteciam quando o carteiro lhes entregava uma carta com uns selos diferentes,
o que queriam ouvir quando ela fosse lida em voz alta. Porque saber ler não era
para todos da casa. Aqueles pequeninos desenhos que se faziam por cima das
linhas direitas de uma folha de papel, apenas os que um dia aprenderam podiam
transformar em palavras, em frases, em tudo que por lá também acontecia. Era a
alma, as lágrimas contidas de quem a ditava que ali iriam ser gravadas. Como
quem talha na pedra ou na madeira alguma forma, assim se talhava no papel todo
o sentir de quem vive com a dor de não poder estar com os seus amados.
Depois de lida
vária vezes, lá vinham os beijos e abraços de despedida, sempre até breve. Já
pouco se escreve. Já quase nada se escreve para meter num envelope e pôr no
correio. Tudo é tão diferente, talvez melhor, quem sabe. Mas uma carta será
sempre uma carta. Escrever com a nossa caligrafia, presumar para que seja
bonita no conteúdo e na apresentação. A emoção de talharmos no papel algo que
poderá perdurar por muitas gerações, sempre revivida com a nostalgia própria de
quem ama tocar o passado, imaginar o sentir de quem a escreveu e de quem a
recebeu. Quem não gosta de receber uma carta amiga, de alguém que será sempre
especial porque nos deu um pouco de tudo que é? Acho que amanhã vou escrever
uma carta.
Sexta-feira,
dia 11 de Janeiro de 2013
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