domingo, 14 de outubro de 2012

As aldeias


          

-" Antigamente as mulheres ainda vendiam uns ovos, ou algum centeio ou aveia, sem os homens saber, para ter algum dinheiro. Agora, as mulheres não têm dinheiro para nada, não são senhoras de um tostão." – Assim desabafava uma pessoa amiga, um pouco mais velha do que eu. Na verdade, já somos todos velhos, num tempo com poucos "novos". Não é a idade que o faz, mas antes o que já carregamos nas algibeiras que arrastamos. Ainda se fala assim. Ainda se ouvem estes desabafos. Ainda assim acontece. Não é uma passagem de um qualquer filme de época. Ainda continua assim por vários cantos do meu lugar, do lugar onde moro, mas talvez o habite apenas esporadicamente, como acontece quando bato à porta de alguém para meter conversa, quase sempre por coisa de nada. Apenas porque necessito de me ligar com uma outra qualquer realidade que me solte do mundo dos sonhos que guardo, qual pastor e seu rebanho. Tantas vezes o levo a pastar nas pastagens idílicas que invento para o alimentar, a esse mundo.
É, sem dúvida, um mundo cheio de mundos que coabitam o mesmo espaço, o mesmo tempo físico, não sabendo se vivem lado a lado, mas que vivem, vivem. Os tempos serão sempre de todos e de todas as formas de estar e sentir, daqueles que mantém os seus equilíbrios, tantas vezes de uma forma que pode parecer “estranha”. Estranha pode não ser o termo correcto, mas para mim assim o parece, pelo menos às vezes. Sim, não é tão estranho como pode parecer. Se caminhar um pouco pela minha vivência, toda esta forma de estar e sentir sempre existiu. Apenas o menino que um dia começou a ir de autocarro para uma escola mais longe, tenha sido tocado, integrado noutros mundos que os professores e os livros o fizeram descobrir e nele entrar. Embora presentes em mim, todas as vivências vividas e que me tocaram, umas vão-se sobrepondo às outras, como camadas de sedimentos que se vão depositando, formando a morfologia interna do meu ser. Visível, tocável, por onde nossos passos caminham, apenas a crusta, as últimas vivências. Mas todas as camadas estarão sempre presentes, se a memória nunca nos faltar. Seremos rochas compostas por todas as diferentes camadas de sedimentos que depositamos dentro do nosso ser, desde o núcleo até à crusta. Mas rochas vivas, sempre em crescimento, sempre agrupando outras camadas de sedimentos, outras vivências que todos os dias enquanto vivemos, no mundo dos seres livres e sonhadores, vamos acrescentando. Triste e monótono seria, se apenas existisse a mesma camada de sedimento, sempre igual, desde o núcleo até à crusta.
Explicar, fazer sentir àqueles que nunca tiveram esta experiência, nunca realizaram tal experiência de vida, pode ser difícil. Mas o ser humano desde o sempre que dele se fala, agiu e pensou basicamente segundo os mesmos princípios. Sempre precisou de se alimentar, sempre buscou o equilíbrio com o grupo onde se integrava, sempre amou e foi amado, odiou e foi odiado, sempre teve os mesmos sentimentos e necessidades dentro dele. As formas de os manifestar sofreram alterações, mas os princípios, a essência das necessidades, do sentir e desejar manifestar-se, parecem manter-se imutáveis. Pelo menos assim penso, assim olho todos os outros tempos que aconteceram e os que se espera continuem a acontecer. Não estou a dizer que é o que devia ser. Mas não consigo criar, imaginar outra forma, outra identidade como ser humano que também sou. Posso não me sentir muitas vezes confortável “com a roupa que visto”, mas não sei dizer qual a outra que desejaria ou se a desejaria. Somos seres curiosos, por vezes até dá gosto ficar apenas a olhar, a tentar desvendar os seus segredos. Como foi o caso desta senhora amiga com quem hoje falei. O seu desabafo não foi o de alguém que pedisse esmola, muito pelo contrário, foi altivo, como se uma necessidade material apenas enobrecesse toda a sua personalidade. Porque o ser pobre ou rico não é condicionante para o ser que somos, interiormente, a forma digna e esclarecida como nos definimos, as situações que da nossa vida tomamos no regaço, como filhos nossos, nossos filhos. São nossas essas passagens, e como nossas as acolhemos, mesmo que em pranto. Não é onde chegamos que nos define, mas sim o como o fazemos e o “estado” em que chegamos, como continuamos a ser no “chegar”.
