O dia já há muito que se levantou. Vou
acordando à medida que me levanto, ainda com vontade de fazer companhia um
pouco mais aos lençóis. Resignado, sento-me ainda um pouco na beira da cama,
tentando ganhar alguma coragem para me por em pé, para me por acordado. Há dias
assim, custa tanto, tanto, que mais valia deixar-me ficar. Mas sei que não
posso, que não devo. Confesso que até me deitei cedo. Ultimamente tenho
enveredado por uma forma diferente de viver os dias e as noites. Gosto da
adrenalina de certas situações, de certas formas de viver diferente. Mas
ultimamente, não sei explicar porquê, gosto de viver um pouco mais isolado, um
pouco mais virado para dentro do pequeno quintal que rodeia por completo a
minha casa. As outras lutas, do trabalho, dos amigos e inimigos, das coisas que
sempre existem para tratar, tenho deixado um pouco de lado, um pouco longe do “
pé da minha casa”. Sinto-me algo aborrecido com o que por ai anda, ou andará. Ao
certo não quero saber. Não me venham contar pormenores disto ou daquilo que eu
não quero saber. Por que carga de água devo prestar atenção a esta ou aquela
versão dos acontecimentos daqui e dalém?
Não estou nem ai. Quero lá saber do que falam ou deixam de falar. São
apenas umas “marias” que não tem nada que fazer, a dar água sem caneco. Estou
cansado de tanto me preocupar com os outros. Não considero que seja egoísmo da
minha parte. Não sou nenhum egocêntrico, apenas acho que basta. Não me
arrependo do que fiz, mas agora quero apenas levantar-me, lavar a cara com água
fria a ver se acordo. Depois gosto do pequeno-almoço com companhia. Abre-se a
janela para abrir a portada e dar os bons dias ao dia que há muito já levantou.
Está um fresquinho matinal que arrepia um pouco o corpo ainda quente do
aconchego dos lençóis, dos cobertores, que ainda há pouco comigo dormiam. É uma
bonita manhã para ficar por casa. A chuva miudinha, mesmo miudinha, vai-se
deixando cair por todo o lado que avisto. Dos telhados já caiem umas gotinhas,
também elas miudinhas, mas não tanto. Aquelas gotinhas de chuva são umas
malandrotas. Juntam-se todas nos telhados e depois é como brincar num escorrega
até à ultima telha do beiral, de onde pulam para o chão, que nem garotado
traquina. Que divertido deve ser ter tantas amigas para brincar, para á janela
admirar. Assim está bom, já não preciso de regar as árvores nem as flores: esse
trabalho está feito. Lembro um pouco aqueles dias de chuva quando era garoto, e
que davam para eu ficar em casa. Gostava de olhar pela janela do meu quarto,
que dava para o lado nascente do lugar, e ver a chuva que descia sobre todos os
telhados, todos os campos, todos os caminhos, todos os guarda-chuvas que por
ali se aventuravam em pequenos passeios que talvez se tivessem mesmo que fazer.
Assim já dava para eu ficar a estudar sem ser o malandro que não quer
trabalhar. Era um pouco assim, por vezes não se entendia que era preciso
estudar para se estudar. Um pouco á semelhança de uma árvore qualquer que é
preciso cuidar para que dê fruto.
