terça-feira, 23 de outubro de 2012

Saudade (a tia Laura)




        O “dia” todos os dias se levanta, acorda. O “dia” que sucede à noite, traz a claridade, a luz aos nossos olhos para o vivermos de uma forma mais visível, mais intensa. O “dia” que também tem a noite. 
  Nascemos num desses dias. Um dia que para sempre será recordado pelos aniversários que irão acontecer, festejados ou não, por vezes até esquecidos. Crescemos protegidos por entre cobertas e cobertores, todos enroladinhos pelos mimos e carinho que nos dão, nos protegem de todos os males. Seremos a alegria e a aflição de muitos momentos que aos outros acontecem. Vamos sempre crescendo, damos os primeiros passos no soalho da casa que nos acolheu, nos acolhe, seguros pelos braços de quem sempre e para todo o sempre nos cuidará, nos braços ou no coração. Enquanto a memória não findar, seremos eternos na alma de quem nos ama. Pequenas criaturas adoráveis em redor da saia de quem nos concebeu. A essas saias nos agarraremos tantas vezes para nos equilibrar, buscar refúgio, parecendo tantas vezes os pintainhos que entre as penas das asas da mãe galinha se escondem, e que deitando a cabecita de fora ficam espreitando o mundo, mas sempre protegidos. Sem sequer poder imaginar o que um dia o futuro nos poderá trazer, vamos continuando a crescer.
      Lembro a tia Laura, apenas pela foto que existe e pelo que a família conta. A tia Laura que um dia, um dia de certeza muito especial, casou com o Sr. Albino, o tio Albino. Da mesma freguesia, das mesmas origens humildes, pobres. De quem sabe que a vida será sempre uma luta diária para existir, buscar um bocado de pão e alguma alegria. Cedo partiram para muito longe. Muito mais além do cume da montanha mais alta que o olhar alcança no horizonte. Angola foi o destino que a” vida quis”. Na época Salazarista, ainda colónia Portuguesa, nunca soube ao certo qualquer pormenor da viagem. O que escrevo é apenas o que sinto do que acho que possam ter sentido. Minto, o que escrevo é o que sinto ao percorrer mentalmente os passos da sua vida. Não sei se o devo. Apenas sinto uma enorme nostalgia quando me recordo de toda a sua história. Nunca cheguei a conhecer a tia Laura. O que sei é apenas o que sinto, algumas passagens que ouço em família. A partida para Angola, o deixar a pequena aldeia à procura do sustento para a família que começava a crescer: primeiro a Amália, depois a Luísa. Primeiro Angola, mais tarde o Brasil  depois de uma pequena passagem novamente por Portugal. Viria a falecer no Brasil muito jovem, antes da sua mãe Ermelinda e seu pai Custódio terem partido. É com um grande aperto no coração que este texto escrevo. Gostava tanto de a ter conhecido. Só tenho a imaginação para tentar acompanhar os seus passos numa vida que me parece ter sido sempre de saudade, de nostalgia. Ao tio Albino ainda lembro algo da sua passagem pela casa dos meus pais, depois de Ela ter partido. Mas não tenho recordação de como Ele realmente era, como sentia, o que pensava. Eu sei que pode parecer cruel, mas gosto de olhar alguém e fazer todo o tipo de perguntas. Sou muitas vezes inconveniente mas não é por mal. Quero tanto descobrir as pessoas no seu todo. Saber o que lhes vai na alma, tudo o que sentem, como tem vivido a vida, os seus sonhos, os seus projectos. O ser humano é muito complexo. Conhecê-lo é uma aventura sempre gratificante. Não gosto de criar grandes expectactivas. Apenas adoro ficar à conversa, perceber todo o seu mundo, compreender, aprender, imaginar o que eu sentiria se pelas mesmas situações passasse. É um pouco como colher o pólen de uma flor e depois fazer o nosso próprio mel. E todas as flores são únicas, do seu pólen sairá um mel único, sem igual. Todas as flores deviam ser colhidas, o seu pólen, e feito o seu mel para partilhar com toda a colmeia. Os tempos eram muito difíceis, como o são em qualquer época para quem é pobre. Tantas vezes precisamos de partir, buscar mais além o que não encontramos onde estamos. Qual sonho seria o de uma mãe com duas maravilhosas filhas para criar? Qual a dor de tantas noites e dias com a incerteza do novo mundo que iria encontrar? O que nos leva a partir? O que nos dá forças para partir? Querida tia Laura, como eu gostava de um dia ter conversado consigo, ser o seu confidente do que lhe ia na alma, das recordações que guardava. Hoje sinto alguma nostalgia por ainda não conhecer mais de perto as suas adoradas filhas, os netos que já cresceram e levam suas vidas num mundo cada vez mais agitado, mais exigente. O que dói mais é esta certeza que tal nunca chegue a acontecer. A vida leva-nos no seu regaço, espalha-nos pelo prado, longe uns dos outros. Nos sentimos como plantas presas às raízes que nos seguram e alimentam da terra mãe. Sem nos podermos movimentar, percorrer o prado em busca da morte para a saudade. Como num sonho em que por mais que se queira não nos conseguimos afastar, fugir, apenas iremos acordar com uma forte angústia, como se a um precipício estivéssemos a cair sem podermos fazer o que quer que seja. 