Neste ambiente rural a que entretanto cinjo meus passos, depois de outra viagem, pequena, num ambiente semirrural, semiurbano, encontro e reencontro-me com formas de viver, de granjear o sustento do dia-a-dia que são específicas, ligadas à terra, às hortas, aos animais que criam, a uma pequena agricultura que ainda se vai praticando. Embora rudimentar, nada lucrativa, muitas ainda teimam contra as maiorias lutar, viver na sua casinha, que consideram sua, na terra que trabalham e que sua é. Sê-lo-á enquanto as forças não se perderem pelos anos que a vida vai fazendo. Não gosto de pensar o que sinto. Não quero sentir o que penso. Quero acreditar que haverá sempre lugar para todas as formas de viver, com a vida lidar, o sustento para o corpo e para a alma granjear. Um dos requisitos que sinto ser necessidade de muitos que nas aldeias habitam, é o de manter a sua liberdade, a sua autonomia, a sua independência dos grandes núcleos urbanos, do poder. Acho que gostariam de ser invisíveis aos senhores das leis, dos cobradores de impostos. Senhores se sentem das nascentes de água, dos pequenos ribeiros e rios, dos campos onde  cultivam o seu alimento, dos montes que lhes alimentam as lareiras,  que cozinham e lhes aquecem as casas e as roupas que trazem.
Mas sei que tudo está a mudar. Sinto que em breve estes “teimosos” findarão e não haverá descendência que siga os seus passos, os seus olhares, o seu olhar a vida. Partem em busca de algo que,se calhar, ao certo não sabem bem. Não querem precisar de vender os ovos, às dúzias, para ter alguns tostões. Precisam de muitos tostões para se saciar, no corpo e na alma. Que no seu ser não se perca nenhuma camada das vivências que aqui passaram, que deles continue a fazer parte. Que a saudade não os largue, e, quando puder, os arraste de novo às origens, ainda vivos e com vida, para se deixarem por estes campos e montes aprisionar, nas suas nascentes a sede saciar, das conversas com os vizinhos a mente e a alma alimentar. Que a saudade seja enorme, incansável, o seu fado cumprir de um dia os aqui trazer, para ficarem, para sempre ficarem. Ai cidades belas, que as minhas companhias levais, pela calada, no silêncio que a vida toma, sem me dar conta, sem poder a casa do “ladrão” salvar!...
Esta terra, com nome, é igual a tantas outras que existem. Este povo, que um dia andou à charrua, é como tantos outros que a sua terra lavram. Eu sou dos que aqui, por enquanto, ainda estão. Olhar, caminhar pelos carreiros, que são do passado mas que ainda existem, faz parte de um viver comum, apenas tentando não esquecer as vozes que cantavam o povo que foi adormecendo. Num olhar o mundo e os seus desígnios, as suas vontades, as suas necessidades, estou. De tantas profecias que os novos profetas invocam, sinto-me abismado, não pretendo fazer o que quer que seja para neles acreditar. Mas de todo é impossível passar indiferente, não se deixar impregnar de tantas hipóteses e suposições que se fazem sobre o futuro da nossa espécie, e em particular sobre a nossa forma de viver. Somos sempre mais a cada dia que passa, tristeza a minha que não seja esse crescimento igual em todas as cidades, vilas e aldeias. Umas crescem enquanto outras vão-se sumindo nas encostas de pequenos riachos, nas poucas planícies, nos pequenos planaltos. Muitos concelhos tentam atrair a si alguma indústria para fixarem os poucos que restam. Não é fácil competir de igual para igual com a beira litoral, que de si mais atractiva o tem sido.
