quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Chuva miudinha


O dia já há muito que se levantou. Vou acordando à medida que me levanto, ainda com vontade de fazer companhia um pouco mais aos lençóis. Resignado, sento-me ainda um pouco na beira da cama, tentando ganhar alguma coragem para me por em pé, para me por acordado. Há dias assim, custa tanto, tanto, que mais valia deixar-me ficar. Mas sei que não posso, que não devo. Confesso que até me deitei cedo. Ultimamente tenho enveredado por uma forma diferente de viver os dias e as noites. Gosto da adrenalina de certas situações, de certas formas de viver diferente. Mas ultimamente, não sei explicar porquê, gosto de viver um pouco mais isolado, um pouco mais virado para dentro do pequeno quintal que rodeia por completo a minha casa. As outras lutas, do trabalho, dos amigos e inimigos, das coisas que sempre existem para tratar, tenho deixado um pouco de lado, um pouco longe do “ pé da minha casa”. Sinto-me algo aborrecido com o que por ai anda, ou andará. Ao certo não quero saber. Não me venham contar pormenores disto ou daquilo que eu não quero saber. Por que carga de água devo prestar atenção a esta ou aquela versão dos acontecimentos daqui e dalém?
Não estou nem ai. Quero lá saber do que falam ou deixam de falar. São apenas umas “marias” que não tem nada que fazer, a dar água sem caneco. Estou cansado de tanto me preocupar com os outros. Não considero que seja egoísmo da minha parte. Não sou nenhum egocêntrico, apenas acho que basta. Não me arrependo do que fiz, mas agora quero apenas levantar-me, lavar a cara com água fria a ver se acordo. Depois gosto do pequeno-almoço com companhia. Abre-se a janela para abrir a portada e dar os bons dias ao dia que há muito já levantou. Está um fresquinho matinal que arrepia um pouco o corpo ainda quente do aconchego dos lençóis, dos cobertores, que ainda há pouco comigo dormiam. É uma bonita manhã para ficar por casa. A chuva miudinha, mesmo miudinha, vai-se deixando cair por todo o lado que avisto. Dos telhados já caiem umas gotinhas, também elas miudinhas, mas não tanto. Aquelas gotinhas de chuva são umas malandrotas. Juntam-se todas nos telhados e depois é como brincar num escorrega até à ultima telha do beiral, de onde pulam para o chão, que nem garotado traquina. Que divertido deve ser ter tantas amigas para brincar, para á janela admirar. Assim está bom, já não preciso de regar as árvores nem as flores: esse trabalho está feito. Lembro um pouco aqueles dias de chuva quando era garoto, e que davam para eu ficar em casa. Gostava de olhar pela janela do meu quarto, que dava para o lado nascente do lugar, e ver a chuva que descia sobre todos os telhados, todos os campos, todos os caminhos, todos os guarda-chuvas que por ali se aventuravam em pequenos passeios que talvez se tivessem mesmo que fazer. Assim já dava para eu ficar a estudar sem ser o malandro que não quer trabalhar. Era um pouco assim, por vezes não se entendia que era preciso estudar para se estudar. Um pouco á semelhança de uma árvore qualquer que é preciso cuidar para que dê fruto.
