sexta-feira, 2 de novembro de 2012

" Os nossos pecados"




Sempre que algo de ruim me acontece, tenho por hábito interrogar o “Deus” em que acredito, em que tenho fé, o porquê de tal me suceder. Numa pequena reflexão interior, vou invocando meu ser e viver, procurando argumentar a todo o custo, não merecer tal “castigo”. São horas de aflição, muita angústia, implorando misericórdia. Serei eu imparcial nesta meditação? Saberei ver-me interiormente à luz dos ensinamentos que fui adquirindo? Não tentarei esconder os meus pecados, disfarçar os meus erros? Porque preciso destes momentos de sofrimento para Dele me lembrar? Será que apenas O convido a entrar na minha vida nestes momentos, esquecendo-me Dele nos dias de festa e algazarra? Serei assim tão hipócrita?
Neste pequeno momento da minha vida, da sempre pequena vida que cada um tem, aqui me encontro tentando fazer um “acto de contrição”. Já não me lembro da última vez que me fui confessar, comungar. Não percebo o que me impede. Meditando, tentando compreender-me, sinto uma pequena revolta do medo que sinto em minha vida partilhar, meus sentimentos do que acho que errei, desvendar. Como se isso fosse possível à luz de Deus. Então, se o faço, é dos homens que eu temo? Será suficiente este meu arrependimento interior, pensado e meditado, acreditando que com Ele estou a partilhar, ser suficiente para que me perdoe? Ingenuamente acredito que sim. Sempre que medito, pequenas reflexões interiores, acredito que com Ele partilho, num acto de vontade própria, de imensa necessidade. Frágil me sinto nesta condição humana de existir. Uma condição que eu quero sentir diferente quando Nele acredito. Recuso-me a aceitar que sou apenas um naco de matéria que se desloca neste universo, que parece não ter fim. Quero sentir que sou mais que matéria, quero desesperadamente sentir algo “Divino” na minha existência. Não procuro a imortalidade na matéria, apenas que a minha existência tenha um sentido maior que a simples condição de mortal. Será pecado este meu desejo? Não procuramos todos um pouco de imortalidade em todos os dias da nossa vida? Acredito que talvez seja o nosso “pecado” maior, esta necessidade de nos sentirmos imortais, mais que não seja, por pensarmos que um dia por alguém seremos recordados.
Das obras que achamos nossas, vemos pela vida fora a sua vulnerabilidade, a sua condição de “criaturas mortais”. Se um dia uma casa construímos, fruto de um sonho que o suor tornou realidade, poderemos assistir ao seu desmoronamento para uma outra obra, de outro alguém, ai ser construída. Há pouco tempo, eu, o meu irmão e o meu cunhado, falamos em retirar a ramada do campo do “Sub-Rego”. A vinha já há muito que deixou de ser rentável, não há quem queira ou consuma o vinho verde que na casa se produz. Por esse motivo, achamos que como ela já estava “velha”, o melhor era retirar tudo, e guardar os esteios e os ferros dessa ramada. Assim deixávamos o campo mais liberto para as outras culturas. Pensar pensamos, mas esquecemos a parte mais importante:
- O que é que ides fazer? Deixai lá estar a ramada, que está muito bem! – Foram estas as palavras do meu pai. Olhando-o, sentindo a sua fragilidade face às mudanças, com os seus setenta e cinco anos, sentimos um arrepio na alma. Aquela ramada fora construída com tanto esforço seu e da minha mãe, e agora nós só pensávamos em deitar abaixo. Como já tínhamos cortado as videiras, acabamos por retirar toda a lenha delas dos arames. Como esses arames estavam desfeitos, também os retiramos. Os esteios continuam lá com as suas vigas de metal, para que, se alguém assim o entender, a reactivar novamente. Até já pensamos, em conversa com o meu pai, que um dia, para quem ela ficar em partilhas, poder lá plantar uma ramada de “quivis”.
Esta pequena passagem deixou todos a pensar. Como a vida tem destas ingratidões. Ver com os nossos olhos, todo um trabalho de uma vida a cair por terra. Não foi difícil de imaginar o que lhe ia na alma: na alma do meu pai e logo de seguida na nossa. Este descuido nosso, esta falta de sensibilidade, alertou-nos para a vulnerabilidade das nossas obras “físicas”, do sentido de “mortalidade” a que parecem todas estar condenadas. Então o que nos resta, na vida, que possa ser “eterno”? Serão as nossas vivências com todos os que nos rodeiam, que de alguma forma, possam continuar a existir? Serão intocáveis, indestrutíveis, eternas? Talvez mais que uma construção física, sejam os dizeres, os ensinamentos, a memória da alma dos que vamos