Sempre que
algo de ruim me acontece, tenho por hábito interrogar o “Deus” em que acredito,
em que tenho fé, o porquê de tal me suceder. Numa pequena reflexão interior,
vou invocando meu ser e viver, procurando argumentar a todo o custo, não
merecer tal “castigo”. São horas de aflição, muita angústia, implorando
misericórdia. Serei eu imparcial nesta meditação? Saberei ver-me interiormente
à luz dos ensinamentos que fui adquirindo? Não tentarei esconder os meus
pecados, disfarçar os meus erros? Porque preciso destes momentos de sofrimento
para Dele me lembrar? Será que apenas O convido a entrar na minha vida nestes
momentos, esquecendo-me Dele nos dias de festa e algazarra? Serei assim tão
hipócrita?
Neste pequeno
momento da minha vida, da sempre pequena vida que cada um tem, aqui me encontro
tentando fazer um “acto de contrição”. Já não me lembro da última vez que me
fui confessar, comungar. Não percebo o que me impede. Meditando, tentando
compreender-me, sinto uma pequena revolta do medo que sinto em minha vida
partilhar, meus sentimentos do que acho que errei, desvendar. Como se isso
fosse possível à luz de Deus. Então, se o faço, é dos homens que eu temo? Será
suficiente este meu arrependimento interior, pensado e meditado, acreditando
que com Ele estou a partilhar, ser suficiente para que me perdoe? Ingenuamente
acredito que sim. Sempre que medito, pequenas reflexões interiores, acredito
que com Ele partilho, num acto de vontade própria, de imensa necessidade.
Frágil me sinto nesta condição humana de existir. Uma condição que eu quero
sentir diferente quando Nele acredito. Recuso-me a aceitar que sou apenas um
naco de matéria que se desloca neste universo, que parece não ter fim. Quero
sentir que sou mais que matéria, quero desesperadamente sentir algo “Divino” na
minha existência. Não procuro a imortalidade na matéria, apenas que a minha
existência tenha um sentido maior que a simples condição de mortal. Será pecado
este meu desejo? Não procuramos todos um pouco de imortalidade em todos os dias
da nossa vida? Acredito que talvez seja o nosso “pecado” maior, esta
necessidade de nos sentirmos imortais, mais que não seja, por pensarmos que um
dia por alguém seremos recordados.
Das obras que
achamos nossas, vemos pela vida fora a sua vulnerabilidade, a sua condição de “criaturas
mortais”. Se um dia uma casa construímos, fruto de um sonho que o suor tornou
realidade, poderemos assistir ao seu desmoronamento para uma outra obra, de
outro alguém, ai ser construída. Há pouco tempo, eu, o meu irmão e o meu
cunhado, falamos em retirar a ramada do campo do “Sub-Rego”. A vinha já há
muito que deixou de ser rentável, não há quem queira ou consuma o vinho verde
que na casa se produz. Por esse motivo, achamos que como ela já estava “velha”,
o melhor era retirar tudo, e guardar os esteios e os ferros dessa ramada. Assim
deixávamos o campo mais liberto para as outras culturas. Pensar pensamos, mas
esquecemos a parte mais importante:
- O que é que
ides fazer? Deixai lá estar a ramada, que está muito bem! – Foram estas as
palavras do meu pai. Olhando-o, sentindo a sua fragilidade face às mudanças,
com os seus setenta e cinco anos, sentimos um arrepio na alma. Aquela ramada
fora construída com tanto esforço seu e da minha mãe, e agora nós só pensávamos
em deitar abaixo. Como já tínhamos cortado as videiras, acabamos por retirar
toda a lenha delas dos arames. Como esses arames estavam desfeitos, também os
retiramos. Os esteios continuam lá com as suas vigas de metal, para que, se
alguém assim o entender, a reactivar novamente. Até já pensamos, em conversa
com o meu pai, que um dia, para quem ela ficar em partilhas, poder lá plantar
uma ramada de “quivis”.
Esta pequena
passagem deixou todos a pensar. Como a vida tem destas ingratidões. Ver com os
nossos olhos, todo um trabalho de uma vida a cair por terra. Não foi difícil de
imaginar o que lhe ia na alma: na alma do meu pai e logo de seguida na nossa.
Este descuido nosso, esta falta de sensibilidade, alertou-nos para a
vulnerabilidade das nossas obras “físicas”, do sentido de “mortalidade” a que
parecem todas estar condenadas. Então o que nos resta, na vida, que possa ser “eterno”?
