terça-feira, 19 de junho de 2012

Caminhando por perto


    ( Um campo com o tradicional milho e ao fundo as batatas. Estamos no inicio de Junho. Não falta a   ramada com as videiras. A minha região produz vinho "verde", branco ou tinto.)       

Não tenho jeito nenhum para contar histórias. Gosto muito de as ler ou ouvir da boca de quem sabe. Uma boa história é dificil de inventar. Além do tema em si, é preciso descrever meticulosamente as personagens, o meio onde se desenrola a acção, dar uma sequência correcta aos acontecimentos, etc. Quando contamos uma passagem nossa, é muito mais fácil. Só é preciso lembrar, um pouco de criatividade pode ajudar a adornar e mais nada. Creio que em todo o lado existe sempre alguém que marca a diferença, com uma habilidade natural para inventar ou contar belas história para delicia de quem as houve. Certo é que as histórias "dos livros" são mais completas, mais longas. As histórias que o povo conta são mais simples, requerem apenas uma certa genica para muitas vezes interpretar, dar vida às diferentes personagens, ajudar a divertir. Não gosto de histórias que fomentam aspectos negativos. Admiro a criatividade, o engenho de saber fazer de algo simples uma bela história. Gostaria de fazer uma recolha das histórias que faziam parte de um tempo distante, o mais distante possivel. Como eram histórias que passavam de boca em boca, muitas se perderam, partiram junto com o seu contador.
Este fim de semana peguei na máquina fotográfica e dei uma volta pela freguesia. Não por toda a freguesia, apenas pelos sítios por onde habitualmente passeio. Nessa pequena volta parei em casa do Sr. Manuel do Martins, que mora junto à Capela de S. António, nas Agras. Conversamos  um pouco, queria saber das suas histórias. Já com noventa e quatro anos(se não me engano), a memória já não é o que era, dizia Ele. Muito bem disposto, conversador, foi-me dizendo que muitas histórias já tinha esquecido no todo ou em parte. Lembrou outros contadores de histórias "do seu tempo". A forma como falava dava para perceber que Ele pelo menos lembrava a alegria com que as costumava ouvir. Uma que Ele me contou é mais ou menos assim:
" Antigamente era hábito quando não havia muito que fazer e estava de inverno, os mais pobres abeirarem-se da casa dos mais abastados para assim poderem juntar-se à mesa. Certa vez estando alguém em casa de outrém e não mostrando grande vontade de se ir embora, começava a impacientar o dono pois a hora da ceia já estava a passar. De uma forma mais ou menos discreta e tentando enviar um recado ao visitante, vai o patrão para o criado:
- Oh criado, vai ver se chove.
Acatando a ordem e percebendo a intenção do patrão, o criado volta e assim responde:
- Oh patrão, chove e choverá. Quem estiver em casa alheia embora se irá.
O visitante apercebendo-se de tudo o que se estava a passar, não se mostrou incomodado, antes pelo contrário, e respondeu desta forma:
- Chove e choverá. Se eu estivesse em minha casa como estou em casa alheia, já tinha mandado tirar a ceia."



( Vista panorâmica. Ao fundo a Capela Nossa Senhora do Rosário.)


