domingo, 6 de maio de 2012

Anoitecendo


Já é tarde. A noite vai chegando. Muito devagar, sem se dar pelos seus passos. Os olhos cansam-se quando querem ver mais além. Os passos são largos pelo caminho estreito. Respira-se algum cansaço, alguma dor. O dia parece que já lá vai. Mas a noite ainda não chegou. Alargo mais a passada. Agasalho-me nos trapos que trago. Não tenho frio. Apenas um pouco de pressa, talvez medo do escuro que por ai não tarda. Acho que o dia foi longo. Apenas me embalo no desejo de a casa chegar. Já não falta muito. Os sonhos sempre me invadem e apoderam-se da minha pequenez. Ainda há tempo para inventar mais um e outro sonho durante a caminhada. Até me ajuda a distrair, a não pensar no medo do escuro que por ai não tarda nada. Fizeram-me companhia até ao alto do monte da seca. Uma voz foi-me acompanhando até à entrada no cimo do lugar. Sou mais forte quando sei o que enfrento. Mas o escuro dá-me arrepios. Impede de ver o que me rodeio, por onde pouso meus passos. Não é nada de mais. Mas é assim, sempre o foi. A vida é o que é. Nem sempre somos livres nos sonhos que sonhamos. Nem sempre sonhamos os sonhos que queremos. Até acordados sonhamos pesadelo que parece não controlarmos. É esquisito tudo isto. Se eu consigo coordenar meus passos na direcção que quero, porque não os pensamentos. Como parece simples quando escutamos os sons que se soltam do interior de um qualquer instrumento. Tocar um piano, como quem faz um poema que se vai esfumaçando no ar, deixando à sua passagem um tormento de recordações vividas ou sonhadas. Sinto-me abençoado por respirar tudo que me rodeia. Abençoados os poetas, os músicos os artistas que de tantas formas, embora por pequenos instantes, nos libertam desta existência e nos fazem planar como o milhafre, lá bem no alto, com os braços abertos, em divertidas brincadeiras.
Foram as férias grandes que eu melhor lembro. Como era habitual, trabalhava nas férias para juntar algum dinheiro que dava para eu estudar. Todas as férias eram diferentes. Todas as férias trabalhava em locais diferentes. Comecei por acompanhar a minha mãe aos meios-dias na agricultura. A casa dos " Silva da Mata" era a que dava mais trabalha às jornaleiras, como a minha mães e muitas outras do lugar. A maioria eram mulheres. Depois de orientaram as lidas da casa, lá tiravam um meio-dia para ir ganhar algum, sempre dava para  equilibrar as contas da casa. O trabalho era trabalho. Esforçava-me por acompanhar os outros. Não me lembro de sentir pressão dos patrões. A parte que eu gostava mais era a merenda. Sentados, nos arredois em volta do campo, a uma sombra, como sabia pela vida. Os corpos cansados dão mais valor ao descanso, descansam melhor. Mas naquele verão foi a casa do "Torres" que me acolheu durante todo o verão. Fica no lugar da estrada e hoje a casa está abandonada. O Sr. José da Torre e a Sra Micas já partiram. No principio custou a adaptar-me. Não estava habituado a trabalhar todo o dia fora de casa. Por vezes vinha muito tarde, já noite, e o meu falecido Tio Rocha da Estrada fazia-me companhia até ao cimo do lugar, local onde hoje moro e escrevo este texto. Era uma parte de monte que fazia a fronteira entre o lugar das Agras e o da Estrada do lado Poente. Os trabalhos em que ajudava eram agriculas. Desde cortar mato logo de manhãzinha bem cedo, cuidar do milho chachando, arrendando, regando, tirar a bandeira para secar e por ultimo colher para se guardar no canastro. A lida com os animais também era constante, apanhar pasto, levar o gado com o carro e trazer para casa. Várias quintas tinham em locais diferentes, junto a linhas de água, pequenos ribeiros. Junto de casa também tinham vários campos, uma pequena quinta, com as tradicionais ramadas de videiras em redor do campo, de onde se fazia o vinho típico da nossa terra: verde branco e tinto, denominação como é conhecido em Portugal. Ao longo da minha vida tenho conseguido conciliar bem os diferentes meios em que tenho vivido. Quero dizer que me sinto à vontade no meio de um capo a regar milho, no monte a carregar paus para o tractor, numa obra a chegar baldes de massa e tijolos e no mundo escolar entre os professores. Já na primária o meu gosto pelo conhecimento era admirado pelos professores. O gosto pelo conhecimento não tem nada a ver se somos bons ou maus alunos. É diferente, não sei bem explicar. Mas hoje sinto uma verdade diferente das coisas, de as interpretar. Não é um saber cientifico, comprovado, é apenas o que penso. De muitas pessoas que conheci, espanta-me como a maioria dos pobres e analfabetos com quem vivi eram mais felizes que muita classe média alta ou mesmo ricos. Acho que criam um mudo próprio, apenas deles e das sua tormentas. São sempre muitos, não há  solidão. Pois pior que faltar o pão acho que é a solidão. Não estou a dizer que é bom ser pobre. O que quero explicar é que na vida, como na natureza, existe a necessidade de buscar equilíbrios. Esses equilíbrios, essa adaptação às circunstância é muito diversa. Um dia escrevi que nunca tinha sentido falta de nada mesmo menino pobre. O que eu acho, porque vivi esse tempo, já conheci outros tempos, e a conclusão que tiro é muito simples: quanto mais austero é o ambiente onde crescemos, mais valor damos às coisas simples da vida, mais facilmente somos felizes. Quando falo em tempo austero refiro-me à luta diária pelo sustento, ao precisar de ser criativo para contornar os problemas, tentar melhorar a vida. Não me refiro à falta de valores morais, à falta de um bom ambiente familiar. Isso sempre tive, casa ralhada mas governada, senhora de si, senhora dos seus valores, de cara levantada.
Quando ousamos pensar mais profundo, tentar absorver o mundo, surgem-nos muitas controvérsias, mesmo no nosso pensar. Tornamo-nos muito difíceis de saciar.

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