quarta-feira, 20 de junho de 2012

A "floppy"




Já foi há algum tempo, talvez dois anos. O acontecimento em si foi novo, até um pouco estranho. Como a familia vive de paredes meias com os montes que a rodeiam, a vida selvagem sempre por ali anda. Nessa altura já tinhamos os cães( a saber quatro: a cinzenta, a amarelinha, o preto e o castanho. Não vou dizer a cor do seu pêlo, está bem? Bom, eu sei, já perceberam.) e vários gatos e gatas que sempre nos faziam companhia. Os cães tem um sitio próprio para estarem nas suas casotas. Os gatos andavam pela quinta e dormiam num barraco de madeira com cobertura de chapa, que tinhamos construido para guardar a lenha e as alfaias agricolas. O primeiro barraco para a lenha que construimos foi com alguma madeira e um plástico para não entrar a chuva. Ficava situado da parte de trás da casa, no meio do monte que entretanto passou a ser campo depois de terraplanado.
Tempos muito engraçados em que a necessidade criava o engenho. Quando somos postos à prova e temos que buscar soluções, as coisas acabam por acontecer, muitas vezes superamo-nos. Gosto muito de lembrar esse tempo, mais novo, mais genica, menos aflição. Para garantir o conforto do lar não poupamos esforços. A lenha que cortamos e rachamos no verão é guardada para o inverno. Nessa altura como sabe bem uma fogueira, à lareira estarmos todos juntos a conversar. Gasto muita lenha durante todo o ano. Sempre que se pode cozinha-se na lareira com as tradicionais panelas pretas de fundição. Aproveitamos o calor para aquecer as águas sanitárias através de uma caldeira de inox que existe na parte de trás da lareira e um termoacumulador no sotão. De inverno o aquecimento da habitação é feita por radiadores que funcionam com a água que vem de um recuperador a lenha instalado na sala. É muito importante fazer a gestão dos recursos naturais que temos ao nosso dispor.
Um certo dia as minhas filhotas viram um dos gatos a trazer do monte um coelho, ainda pequeno, na boca. Não estava ferido, o gato apenas o caçou e o trouxe para junto de casa, talvez para nos oferecer. O que foi espantoso foi o facto de não o ter magoado, como se pegasse num filhote.À noite quando cheguei do trabalho lá fui resolver a situação. O coelho tinha sido uma alegria, uma novidade para toda a tarde se entreterem. Não era para menos, aquela bolinha de pelo fofo, de um cinzento não muito escuro. Com o seu olhar assustado, o coração se sentia a bater com muito pressa quando estava no nosso colo, junto ao peito. Mas era preciso tomar uma decisão, pensar no futuro do animal. O melhor mesmo era devolvêlo ao seu habitat natural. E assim se fez, com cuidado no colinho o levamos até uma zona onde tinha um silvado. Ai o deixamos e logo se escapuliu, ficando o assunto resolvido.
Bom, isso era o que nós pensavamos. No dia seguinte o mesmo gato voltou a repetir a proeza. Igualzinho, sem o magoar, novamente nos ofereceu aquele coelho pequenino, tão fofinho. Não havia outro jeito senão aceitar a prenda. O cabo dos trabalhos seria arranjar casa para o "Floppy", quase logo assim baptizado. E mais uma vez fomos postos à prova. Havia que imaginar e construir uma gaiola para ele morar. Costumo levar do armazém as paletes que não tem proveito. Em casa recuperamos as tábuas melhores para as nossas construções. Costuma-se dizer que quem aproveita o que não presta, tem o que é preciso. Às vezes é assim, nem sempre. A casa do floppy seria muito simples: aproveitamos uma caixa em plástico para fazer a base, pois tinha que ser vedada devido às fezes que iria naturalmente fazer. Por cima levava a gaiola em madeira dos lados, o fundo com abertura para a caixa de plástico e a cobertura seria em rede para entrar a luz.  A parte superior, a gaiola em madeira com rede,  era amovivel para se poder fazer a limpeza da caixa de plástico quando fosse necessário. Tinha uma pequena porta na estrutura da madeira com o seu nome ai escrito. Colocamos dois tubos de cartão na parte superior para servir de toca, ficar escondido. Não era muito grande, mas era o melhor que tinhamos. O fundo da caixa de plástico era coberto com terra e erva que cavavamos no quintal. Até parecia um campo verdadeiro. Assim podia passear e escavar o pouco que dava. No dia em que se fazia a mudança da terra, costumava comer a erva que junto vinha. A sua alimentação eram os restos da hortaliça, mas o que ele gostava mais era de cenoura. Quando queriamos fazer mimos ou brincar com ele, a melhor forma de ele sair da toca era com uma cenoura. Muito estranho ao principio, como é natural, com o tempo foi-se habituando à nossa presença. A "casa" dele ficava na garagem para não haver perigo dos gatos o comerem. Sempre gostei de animais, fui criado a conviver com eles. Os meus filhos também os adoram. Às vezes é muito complicado gerir as emoções quando algum morre. Mas faz parte do crescimento saber lidar com a dor, a morte. Uma noite aconteceu-me atropelar o gato, de quem gostava mais, quando estacionava a carrinha. Foi uma das piores noites que tive. O que mais me custou foi contar aos filhos o sucedido. Nessa noite o sono foi pouco, as lágrimas tomaram todos os rostos da casa. Acontece, mas que doi muito doi.