Só me resta partir nos meus sonhos, viajar de olhos abertos ou fechados, achar dentro de mim o sentir que terá sido o seu. Saudosista, muito. Mesmo do que nunca vivi. Sou assim tantas vezes, tantas vezes choro junto a mim, só. Necessito tanto de o fazer, quero a dor partilhar, o sofrimento sentir, não sou mais do que aqueles que sofrem a dor de ter que partir. Preciso de também partir junto com eles, quero viver a dor de existir. Não aceito ficar acomodado, enquanto tantos meus amados, um dia, tiveram que partir, viagem longa fizeram na procura de um sonho. Gostaria tanto de ter a certeza que o encontraram, que tenha valido a pena a dor da partida, da viagem, do novo viver que começaram. Como será a terra que calcam, o sol que os aquece, a água que os sacia? Perdoai-me por apenas partir na mente, deixando o corpo para trás. Também eu hoje vejo partir. Não sei se também irei partir. São viagens muito curtas, talvez o preparar de uma mais dolorosa que se avizinha. Não certo de alimento para os seus sonhos por cá realizar, começam já a viver a partida. Hoje, é a universidade, sem qualquer garantia de um dia poderem por cá ficar. Somos cidadãos do mundo, partimos cada vez com mais facilidade. Mas, para mim, a dor será ainda maior por serem sangue do meu sangue. Todos os dias que ficar, a portada abrirei logo pela manhãzinha, o dia todo olhando o portão da entrada, da chegada. Sei que ouvir a sua voz, ver a sua imagem de pouco me valerá. Quero respirar o mesmo ar, sentir. 
Hoje, sinto o que não senti quando era miúdo e vi chegar, com seus filhos, muitos pais que um dia também tiveram que partir. Naquele dia, tinham que regressar. Um regresso não programado, à pressa, talvez fugindo. Fugindo de um crime que outros homens cometeram, a guerra propagaram numa terra maravilhosa por natureza. Com as suas vidas organizadas, em família, viram-se obrigados a abandonar o trabalho de tantos anos para proteger os seus tesouros mais valiosos: a vida da família. Não deve ter sido fácil, quer a partida quer a chegada. Regressar às origens, uma terra bonita mas pobre de infraestruturas laborais capazes de assegurar a subsistência quer de muitos que a já habitavam, quer dos que à casa paterna regressavam. Mas a vida é sempre um desafio, um adaptar-se constantemente, mesmo que em pranto, no corpo e na alma. Se um dia saudade  houvera desta terra, seriam agora as da “outra”, que à pressa tinham deixado, a existir. 
Não sei o que será de mim quando a hora de alguém se ausentar chegar. Seja eu ou um dos filhos, não sei a dor que irei sentir. Sou saudosista demais. Não dá para entender. Em 1998 tive a oportunidade de visitar a EXPO 98 com pessoas ligadas à empresa, através da empresa. O que estava programado era ficar lá três dias. Apenas fiquei um, no segundo dia tive que regressar a casa para junto da família. Já com três filhotes, não consegui estar mais tempo longe deles. Não sei não como vai ser no futuro. Sei que a todos custa. Sei que se tiver que ser vou-me adaptar. O que me traumatiza mais é esta forma provinciana que tenho da vida. Não é boa nem má. Apenas o é. Como qualquer outra forma de estar na vida. Não sei o que me parece viver sempre de lado para lado, deixando retalhos da vida por todo e qualquer lugar. As memórias serão muito ricas na diversidade, de um sentir sempre mais intenso devido a tantas partidas e tantos regressos ou a um novo destino chegar. Se a família vai "toda", juntos", deve ser mais fácil de a dor suportar. Decerto também aumentam as preocupações para a todos proporcionar as melhores condições de vida. Quando os filhos já nos acompanham, teremos sempre de pensar em tudo, com mais cuidado devido à sua maior fragilidade, vulnerabilidade que possa existir. Acredito que as crianças se adaptem melhor, consigam integrar-se mais facilmente. Das poucas memórias que ainda guardo do tempo em que ao lugar regressaram ou vieram os que tinham emigrado para Angola ou Brasil e os filhotes, que no percurso da vida lá tinham nascido, quase todo o tempo vivido, ainda lembro de algumas brincadeiras. Brincadeiras simples, como todas as crianças. Recordo quem uma vez me ensinou a fazer um copo com uma folha da árvore que ainda existe no adro da capela e que dá uma flor que chamamos de tília (faz um bom chá). De um dia ter escrito um poema que foi colocado na parede da escola primária, junto com uma menina muito bonita. 