Serão as nossas vivências com todos os que nos rodeiam, que de alguma forma,
possam continuar a existir? Serão intocáveis, indestrutíveis, eternas? Talvez
mais que uma construção física, sejam os dizeres, os ensinamentos, a memória da
alma dos que vamos conhecendo, que um dia se torna eterna dentro da nossa. Não
pretendo dizer que as obras ditas “físicas” não tenham o seu lugar. Exemplo
disso são os imensos monumentos que continuamos a preservar e a admirar por
todo o país, por todo o mundo. Tornámo-los imortais. Mas são obras de uma
dimensão colectiva, de uma memória global, marcos da história de uma época, de
um povo. As nossas marcas que vamos fazendo, enquanto cidadãos comuns, parecem
estar condenadas a uma existência efémera. É neste sentir que eu estou vendo
neste momento a realidade, o destino das obras que vou fazendo. Fruto do sonho
e do trabalho, já hoje sinto o que um dia virá a acontecer. Não estou a morrer
de véspera. Apenas decidi fazer-lhe uma homenagem em “vida”, na sua e na minha.
É a pequena casa que eu e a minha esposa desenhamos, e que alguém para “nós
construiu”. São os montes que vamos cuidando, o pequeno quintal e as suas
árvores, que nos deram o prazer de, por nós, serem plantadas. São os animais
que por aqui vão passando, numa vida mais curta que a nossa, e que sempre
mantém vivo um certo frenesim, por onde passam, por onde estão. São os montes
de pedrinhas pequenas e outras maiores, que vamos apanhando com o balde ou o
carro de mão, e as dispomos a um canto do quintal.
Eternas
esperam ser todas as vivências que aqui acontecem. Quer no aconchego da nossa
casinha, pequenina, tão queridinha, quer no exterior, em redor, no quintal ou
no monte. Vivendo intensamente todos os momentos, todos os dias, a vida
acontece. Numa alegria contagiante, numa dor mais sentida, no baú sagrado das memórias
se vão guardando. Tantas e tantas recordações que não cabem em todos os álbuns,
em todas as molduras, de alma viva, que pela casa se encontram espalhadas. Mais
do que uma memória guardado em algum registo, fica a certeza que um dia foram
eternas, todas as nossas “construções”, mesmo que apenas por um instante. Tudo
é eterno enquanto lembrado. Tudo é eterno se fizer parte, por mais distante que
seja, de uma caminhada que se prolonga até ao” final dos tempos”. Como um
cometa, que pelo universo arrasta a sua cauda, assim nós arrastamos todas as vivências,
que se estendem até ao dia da criação. Poderemos dizer que um determinado período
da nossa história colectiva se deve retirar do conjunto das vivências, enquanto
construção colectiva, enquanto povo, espécie humana, enquanto memória, enquanto
conhecimento fruto de toda a aprendizagem, que se foi acumulando, interagindo,
dentro da nossa “consciência” colectiva? Acho que não podemos negar, na nossa
existência, qualquer período da nossa vida. Podemos afeiçoar-nos mais a este ou
àquele, desprezar outros ou mesmo odiar. Mas nada os vai retirar, apenas o
esquecimento. E será bom esquecermos os nossos erros, os nossos “pecados”?
Saberemos distinguir o bem do mal, se ambos não conhecermos? Muitas
interrogações se me levantam. Por certo se a viver continuar, meus pecados irei
sempre cometer. Parece ser este o fado que a espécie humana está “condenada”.
Por tantas tribulações já passamos, mas a “elas” parecemos sempre voltar. Fruto
do esquecimento, ou de uma necessidade que em nós existe. Por toda a história
que nos é dada a conhecer, sempre vivemos tempos de prosperidade, depois de
mergulharmos na escuridão das noites de guerra, de genocídios, de tantos inocentes
perseguirmos, e sob as nossas espadas morrerem. Essa espada que sempre trazemos
dentro de nós. Quando não entendida, dominada dentro dos nossos anseios, das
nossas ambições desmedidas, horrendas, trazemos à luz da escuridão, o ódio, o
desdém por outras formas de existir diferentes da nossa, no pensar e no viver.
Tantas vezes julgamos, condenamos o “outro”. Pecadores sempre seremos. Sempre
que nos esquecemos dos ensinamentos do nosso Deus, do dom do amor, do perdão.
Considero o acto de perdoar o mais nobre dos sentimentos enquanto ser completo,
instruído à luz da fé em Deus. Por muito exigir de nós, de uma dor profunda
termos de afagar dentro de nós, das trevas fazer brotar a luz, a vida concebida
no amor. É-me tão difícil perdoar. Sinto-me tão revoltado, tão confuso quando
sinto que o devo fazer. Anseio tantas vezes a vingança. Penso ser essa a única maneira
de “lavar” meu sofrimento. Acho-me cobarde se não me vingo, se perdoo. Porque
me sinto assim? Será da minha natureza, da cultura que me impregna a alma?
Porque não desejo primeiro perdoar, e não vingar?
Segunda-feira,
dia 02 de Novembro de 2012
Sem comentários:
Enviar um comentário