conhecendo, que um dia se torna eterna dentro da nossa. Não pretendo dizer que as obras ditas “físicas” não tenham o seu lugar. Exemplo disso são os imensos monumentos que continuamos a preservar e a admirar por todo o país, por todo o mundo. Tornámo-los imortais. Mas são obras de uma dimensão colectiva, de uma memória global, marcos da história de uma época, de um povo. As nossas marcas que vamos fazendo, enquanto cidadãos comuns, parecem estar condenadas a uma existência efémera. É neste sentir que eu estou vendo neste momento a realidade, o destino das obras que vou fazendo. Fruto do sonho e do trabalho, já hoje sinto o que um dia virá a acontecer. Não estou a morrer de véspera. Apenas decidi fazer-lhe uma homenagem em “vida”, na sua e na minha. É a pequena casa que eu e a minha esposa desenhamos, e que alguém para “nós construiu”. São os montes que vamos cuidando, o pequeno quintal e as suas árvores, que nos deram o prazer de, por nós, serem plantadas. São os animais que por aqui vão passando, numa vida mais curta que a nossa, e que sempre mantém vivo um certo frenesim, por onde passam, por onde estão. São os montes de pedrinhas pequenas e outras maiores, que vamos apanhando com o balde ou o carro de mão, e as dispomos a um canto do quintal.
Eternas esperam ser todas as vivências que aqui acontecem. Quer no aconchego da nossa casinha, pequenina, tão queridinha, quer no exterior, em redor, no quintal ou no monte. Vivendo intensamente todos os momentos, todos os dias, a vida acontece. Numa alegria contagiante, numa dor mais sentida, no baú sagrado das memórias se vão guardando. Tantas e tantas recordações que não cabem em todos os álbuns, em todas as molduras, de alma viva, que pela casa se encontram espalhadas. Mais do que uma memória guardado em algum registo, fica a certeza que um dia foram eternas, todas as nossas “construções”, mesmo que apenas por um instante. Tudo é eterno enquanto lembrado. Tudo é eterno se fizer parte, por mais distante que seja, de uma caminhada que se prolonga até ao” final dos tempos”. Como um cometa, que pelo universo arrasta a sua cauda, assim nós arrastamos todas as vivências, que se estendem até ao dia da criação. Poderemos dizer que um determinado período da nossa história colectiva se deve retirar do conjunto das vivências, enquanto construção colectiva, enquanto povo, espécie humana, enquanto memória, enquanto conhecimento fruto de toda a aprendizagem, que se foi acumulando, interagindo, dentro da nossa “consciência” colectiva? Acho que não podemos negar, na nossa existência, qualquer período da nossa vida. Podemos afeiçoar-nos mais a este ou àquele, desprezar outros ou mesmo odiar. Mas nada os vai retirar, apenas o esquecimento. E será bom esquecermos os nossos erros, os nossos “pecados”? Saberemos distinguir o bem do mal, se ambos não conhecermos? Muitas interrogações se me levantam. Por certo se a viver continuar, meus pecados irei sempre cometer. Parece ser este o fado que a espécie humana está “condenada”. Por tantas tribulações já passamos, mas a “elas” parecemos sempre voltar. Fruto do esquecimento, ou de uma necessidade que em nós existe. Por toda a história que nos é dada a conhecer, sempre vivemos tempos de prosperidade, depois de mergulharmos na escuridão das noites de guerra, de genocídios, de tantos inocentes perseguirmos, e sob as nossas espadas morrerem. Essa espada que sempre trazemos dentro de nós. Quando não entendida, dominada dentro dos nossos anseios, das nossas ambições desmedidas, horrendas, trazemos à luz da escuridão, o ódio, o desdém por outras formas de existir diferentes da nossa, no pensar e no viver. Tantas vezes julgamos, condenamos o “outro”. Pecadores sempre seremos. Sempre que nos esquecemos dos ensinamentos do nosso Deus, do dom do amor, do perdão. Considero o acto de perdoar o mais nobre dos sentimentos enquanto ser completo, instruído à luz da fé em Deus. Por muito exigir de nós, de uma dor profunda termos de afagar dentro de nós, das trevas fazer brotar a luz, a vida concebida no amor. É-me tão difícil perdoar. Sinto-me tão revoltado, tão confuso quando sinto que o devo fazer. Anseio tantas vezes a vingança. Penso ser essa a única maneira de “lavar” meu sofrimento. Acho-me cobarde se não me vingo, se perdoo. Porque me sinto assim? Será da minha natureza, da cultura que me impregna a alma? Porque não desejo primeiro perdoar, e não vingar?

Segunda-feira, dia 02 de Novembro de 2012        
                 

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