Serão sempre recordações, enquanto lembradas e sentidas forem. É estranho quando alguém me fala de algo que aconteceu no passado e não consigo me lembrar. Acontece muitas vezes. Fico triste de não conseguir chegar a todas as minhas memórias. Se eu não conseguir de todo me lembrar, não tem muito significado para mim. Acredito na sinceridade de quem me conta, peço-lhe desculpa por a memória não me ajudar, e fico triste, muito triste. Mas sinto que de alguma forma foi importante esse viver, mesmo que por mim não recordado, há quem o sinta nas suas lembranças. É bom sentir que fazemos parte das recordações de alguém, de muitos “alguéns”. É sinónimo  que a "vida" existiu durante a nossa vida. Como o é também o nosso lembrar de muitos “alguéns” que de nós já se esqueceram. É talvez um caminhar numa calçada mais agreste, este sentir que se é esquecido. A todos que eu esqueci peço perdão e misericórdia no castigo de tão grave pecado cometer. 
Nesta linda terra que quase sempre habitei, rodeado por montes de agradável vegetação, de suaves encostas cultivadas, pequenos vales verdejantes divididos pelo seu pequeno ribeiro que em si guarda tão preciosa água para aos campos a dar. Tão preciosa como qualquer outro tesouro, faz crescer as sementeiras para que se transformem em fruto que um dia se há-de colher. Mas por mais alimento que possa dar, já a todos não dá para chegar. Então parte-se à procura. Como em tantas aldeias, sempre se partiu. Julgo que a maioria leva na alma o desejo de regressar. A emigração que se faz para países europeus deve ser mais fácil. Não tão longe, a maioria regressa todos os anos para a saudade alimentar, não a matar. Porque querem ter sempre saudade, desejo de um dia por aqui poderem ficar para sempre. É bom que assim seja. É bom quando um filho ao colo da sua mãe regressa, para com ela estar, o tempo que puder viver. Será sempre o tempo que puder, não o que quer. Mas desejo que assim continue, o reencontro, o regressar ao portão que o aguarda chegar.
Ainda não partiram e o portão já costumo olhar. Porque sinto deste jeito, esta saudade que ainda não existe? Não quero ser um “velho do Restelo”, desejar que suas naus ao sair do porto logo ali encalhem. Quero que se tiverem de partir, que o façam com a dor no peito e a cabeça altiva, olhando novos horizontes, dando novos horizontes aos seus e aos meus olhares. Que seja uma viagem com destino. Que o destino não seja cruel, que os ajude a serem Homens de uma verdade extrema, com a alma cheia de bondade e o corpo de desejo de a partilhar. Que haja obra no seu labor, que fique sempre um doce sabor. E se regresso houver, que venha a saudade primeira alimentar, e sinta também a “outra” saudade. Vou as couves na horta continuar a cultivar, as batatas no sótão guardar, a lenha seca e abrigada sempre estará, todos os dias a chaminé fumegará para que ao longe seja avistada por quem, por bem, para ela regresse. Cá estarei enquanto estiver. À janela ou à lareira, talvez em amena cavaqueira com a minha companheira. Se não estiver, por perto me encontrarei. Numa caminhada pelos campos ou pelo lugar, à conversa com um vizinho possa estar. Mas não me demorarei, a fogueira apagar não deixarei. Assaremos as batatas pequeninas, ainda com casca, no meio do borralho, no meio da cinza quente. Como serão saborosas, nas nossas mãos ainda a escaldar, enquanto as descascamos (quando miúdo costumava estar à lareira com a minha avó paterna, a Sr. Ermelinda, que era dos Moreiras da Mata. Mandava-me aos sótãos que ficavam na “sala de baixo” para trazer algumas batatas pequenas. Depois metiam-se no meio da cinza quente, junto ao borralho da fogueira. Era só esperar algum tempo, ir vendo se não se queimavam muito. Como eram tão saborosas, naquele tempo em que tudo se aproveitava, até as batatas mais pequenas).
Pela simplicidade e envolvência do que é sentir o partir, assim me encontro. A minha simples e sincera homenagem a todos aqueles que partem e também aos que ficam. Pela dor que sentem, pelos sacrifícios que poderão ter nessa nova vida que procuram. Aos que ficam que à espera sempre estejam. Que a vida nos deixe guardar as recordações que não queremos esquecer. Quem parte “reparte-se” entre o viver e a saudade que sente. Que essa saudade seja dócil, não amarga de sentir. Que seja apenas saudade terna e calorosa que guardamos, que nos deixe viver e ser felizes, mesmo que para sempre nos acompanhe.
        

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