quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Pouco, não é nada.





O caminho para os montes de Rio Mau não era muito ruim. Algumas descidas, mas nada a que os bois já não estivessem habituados. O meu pai tinha-me mandado ao curral buscar o branco que ele trazia o vermelho. Os bois ficavam no curral mais afastado da casa, o curral de fora como lhe chamávamos, cada um no seu canto, presos para não andarem às turras. Cada qual tinha a sua manjedoura onde se colocava o pasto quando era hora da refeição, isto depois de beberem a lavagem, que era farinha com água e por vezes algumas cascas de resto de alimentos. Estavam bem tratados. A minha mãe sempre gostou de tratar bem os animais, cuidar, ser sua amiga. Era normal Ela falar a meio do lugar e os animais já darem conta dela, não parando de mugir enquanto ela não chegasse. Por vezes acontecia que quando andávamos com o gado a pastar, se ouvissem a voz dela era um Deus nos acuda, fugiam para ir ter com ela.
                Já com os dois bois presos à soga, que era de couro cru, era necessário pôr a canga. As juntas de bois, quando ao início eram ensinadas a andar ao carro, desde esse momento ficavam com um lugar definido para o resto da vida enquanto fossem par um do outro. As juntas de bois eram essenciais para transportar tudo que havia para transportar: o mato e a lenha dos montes, todo o pasto que os campos davam, levar o estrume dos currais para fertilizar os campos na altura de lavrar para a sementeira, lavrar, gradar, sachar o milho, trazer todas as colheitas. Quando era pouca coisa não valia a pena todo o trabalho de pegar nos bois, trazia-se à cabeça. Já não lembro, mas era costume alguns lavradores venderem lenha para as padarias e transportavam-na com os seus carros de bois, percorrendo grandes distâncias. O meu tio António costuma contar uma passagem engraçada sobre a época em que levavam carvão para S. J. da Madeira. Naqueles tempos, a garotada andava sempre descalça. Mas em S. J. da Madeira havia uma lei que proibia andar descalço. Levavam as socas de madeira no carro e lá tinham que as calçar, não vá serem apanhados por algum polícia.
                O carro de bois já estava pronto. Como era para trazer lenha não levava as caniças, apenas os fugueiros altos para se carregar uma boa carga. Depois de apertada a canga aos bois, era tempo de pegar no carro. Com cuidado para não se aleijarem no cabeçalho, recuavam até se poder levantar o cabeçalho e prendê-lo à canga com a chavelha. Era preciso ter sempre algum cuidado com os bois. Embora mansos, por vezes agitavam a cabeça para sacudir algumas moscas ou moscardos e podiam-nos atingir com os seus enormes cornos. Eu gostava de olhar nos seus olhos e fazer-lhes mimos no focinho e no pescoço, onde eles gostavam mais. Quando era de verão, era hábito levar um ramalho verde para lhe sacudir as moscas que não os largavam para se alimentarem do seu sangue. Por vezes, até dava dó ver o sofrimento deles. Malditas moscas que não paravam de nascer, mesmo quando se matavam tantas com a palma da mão que ficavam toda ensanguentada. Juntavam-se nas partes mais moles do corpo dos animais, às pilhas. Quando eram os moscardos, até os animais saltavam no ar só de ouvir o seu zumbir. O meu pai já me deixava levar os bois pela soga. Tomando cuidado e fazendo-se ouvir, lá se seguia rumo ao monte carregar a lenha, sempre com a vara dos bois ao ombro para impor respeito.
