sábado, 12 de maio de 2012

A "nossa casinha"

-Olá, como estás? Dás-me acolhimento por esta vida? Posso entrar, arranjar um espaço para  me acomodar? Não te importas? 
-  Anda lá, não estejas com manias ou fecho-te a porta na cara. Já cá devias estar há que tempos. Andaste ao brejo, a dar água sem caneco que eu sei. Faz-me uma fogueira que a noite vai arrefecer.
 Ainda bem que todos, penso eu, adoramos a nossa casinha. O que eu chamo de nossa casa não é só o conjunto das paredes com um telhado. Em tom de brincadeira costumo dizer "não são as casas que fazem os homens, mas os homens que fazem as casas". Sei que o aspecto exterior da arquitectura, o conforto e beleza dos cómodos decorados são importantes. Mas o que mais retenho na memória, o que mais me convida a entrar seja em que casa for, são as pessoas que nela habitam. Eu sei que o facto de eu ser um ser simples de origens humildes, que levo uma vida do tamanho da minha família, muito contribua para esta forma de ver, de estar. Vem à memória as visitas que fazíamos a casa dos avós maternos. Era uma caminhada em família, descendo a encosta até ao rio que atravessávamos por uma ponte velha de madeira. O rio era ainda menino. Quase bebé. Sabia que ia-se encontrar mais adiante com outros que entretanto tinham decidido descer todos juntos o fundo das encostas. Iam-se juntando cada vez mais numa caminhada de passos irregulares: ora calminhos e serenos, ora como a canalha numa correria tal que saltavam sem medo por entre as rochas e levadas que lhes surgiam. Barulhentos, tamanha algazarra não passava despercebida. Não estou certo se este pequenote sabe o que o espera. Mas lá ia ele todo contente, e nós, do cimo da ponte, ainda parávamos um pouco a admirá-lo. Mas não nos ligava nenhum, saltitando, como que com hora de chegada marcada. Bom, também não queria que ele se atrasasse, "não vá o diabo tecê-las" e não encontrar os outros que já lá vão. Depois da ponte subíamos por uns carreiros estreitos que existiam nos campos. A subida era por umas escadas muito engraçadas que eram feitas por pedras mais compridas que saiam dos combros dos campos. Todas alinhadinhas, sem corrimão, com cuidado não vá cair. No cimo dos campos havia uma casa muito grande, de grandes lavradores, com a sua eira e o canastro. Os cães eram os primeiros a sentir que vinha gente. Já ladravam ainda vínhamos a descer a encosta para o rio. Havia sempre alguém que nos esperava com uma jarra de bom vinho que a quinta produzia. Isto é, depois de muito trabalho é que se colhiam as uvas, levavam-se para o lagar onde se pisavam e ficavam a fermentar. Só quando estivesse "cozido" é que se colocava o vinho nas pipas.
 Esta coisa das terras pequenas tem disto: toda a gente se conhece, são quase todos da família, ou mais próxima ou menos chegada, pouco interessa. Até parece que somos ramos da mesma árvore. Se calhar somos todos pequenos rios que se vão juntando na caminhada da vida. Se a água corresse ao contrário, tínhamos nascido todos no mesmo rio. Depois de contadas as novidades, lá voltávamos à caminhada. Agora mais em plano. O que eu mesmo gostava de ver eram as canas da índia que existiam num recanto da quinta, mais à sombra, onde corriam alguns guieiros de água que desciam a encosta e outros que ali brotavam da terra,à procura da luz. Sabe-se lá para brincar e continuar a descida até ao pequeno ribeiro onde iriam embarcar para a grande aventura. Sabe-se lá.
Antes de chegar ao lugar onde moravam os meus avós, ainda passavamos por um lugar mais pequeno, descíamos novamente até mais um ribeiro ( que por certo também ia se juntar à comandita lá mais para baixo, acho eu). Depois era só subir pelo caminho que dançava entre os campos de cultivo e a meio do lugar lá estava ela. Sempre à nossa espera, nunca se mudava para não ser difícil de a achar. Ficava do lado direito, meia nascida da encosta. O quinteiro era fechado. A porta estava só no trinco. Os meus pais anunciavam a chegada e lá íamos entrando. Passado uma parte do quinteiro, que era coberto, havia uma pequena clareira donde se via o sol. A cozinha ficava ao lado esquerdo. A porta estava sempre aberta para entrar o dia.Tinha um pequeno postigo para dar luz, o chão era de feito de chão.A lareira ficava do lado direito quando se entrava. Lembro da minha avó sentada junto á lareira, que mais não era que uma pedra no chão e o fumo subia até ao tecto de onde se escapulia por onde desse mais jeito. A cobertura em algumas partes era de telha e outras de colmo, que é a palha do centeio. A palha do centeio era aproveitada não só para alimentação dos animais, como dava para a cobertura das casas, para encher os colchões onde dormíamos e que todos os anos renovávamos. Já eu era um miúdo traquina e ainda usávamos esses colchões em casa dos meus pais. Nesse tempo dormia bem melhor. A minha avó guardava as caixas de fósforos vazias para me dar. Com elas ficava brincando, inventando comboios e outras aventuras. Voltando ao quinteiro, do lado direito ficava a entrada para um salão grande onde ficava a sala e  o quarto onde dormiam. O chão era de soalho e por baixo existia a adega para o vinho ( não me lembro de lá ter entrado). Nesse salão o que chamava mais a atenção era a janela que dava para o resto do lugar e uma cana da índia que meu avô guardava para a pesca no rio Arda ( o tal onde a comandita toda se juntava ). 
Não quero esquecer o chão da cozinha feito de chão: uma parte fraga outra terra que a minha avó varria para estar limpa. Não é um outro tempo, é sim um presente constante na minha vida que eu quero doar aos meus filhotes. Não existe maior tesouro que os laços de vida que nos unem, que nos fazem família.
O gostar dos aromas do monte, do rosmaninho, da alfazema, ainda continuam uma paixão. Os pequenos regatos de água fresca e transparente, os pequenos cardumes de peixes bebés que por alia se passeiam em brincadeiras. continuam a prender o meu olhar e a fixar todo a minha atenção. 
Um dia destes vou refazer a caminhada, levar os filhotes e perceber o que lhes fica na memória. Já estou a ver que vai ser a dor nas pernas" era melhor ter vindo de carro. E agora, como é que voltamos para casa?". Decerto que também ela estará sempre à nossa espera, sem se mudar de lugar para ser mais fácil de achar. Eu sinto que ela sem nós não é a mesma. Até os cães, a gata, as galinhas estão sempre à nossa espera. Basta abrir o portão que é uma algazarra. Ai se não é. Eu sei do que falo. se não acreditam, experimentem ter animais, tratá-los com carinho e vão ver do que falo.
Mais que tudo que possa ser dito, tudo na vida é o fruto do que semeámos, cuidamos e por vezes temos a bênção de colher. Se semearmos amor, tratarmos com carinho, colheremos frutos muito saborosos, que nos alimentam e saciam o corpo e a alma. Bom, está a ficar noite, vou fechar a portada e fazer uma fogueira que me está a apetecer. Boa noite.

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