O tempo foi passando e o floppy  crescendo junto de nós. Todos os dias havia alguma brincadeira com ele. Quando o soltavamos na garagem era uma festa. Os instintos mantinham-se, fugir, procurar um esconderijo. Afinal era um coelho selvagem. Durante os meses seguintes, sempre que se chegava a casa iamos ver como estava. Sempre que havia oportunidade, as filhotas pegavam na gaiola e levavam-na para o quintal. Como a parte inferior era metade aberta, o floppy podia ficar em contacto com a erva que ali havia. Era uma alegria para ele e para nós. Sentir um pouco de natureza, comer erva fresquinha, era tudo o que desejavamos.
Já há muito tinhamos planeado construir uns currais e um abrigo para a lenha. O barraco de madeira estava a ficar "velho", era preciso fazer alguma coisa. Assim, juntamente com outras obras a decorrer, resolveu-se no final  construir dois corrais, uma divisão para as ferramentas e farinhas e outra parte aberta na frente para lenha. Os currais com 16m2 cada eram um óptimo espaço para criar animais. Com cobertura de telha, um vitral corrido a um metro e setenta de altura para dar claridade, estava perfeito. A porta em aluminio era metade com vidro fosco, para haver alguma privacidade para os moradores. E foi assim que aconteceu, cerca de um ano depois de o termos conhecido, o floppy ia estrear uma casa nova, com espaço para correr. A mudança foi marcante. Como ele estava feliz, como nós estavamos radiantes. Num canto colocamos um raizeiro grande para servir de toca, esconderijo. O floppy sempre gostou muito de cheirar tudo. As orelhas arrebitadas, muito desconfiado, lá foi conhecendo os cantos à sua nova casa, sempre a mecher o nariz. Era um sentir de satisfação proporcionar aquelas condições ao fofinho coelho, que parecia ser já da familia, como os gatos, os cães. Com o andar dos tempos começamos a achar que ele estava muito sozinho, precisava de companhia. E em pouco tempo se decidiu comprar um casal de coelhos bravos, também pequenos, para lhe fazer companhia. Decidiu-se por um casal pois não tinhamos a certeza se o floppy era um ou uma coelhinha. Mais tarde tivemos a certeza que afinal era uma floppy. A adaptação entre eles foi normal, penso eu. Mas algo estava para acontecer que eu nunca tinha imaginado. Não é que eles resolveram escavar no chão uma toca? Pois é, foi o que eles fizeram. Quando demos por ela a toca já se sumia no chão, junto à divisão que separava o corral dos arrumos. Os corrais tinham ficado com o piso em terra, enquanto que as outras divisões tinha sido cimentadas, para melhor limpeza. Agora quando iamos ao corral éra dificil ver os três coelhos. A maior parte das vezes só os viamos de rompante, a esquivarem-se para a toca. E continuaram a escavar tal era o monte de terra que havia do lado de fora da toca. De certeza que gostavam de uma toca com espaço. Um dia apareceu no meio do corral uma coelha morta. Não apresentava sinais de luta, foi estranho. O que lhe aconteceu nunca ficamos a saber. Fez-se uma cova no quintal e enterrou-se. Mais uma dor a suportar, a digerir. Aos fins de semana eu e o meu filho costumamos cortar um carro de mão de mato para fazer a cama aos coelhos. Ou seja, renovar o chão que eles pisam e onde defecam. Foi assim que eu aprendi em casa dos meus pais. Além disso vai fazendo estrume para um dia aplicar na quinta. A floppy foi sempre a que vinha até mais perto de nós. Quando chegavamos com a comida, lá vinha ela inspeccionar tudo, ver se havia algum petisco. Decerto o gosto pelas cenouras nunca o perdeu. As minhas filhotas sempre continuaram a pegar-lhe ao colo. A elas deixava, vinha ter junto delas. Não sei o porquê, mas que sempre foi assim foi. E os dias iam passando, as semanas, os meses. A floppy começou a engordar muito, depois aparecia sem bocados de pêlo. Foi fácil perceber que vinha ai ninhada de filhotes: ela ia ser mãe. Só passado algum tempo é que começamos a ver uns pequenotes a esgueirarem-se, quase não dando para ver. Um dia fiquei à espreita do lado de fora da janela, rente à noite. Coloquei comida, couves e alguma erva tenrinha, e esperei. Tive que esperar um bom bocado, mas lá acabaram por sair da toca. Nada mais nada menos que cinco bolinhas de pêlo fofo como a mãe e o pai. Apetecia ir lá e pegá-los todos ao colo. Mas não queria assustá-los. Ainda não me tinha apercebido que tinha ali um problema a resolver. Como devem saber os coelhos durante o ano fazem várias vezes criação. A continuar assim, o que iria ser? A toca não parava de aumentar sabe-se lá por onde. Continuamos a tirar a terra que eles iam escavando. A comida por muita que colocássemos, no outro dia já era. Que lindos inquilinos que eu havia de arrajar. Não pagam renda, comida de graça, assim é que é vida. 
Neste momento ainda não sei como vai terminar esta aventura com os coelhos selvagens. Por enquanto adoptamos outra estratégia para ver se resolvemos alguma coisa. Como eles não param de aumentar, o melhor mesmo é devolvê-los ao seu habitat natural, ao monte. Tenho deixado a porta do corral aberta durante a noite. Por enquanto só foram vistos alguns a passear cá fora. Só que não está a correr como esperavamos. Não tinhamos pensado que les eventualmente não queiram abandonar aquela toca. Mas é o que está a acontecer. À noite saem e comem a hortaliça mais mimosa que plantámos, e de manhã ou andam por lá escondidos ou regressam ao curral novamente. Não tenho a menor duvida que eles querem ser livres mas terem uma toca segura, junto de nós. Lá "burros" não são. Bom, por enquanto é tudo sobre a aventura da floppy que cresceu junto de nós e parece que não nos quer deixar. Até um animal selvagem sabe reconhecer quem lhe faz bem.

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