                - Anda daí branco, chega-te ao carro. Anda ei, vamos embora, ei. – Era numa linguagem própria que comunicávamos com os animais. Já habituados, entendiam perfeitamente o que se lhe queria dizer. Tinha-se colocado no carro a corda para amarrar a carga depois de pronta. Na mão levava-se uma foice e um serrote para cortar o que fosse necessário. A caminhada até ao monte onde se ia carregar a lenha durava mais ou menos vinte minutos a trinta minutos. Para lá era mais depressa do que para cá. Numa passada normal lá seguimos caminho. Estamos no verão, por esse facto vai-se cedinho, antes do sol nascer, para fugir ao calor. Todos os anos se repete. Quando alguém deita pinhal abaixo para vender, o meu pai costuma pedir a lenha dos pinheiros que fica no monte, não tem valor para os madeireiros. Só as grandes casas do lugar é que são possuidoras de vastas áreas de monte que ficam em redor das aldeias e dos campos de cultivo, numa mancha de floresta que se prolonga até se perder de vista. A essas parcelas de terreno, que podem ter algumas centenas de metros quadrados até muitos hectares, chamamos-lhe tapadas. Todas as tapadas tem o seu nome próprio. Basta dizer a tapada a ou b que toda a gente a conhece palmo a palmo pois o mato, ou tojo como chamamos à flora rasteira que neles cresce, é cortado à enxada, manualmente. Desse modo os habitantes do lugar conhecem palmo a palmo todos os montes em redor. Uns mais do que outros, mas quase todos conhecem. A casa dos meus pais era uma casa pobre, com apenas umas quatro tapadas muito pequenas que pertenciam aos meus avós paternos com os quais vivíamos  A que fica mais perto é o monte das Bouças. Depois temos nas Juntas, na Colmieira e no Campo-do-rio. Umas já pertencendo “à casa”, outras que se foram comprando. Uma tapada, se estiver bem situada, com pouco declive, caminhos bons, boa terra, é uma grande valia. Dela se colhe, além das grandes árvores,  a flora mais pequena a que chamamos mato para fazer “ a cama ao gado”. Esta vegetação vai servir para todos os dias se colocar no curral dos animais para não estarem a deitar-se em cima dos seus resíduos orgânicos (mais conhecida no lugar por bosta) e ao mesmo tempo, quando chegada a altura das sementeiras, será um fertilizante natural por excelência. O grande inimigo da floresta é o fogo. Quase todos os anos existem pequenos fogos dos quais nunca se sabe ao certo a origem. Por descuido ou maldade, o certo é que eles acontecem e deixam todos os habitantes em pânico. Além da destruição da enorme riqueza que uma floresta representa, existe sempre o perigo de chegar às habitações do lugar. São dias de muita angústia e sofrer. A minha terra, como eu costumo dizer, é uma zona de montanha, com os montes não muito altos nem com muito declive, fazendo lembrar o mar com as suas ondas umas a seguir às outras. Vê-se ao longe uns mais altos que outros até se perderem na linha do horizonte. No fundo desses montes existem por vezes pequenos vales, quase sempre um ribeiro de águas que descem das suas encostas ou nascem junto ao leito deles. Na parte mais funda da freguesia já correm alguns rios de onde se destaca o maior que é o rio Arda.  
                Chegados ao monte onde a lenha se encontra espalhada nos locais onde as árvores tombaram, tira-se a chavelha que segura o carro à canga, com cuidado para não partir o cabeçalho do carro que se encontra já travado em ambas as rodas por duas pedras que ali se ajeitaram. Tira-se a canga dos bois e prendem-se cada um a uma árvore que seja segura. Tudo arrumado é hora de começar a carregar a lenha. O meu pai vai orientado as primeiras camadas até que eu tenho que subir para cima do carro para acamar quando já não dá para se fazer do chão. O meu pai vai-me chegando as rameiras, uma atrás da outra, até se ter carga suficiente para os bois poderem puxar o carro. A carga deve estar equilibrada a meio do carro onde se situa o eixo e as suas rodas. Quando o carro está carregado com peso a mais da parte de trás diz-se que está “ao pino”. Se estiver muito à frente é muito peso em cima do cachaço dos bois. Deve estar equilibrado. Voltando a por os bois ao carro, é hora de regressar a casa.  