Vou aproveitar para fazer algumas daquelas coisas que ficam sempre para
quando se tiver “vagar”. Já há muito que não ouço certas músicas, não abro os
poucos álbuns que estão adormecidos na estante do escritório. A velha mala de
eucalipto, que era dos “Moreiras da Mata”, já lá vai tempo que não se abre, não
mostra o que por lá se foi guardando como pequenos tesouros que havia que
guardar. É uma foto, um relógio antigo, uma pequena agenda onde eu em miúdo
anotava os meus pequeninos segredos, fazia o meu diário mas apenas dos dias que
achavam valerem a pena serem um dia recordados. Pequenas descrições do que
acontecia, do meu estado de alma, das minhas ilusões e desilusões. São sempre
momentos de muita nostalgia, estes que agora se vivem ao visitar esse passado
já tão distante. Embora esses fragmentos do tempo que guardamos estejam sempre
presentes em mim, de uma forma ou de outra, pois não seria a pessoa que sou se
os não tivesse vivido, se de outra forma os tivesse vivido. Não são recordações
perfeitas ou imperfeitas, foram as que eu vivi. E foi nessa vivência, nessa
forma de agir e pensar que a minha personalidade se construi, foi tomando
forma, revelando-se ao mundo e a mim. Por certo existem momentos que eu acho
que seriam perfeitos se de outra forma acontecessem. Mas não dá para modificar,
o que passou já passou. O que mais me magoa não é o que eu gostaria que me
tivesse acontecido, é a dúvida se alguém se tenha desiludido comigo, saído
magoado. Essa insegurança é que mais me magoa. Não fui o menino que virou
doutor mas isso dá para aguentar. Só sinto uma tristeza na alma quando recordo
este ou aquele momento em que eu devia ter sofrido mais por alguém, não devia
ter apenas deixado a vida continuar. Todos sabemos que as batalhas são sempre
cruéis, mesmo quando se vence. Sempre foi meu sonho voar bem alto, sem
obstáculos, sem ninguém magoar. Apenas flutuar, pairar, sobre o mundo do qual
eu também fazia parte, mas não naqueles instantes. Ainda sonho esse sonho.
Vou
fazer todas essas coisas que há muito andava para fazer, mas primeiro vou
vestir uma roupa a condizer com o que o dia traz vestido. Quero ir lá fora
cumprimenta-lo, perguntar-lhe como está, meter conversa com ele. Mas não me
demoro, é um instantinho e eu volto já para junto de vós. Desejo muito ver mais
de perto aquelas garotinhas todas brincando de escorrega do meu telhado. Vou
deixar que algumas saltem no meu guarda-chuva para não se magoarem. Vou
assobiar para os cães saírem das casotas e sorrirem para mim, como eles gostam
de fazer. A malhadinha é que já se antecipou a mim. Entra-me pela porta vinda
do quintal já toda molhada. Sua malandra, não vias que estava a chover? Não me
liga nada e parece que não está preocupada. Se calhar também andou à
brincadeira com todas aquelas gotinhas que estão pulando das nuvens. Podias ao
menos ter-me chamado, bastava apenas miar. Mas ela apenas me fixa o olhar,
sentada sobre as patas traseiras, como que me pedindo alguma coisa. Ou é um
mimito ou a barriguita está a dar horas. Nem uma coisa nem outra te ade faltar
enquanto eu poder.
Já bem agasalhado, vestido
a rigor para a ocasião, lá me aventuro pelo quintal enquanto a chuva continua
miudinha, mesmo miudinha. Agora na frente da casa e do lado já tem calçada e
coberto. No princípio estava o piso em terra e formava grandes poças de água. Dava
para chapinhar no meio das poças com as galochas calçadas para não molhar os
pés. Como era divertido esse tempo com as crianças. Se calhar era melhor
destruir a calçada para o tempo voltar ao princípio; se calhar.
Percorro lentamente todo o quintal e não esqueço de me aventurar um
pouco no monte que me faz companhia, ali tão perto, ao redor do meu quintal que
está em redor da minha casa que está em redor de mim tantas vezes.
As árvores, a erva pequenina, tudo se rejubila de tão gostoso duche
fresquinho do cume até à raiz mais profunda. É um maná que dos Ceus cai para
alegria de todos, penso eu. Vou-me demorando aqui e ali para melhor sentir,
interiorizar esta alegria que me invade, me tranquiliza, me deixa um pouco a
planar. A água sempre me fascinou, e é de tantas formas que ela nos surpreende.
Acredito mesmo que é a “criatura” mais viva e com mais vida que conheço. Com
alguma tristeza sinto que está na hora de regressar a casa, de começar a fazer
aquilo que a mim prometi. Também vai ser bom tocar o passado que ainda continua
vivo dentro de mim. E da janela, enquanto vasculho tantas recordações ali
guardadas, pela janela terei a companhia da chuva que vai caindo miudinha,
mesmo muito miudinha.
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