Vou aproveitar para fazer algumas daquelas coisas que ficam sempre para quando se tiver “vagar”. Já há muito que não ouço certas músicas, não abro os poucos álbuns que estão adormecidos na estante do escritório. A velha mala de eucalipto, que era dos “Moreiras da Mata”, já lá vai tempo que não se abre, não mostra o que por lá se foi guardando como pequenos tesouros que havia que guardar. É uma foto, um relógio antigo, uma pequena agenda onde eu em miúdo anotava os meus pequeninos segredos, fazia o meu diário mas apenas dos dias que achavam valerem a pena serem um dia recordados. Pequenas descrições do que acontecia, do meu estado de alma, das minhas ilusões e desilusões. São sempre momentos de muita nostalgia, estes que agora se vivem ao visitar esse passado já tão distante. Embora esses fragmentos do tempo que guardamos estejam sempre presentes em mim, de uma forma ou de outra, pois não seria a pessoa que sou se os não tivesse vivido, se de outra forma os tivesse vivido. Não são recordações perfeitas ou imperfeitas, foram as que eu vivi. E foi nessa vivência, nessa forma de agir e pensar que a minha personalidade se construi, foi tomando forma, revelando-se ao mundo e a mim. Por certo existem momentos que eu acho que seriam perfeitos se de outra forma acontecessem. Mas não dá para modificar, o que passou já passou. O que mais me magoa não é o que eu gostaria que me tivesse acontecido, é a dúvida se alguém se tenha desiludido comigo, saído magoado. Essa insegurança é que mais me magoa. Não fui o menino que virou doutor mas isso dá para aguentar. Só sinto uma tristeza na alma quando recordo este ou aquele momento em que eu devia ter sofrido mais por alguém, não devia ter apenas deixado a vida continuar. Todos sabemos que as batalhas são sempre cruéis, mesmo quando se vence. Sempre foi meu sonho voar bem alto, sem obstáculos, sem ninguém magoar. Apenas flutuar, pairar, sobre o mundo do qual eu também fazia parte, mas não naqueles instantes. Ainda sonho esse sonho.
            Vou fazer todas essas coisas que há muito andava para fazer, mas primeiro vou vestir uma roupa a condizer com o que o dia traz vestido. Quero ir lá fora cumprimenta-lo, perguntar-lhe como está, meter conversa com ele. Mas não me demoro, é um instantinho e eu volto já para junto de vós. Desejo muito ver mais de perto aquelas garotinhas todas brincando de escorrega do meu telhado. Vou deixar que algumas saltem no meu guarda-chuva para não se magoarem. Vou assobiar para os cães saírem das casotas e sorrirem para mim, como eles gostam de fazer. A malhadinha é que já se antecipou a mim. Entra-me pela porta vinda do quintal já toda molhada. Sua malandra, não vias que estava a chover? Não me liga nada e parece que não está preocupada. Se calhar também andou à brincadeira com todas aquelas gotinhas que estão pulando das nuvens. Podias ao menos ter-me chamado, bastava apenas miar. Mas ela apenas me fixa o olhar, sentada sobre as patas traseiras, como que me pedindo alguma coisa. Ou é um mimito ou a barriguita está a dar horas. Nem uma coisa nem outra te ade faltar enquanto eu poder.
            Já bem agasalhado, vestido a rigor para a ocasião, lá me aventuro pelo quintal enquanto a chuva continua miudinha, mesmo miudinha. Agora na frente da casa e do lado já tem calçada e coberto. No princípio estava o piso em terra e formava grandes poças de água. Dava para chapinhar no meio das poças com as galochas calçadas para não molhar os pés. Como era divertido esse tempo com as crianças. Se calhar era melhor destruir a calçada para o tempo voltar ao princípio; se calhar.
Percorro lentamente todo o quintal e não esqueço de me aventurar um pouco no monte que me faz companhia, ali tão perto, ao redor do meu quintal que está em redor da minha casa que está em redor de mim tantas vezes.
As árvores, a erva pequenina, tudo se rejubila de tão gostoso duche fresquinho do cume até à raiz mais profunda. É um maná que dos Ceus cai para alegria de todos, penso eu. Vou-me demorando aqui e ali para melhor sentir, interiorizar esta alegria que me invade, me tranquiliza, me deixa um pouco a planar. A água sempre me fascinou, e é de tantas formas que ela nos surpreende. Acredito mesmo que é a “criatura” mais viva e com mais vida que conheço. Com alguma tristeza sinto que está na hora de regressar a casa, de começar a fazer aquilo que a mim prometi. Também vai ser bom tocar o passado que ainda continua vivo dentro de mim. E da janela, enquanto vasculho tantas recordações ali guardadas, pela janela terei a companhia da chuva que vai caindo miudinha, mesmo muito miudinha.  


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