                Foi num verão desses que íamos buscar lenha, que eu resolvi pedir ao meu pai se podia escolher a lenha mais grossa para serrar e fazer achas para vender. Foi algo que ainda hoje lembro, a vontade de começar a ganhar alguns tostões só para mim. Nesse tempo as achas que consegui fazer vendi-as por cento e cinquenta escudos ao meu primo que fornecia a alguns clientes. Se comparar com os tempos que correm estaria a falar de aproximadamente setenta e cinco cêntimos. É espantoso como o mundo entretanto mudou, o valor de tudo tem crescido de uma forma quase abismal. É certo que os ordenados são outros, mas dá que pensar. Hoje todos estamos habituados a muito. É dinheiro para isto e para aquilo, nunca se está satisfeito. Eu sempre acreditei que pouco é muito diferente de nada. É preciso ensinar as novas gerações para o valor do empreendorismo, não estar sempre à espera que nos dêem as coisas. Todos dizem que nada vale a pena, que o melhor é empregar-se numa fábrica ou noutro sítio qualquer e comprar as coisas que fica mais barato. E quando não houver empregos, quando tiver que ser cada um a criar o seu sustento? O que pretendo dizer é que devemos procurar e ser capazes de descobrir formas alternativas no caso de necessidade extrema. Defendo que a agricultura devia ser olhada com outros olhos. Todos defendem a produção em grande escala, toda mecanizada. Tudo bem, mas será que, se fossem melhoradas certas situações nesta agricultura mais pequena, de campos diferentes, não seria possível aumentar a sua rentabilidade? Porque razão certas infraestruturas como os caminhos, a forma de armazenagem e distribuição das águas para a rega nunca foram melhoradas desde o tempo em que apenas havia os carros de bois? Os nossos campos são mais produtivos que qualquer outro campo que exista pelo mundo inteiro. Aqui pode-se cultivar muita coisa, é necessário adequar as culturas às necessidades do mercado, procurar produzir o que é mais rentável. Se os caminhos fossem bons, era muito fácil qualquer um cultivar um campo para complemento de rendimento para o agregado familiar. Os legumes, as hortaliças, as batatas, o feijão e tantos outros alimentos são fáceis de cultivar. Se fosse possível ter acesso com uma pequena viatura ligeira a qualquer pedaço de terra, estou convicto que muitas famílias voltariam a ter a sua horta. Além do mais, com o que se cultiva pode-se criar animais como coelhos, galinhas ou outras pequenas aves. Posso estar apenas a ser nostálgico, a não ser realista, a querer voltar a um outro tempo. Pode ser, mas a actual crise e os sinais da escasseza de alimentos que poderá acontecer no futuro poderão vir a dar-me razão e a muitos que como eu pensam. Não devíamos abandonar os campos por completo. Devíamos pensar em formas de reduzir os custos no seu cultivo. Se não der para competir em certos mercados, temos que procurar produzir algo em que se seja competitivo. Porque é que nunca se melhorou a vinha? Podíamos produzir vinho com mais qualidade, se houvesse quem ensinasse novas técnicas, aconselhasse as castas melhores para cada tipo de solo e clima. Ficamos sempre parados no pensar, limitamo-nos a repetir os mesmos actos dos nossos antepassados na forma de agir. O poder político local e nacional também sempre achou que não valia a pena investir. O que aconteceu foi muito simples: o abandono em massa de quem trabalhava no campo. Para resumir e concluir, a minha visão não se prende com o passado. Apenas olho o momento actual e sinto que muitas famílias viveriam mais folgadas se, em vez de chegarem dos empregos e meterem-se em casa ou nos cafés, tivessem uma horta que fosse fácil de cultivar, com bons acessos e um bom sistema de rega. Para tal é necessário um estudo prévio, freguesia a freguesia, juntando habitantes e técnicos superiores. Sei que existem muitos entraves, como o mosaico em que se distribuem os campos actualmente  Devido a partilhas e vendas, os campos distribuem-se de forma desordenada, muitos em minúsculas parcelas rodeadas por muros em pedra, o que não facilita em nada alguma mecanização para facilitar o seu cultivo. Não sei mesmo o que pensar. Poderá apenas ser uma ilusão minha. Mas que me dá tristeza ver este abandono e o país a precisar que se produza. Acho que por este andar, um dia vou ter saudade dos cachos de uvas que se comiam por todos os campos onde se passava, dos carrapiços que ficam nas ramadas e, já fora de época das colheitas, inverno dentro, a rapaziada trepava em sua busca. Como sabiam bem.

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