Lembro os tios do Porto, os que nasceram em Carvalhal Redondo. Era miúdo mas nunca esqueci a forma calorosa com que nos recebiam nas poucas viagens que ao Porto fazíamos, quando ao Porto se ia “ em cima de um burro morto”. Lembro a cidade escura, dos seus granitos, barulhenta, do seu movimento. O cheiro a Bananas, quando entrávamos no apartamento da tia Rosa e do tio Abílio, que ainda fica no Largo do Viriato (não sei se o tal que queria escorraçar os Romanos e acabou nas suas mãos), por detrás do Hospital de Santo António. De volta aos carreiros, interrogo-me sobre o destino meu e dos que por aqui labutam. Relegando para um plano inferior o valor que a agricultura e os seus campos já tiveram, a pouca indústria é escassa para dar sustento a todas as famílias. Diariamente somos conduzidos para pequenas viagens à procura, regressando, no final do dia, como os pardais que ao seu ninho vêm pernoitar. A criação dos Polos escolares é mais uma dura realidade, retirando às aldeias a magia, a vida que uma criança representa. Estou preocupado. As gerações que estamos a criar poucos laços criam com a sua aldeia. Que lembranças irão ter se não brincam nos seus largos, não se aventuram pelos campos à procura de um cacho de uvas, de uma maçã, de uma laranja, de uma ameixa, de uns figos, de uma pêra  de um ouriço com castanhas e tantas outras que agora não lembro. Os laços que outrora estabelecemos e que nos fazem por aqui querer estar, já não se estabelecem entre os nossos filhos e a magia que inventávamos para que o nosso lugar fosse o centro do universo. Choro da mágoa que sinto por não conhecer tantos que aqui nasceram e cedo se despediram. Por vezes já nem recordo a sua face, o som da sua voz por nunca com eles ter conversado. Estranhas todas as novas vivências que nos afastam uns dos outros. O mundo dos teclados e ecrãs tomou conta do lugar que era das conversas, das brincadeiras, todos olhando-se olhos nos olhos, sentido a sua presença enquanto um todo. Não passamos, na maior parte das vezes, de uma realidade virtual, sem alma, sem cheiro, sem tacto. Há coisas que os olhos não conseguem ver, sentir. A nossa presença não se assemelha em nada a uma imagem num monitor, a uma mensagem teclada. Ai como eu sinto que sou mais, que todos devem ser mais do que isso. Que essa realidade exista, mas que não tome o lugar das outras que também precisam de existir. Ai de nós, que futuro nos espera se não lutamos para fazer acontecer de novo a convivência, a criação de raízes com a terra que nossos antepassados alimentou. Ai de nós se não erguemos bem alto a enxada para na terra cavar alicerces fundos para as “árvores do futuro” pegarem, criarem raízes que as façam crescer, aqui viver. Ai de nós se não conseguimos forças para acompanhar todo este movimento de mudanças constantes. Mas nada se pode prometer. O futuro é a cada instante, e a cada instante se parte, se vai à procura. Por vezes, fala-se que a agricultura será no futuro a actividade mais importante devido à escassez de alimento que poderá acontecer. Mas ninguém pode viver o futuro se não tiver presente. Até acontecer o futuro, vive-se o presente. Todos os dias vivemos, não dá para hibernar, apenas acordar quando o “clima” for propício. O futuro e o presente confundem-se tal a “dependência” que tem um do outro. Se uma árvore está a secar, não lhe posso apenas dizer que, quando o inverno chegar, haverá água em abundância  Até lá, o que é que ela bebe? Secará e toda a água de nada lhe valerá, se as raízes sem vida já estiverem. Se queremos projectar um futuro, começamos já hoje e nunca podemos parar, descuidarmo-nos, fazer uma pausa e depois voltarmos à tarefa. Muitas coisas não podem ser tratadas assim. Se queremos que as nossas aldeias continuem vivas, temos que repensar muitas coisas: isto se queremos que elas continuem a existir habitadas e com uma dinâmica sempre crescente.
        Sempre que faço uma pequena reflexão sobre um hipotético futuro para a minha aldeia, e as aldeias em geral, sinto que dificilmente atrairão as novas gerações. Poderão acontecer muitos casos de um regresso mais tarde por nostalgia, por uma saudade que foi crescendo, a procura de uma identidade própria que foi perdida nos aglomerados urbanos. Ainda quero acreditar que possa ser uma primeira escolha, mas não me posso iludir que para se concretizar muitos sonhos é preciso mais que uma bonita paisagem, um ar puro, o cantar das águas num pequeno riacho. Ninguém tem culpa, ninguém o faz por mal. Poderão um dia estes campos abandonadas serem de novo procurados. Até lá que permaneçam adormecidos ou alberguem uma flora que não os descaracterize, lhes roube o alimento que escondem. Que não sirvam para plantações de eucaliptos que só servirão para os tornar mais um bocado de “deserto”, inférteis. Talvez até seja melhor que ,por agora, eles descansem em vez de se praticar uma agricultura intensiva com o uso descontrolado de adubos, pesticidas e herbicidas. Não sei o que será melhor. O ideal para mim seria o conseguir-se fazer uma agricultura de forma sustentada e rentável capaz de dar “alimento” às novas gerações que essa actividade escolhessem.      

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