Toda a vida das pessoas estava mais ou menos circunscrita ao que em redor se passava. Quero com isto dizer que toda a vivência estava dependente do que a freguesia produzia, do que nela acontecia. Quem passava as fronteiras da freguesia fazia-o para se casar, ir servir ou emigrar. Haviam as casas mais abastadas que eram o centro de toda a economia da aldeia. No caso concreto da minha aldeia, o que aconteceu no passado foi um pouco estranho: a maior parte dos filhoss das casas grandes emigraram ou para o Brasil ou para Angola, no tempo em que era uma colónia Portuguesa. Ai muitos fizeram grandes fortunas, mas nem todos. Os patrões geriam as propriedades agricolas, tinham criados para os trabalhos diários e por vezes alguns "jornaleiros" quando era época de maior aperto. Com o passar dos tempos a realidade foi-se modificando pouco-a-pouco. Os criados começaram a fazer algumas terras  arrendadas aos antigos patrões, começando a ter alguma autonomia, alguma independência. Por vezes acontecia terem gado "a meias". Ou seja, cuidavam de animais que não eram seus, colhendo para si no caso das vacas, o leite que elas davam. Quando pariam crias eram para o dono dela que geralmente era algum negociante de gado ou alguém mais abastado. Tempos de muita luta pela indepência que os pobres gostavam de ter, normalmente após o casamento. Crescendo a trabalhar como criados, o casamento surgia como uma oportunidade de erguer a sua própria vida. Não era fácil conseguir terra para cultivar. Arrendavam os campos mais fracos, mais pequenos, com menos água, os que ficavam mais longe do lugar. Mas era assim ou nada. Os melhores campos eram pertença das casas mais abastadas. Hoje muitos campos estão abandonadas, sem haver alguém que os queira cultivar. É caso para dizer que é ironia do destino. Outrora disputados como se de uma namorada se tratasse, hoje veem-se sós, abandonados, já não amados. Mas os tempos estão sempre a mudar. Sabe-se lá qual o futuro, como será daqui a algum tempo. Um campo de cultivo hoje não é muito valorizado. No entanto, poucos percebem o seu potencial. Não é apenas mais um bocado de terreno. Os campos das aldeias, pelo menos a maioria, são fruto de muito trabalho humano e de séculos de empenho da natureza que os transformou em bons terrenos de cultivo. No inicio era apenas monte. O homem juntou-se em grandes grupos, primeiro retirou a terra preta, com humus, que cobria o solo para um lado. Depois escavou para nivelar o terreno. Enquanto escavava, ia separando as rochas para um lado e a outra terra fina para outro. Quando atingiu a profundidade pretendida, começou por espalhar as rochas no fundo, depois cobriu com a terra mais fraca e por ultimo colocou a terra que inicialmente tinha separado. Quando a terra boa era pouca, ia buscar onde havia e trazia com os carros de bois. O trabalho era todo manual, com picaretas, enchadas, pás, maceiros para transportar a terra e as rochas. Muita gente era preciso, muito tempo demorava. Quando o terreno era muito inclinado, construiam-se combros com a pedra que havia no local ou que era trazida de onde havia mais. Poucos imaginam, hoje ao olhar os campos, o trabalho que ali está. São bonitos de ao longe ver, quando cultivados, quando bem tratados. Bonitas fotos, bonitas paisagens preenchem. Mas para o habitante, para quem os trabalha, a sua beleza está nas colheitas que eles lhes dão, a casa farta para o ano inteiro. Na casa que construi, o terreno em redor era todo monte. Ao longo dos anos, eu e toda a familia, com a ajuda de pessoas e máquinas que pagamos para nos ajudar, temos vindo a transformar aos poucos em terreno cultivado. Demora muitos anos, é preciso muito trabalho. Todos os anos ainda continuamos com o balde a acompanhar qualquer trabalho de sementeira e não só, para recolher as pequenas pedras que aparecem e que em seguida colocamos num pequeno "monte" a um canto na quinta. A terra por enquanto ainda é "pobre", ou seja, tem pouco alimento, pouco humús. Quando mais pobre é a terra, mais regas precisa para produzir. As árvores de fruto no quintal são muito importante dado que as suas raizes vão fundo à procura de humidade. Ajudam a reter a água das chuvas, dão sombra nos dias muito quentes, e sempre vão dando alguma fruta.
É com alguma tristeza que olho um campo abandonado, sem estar cultivado. São os sinais do tempo, um tempo diferente. Valorizam-se outras actividades, outras formas de levar a vida. Os campos deixaram de ser rentáveis, de dar o pão que as pessoas querem. Não sei o porquê. Talvez saiba, mas não compreendo bem. Apoiam-se tantas coisas e destroi-se a agricultura tradicional como se de uma doença se tratasse. Num mundo que diz valorizar o crescimento sustentado, a preservação do habitat, das espécies nativas, incentivar a cultura biológica, sem produtos quimicos, que melhor exemplo podemos ter que a agricultura que era praticada pelos habitantes das aldeias, como os meus pais? Usavam o mato que cortavam nos montes para fazer o estrume com que alimentavam as terras. Dessa forma limpavam as matas evitando os incêndios florestais e obtinham um alimento natural para as suas sementeiras. No contexto actual este tipo de vida é impensável, não é viável. O que mudou para tal acontecer, ao certo não sei. Apenas sei que a agricultura que hoje se pratica na freguesia é de dois tipos: por quem tem vacarias com muitos animais, maquinaria, em grande escala ou aqueles que cultivam apenas para complemento do orçamento familiar, tendo sempre como principal ocupação um trabalho remunerado.
É sempre com alguma nostalgia que se recorda o passado. Os amigos de infância que tiveram que partir à procura noutros locais do sustento para a família. Muitos acabam por sair da freguesia, começar família noutras terras. É com muita tristeza que os vejo partir. A vida nunca mais será a mesma. A nossa infância fica um pouco retalhado, um pouco por todo o lado, levada por quem parte, por quem tem de partir.
Por enquanto ainda por aqui estou. Amanhã será sempre um novo dia, sabe-se lá como será. O que eu gostaria mesmo era que o que quer que acontecesse fosse vontade minha, não necessidade. Mas sou apenas mais um que a vida tem que levar," a sua cruz tem que carregar".

( Habitação restaurada. Um lindo recanto.)

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