quinta-feira, 5 de julho de 2012

Dormindo

O velho álbum há muito que não se mexia. Com o passar do tempo ficou cada vez mais parado, mais quieto, arrumado a um canto. Houve um tempo em que nada disto era assim. Um pouco cansado das mudanças, para ali se deixava estar. Já não tinha a destreza de um outro tempo. Não é fácil aceitar este abandono. Não muito desgastado nas páginas, que amparam cores de um outro tempo, de um outro mundo, de rostos e sentires distantes, ali continuava o seu repouso. A capa continuava dura, guardando com todo o seu vigor memórias que alguém um dia ali tinha deixado, esquecido. Não sabia ao certo o que guardava, mas fazia-o sem hesitar, sem questionar. Por vezes o seu sossego era importunado por mãos já um pouco tremules. Não se desfazia em emoção por alguém lhe dar um pouco de atenção. Mantinha-se como um verdadeiro Senhor, sem descompustura. Deixava-se levar para um canto qualquer da casa, onde se abria ao olhar de quem no colo o segurava. Umas vezes dava para espreitar um pouco da luz que pela janela entrava, ali ficava. Outras era a luz que pela janela se esquivava. Mas sempre dava para sentir vida na luz que lhe iluminava a alma. Umas vezes mais demoradas as vistas, outras nem tanto. Por vezes adormecia  numa página onde o olhar se demorava, se inquietava, se comovia. Se se pudesse olhar por dentro, ao certo saberia encontrar aquelas memórias que faziam alguém se demorar tanto. No início lembra-se muito bem, eram tantas as mãos que o abriam, olhavam-lhe a alma, sempre um pouco apressadas.
Foram tantos os sorrisos que sentiu em redor, tanta correria, alguns trambolhões, pequenos arranhões, uns tantos rabiscos que lhe fizeram cócegas. Nada disso se comparava ao tédio que era agora a sua vida. Nunca imaginara que iria sentir saudades desses "maus tratos". Ao certo não entendia o porquê de não quererem visitar os tesouros que haviam ali guardado. Teriam esquecido, já não existiria alguém que lembrasse? A velha estante continuava no mesmo sítio. De uma madeira um pouco envelhecida na cor, estendia-se por toda a parede da divisão do escritório, quase tocando o tecto. As portas, as mais de cima, tinham um vidro transparente para que todos se olhassem, se vissem. Passava o tempo a espreitar o que por ali se passava. Agora eram aquelas máquinas em cima das secretárias que colhiam todos os olhares, todas as atenções. Se ao menos pudesse gritar.
Suspirava tantas vezes no receio de nunca à "vida" voltar, de nunca mais sentir de perto um bater de um coração... E como queria tanto partilhar toda a sua alma. Sentia uma enorme tristeza, assim, sem ninguém para lhe tocar, acariciar, pegar entre as mãos, abri-lo à luz, ora em cima de uma mesa, ora pousado junto ao colo, adormecido sobre uma almofada, sempre de coração aberto. Mas de certo não será sempre assim, acreditava ele. A esperança, o acreditar que um dia iria ser diferente, mantinha a sua alma viva, embora quase hibernando por uma estação mais longa que as da natureza. Não seria o calor, a chuva, a neve ou qualquer outro fenómeno da natureza que o iria trazer de volta à vida. Seria a procura, o querer de alguém reencontrar-se com os seus tesouros esquecidos, adormecidos, que ali permaneceram durante todo aquele tempo, imutáveis. Essa necessidade de tocar o passado, olhar uma luz que ilumine a caverna já muito escura das recordações, do passar da vida. Ao tocá-lo, junto ao colo abrir-lhe a ama, iria avivar todo um outro tempo que estava adormecido, um pouco como a chuva alimenta e faz brotar a vida que no chão se esconde, se abriga, está adormecida. Haverá um tempo em que seremos todos álbuns adormecidos. Desejamos que a sorte nos abençoe, nos traga a "chuva" que nos alimentará de novo, fará brotar as sementes adormecidas dos ensinamentos apreendidos, dos sorrisos e choros contidos. Que sejamos como aqueles álbuns que guardam uma vida de recordações, tesouros apenas por certos olhares colhidos, compreendidos. E assim, mais uma vez, adormece, com este sonho, um pouco inclinado para não tombar.

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