sexta-feira, 18 de maio de 2012

Menino

Um tempo houve em que fui mais leve que o ar. De estatura mediana, aspecto para o franzino, sempre acreditei que podia ser tudo, ou quase. A escola era para lá. Não me lembro se gostava de estudar Certo era o gosto pelo conhecimento. De poucos livros, caderno A4 para apontamentos, e a vida "para lá se compunha". Um tempo de "aventurismos", sem nada  objectivo para alcançar. Um tempo feito ao nosso jeito. As tribos eram diversas. Caminhavam todos nos mesmos corredores mas com sentidos diferentes. Sem grandes euforias, vagueando tantas vezes pela indefinição na preparação objectiva de um futuro diferente. Foi um pouco tarde, tarde demais, que a realidade me foi acordando. De uma forma simples e inequívoca, à medida que os anos se acumulavam, iam surgindo os exemplos práticos das minhas limitações. Falar, filosofar, elaborar teorias ou ensaios será sempre para os mesmos. Ou quase sempre. Ao longe, despido da própria pele, posso ver melhor. Só de olhar para os grupos de brincadeira ou estudo, pode-se alinhavar os conceitos mais elaborados da origem do estrato social de cada um. "Os pobres cheiram sempre mal aos ricos". Não me lembro de me faltar fosse o que fosse. Habituado desde pequeno à dura realidade de ser pobre, à luta diária de toda a família por ganhar o sustento, nunca fui de pedir o que quer que fosse. Gostava muito de ser senhor do meu nariz. Sempre o fui. Ainda o tenho. 
Da escola primária apenas lembro o período de 1974. Isto devido às novas companhias que surgiram para regalo dos olhos, da mente de menino que admirava o diferente. Rostos que o olhar tocava pela primeira vez. Foi um tempo diferente. Naquelas tardes de domingo o grupo juntava-se para ficar simplesmente a observar. Como um "bando de parolos" passávamos tardes apenas deitados na erva de um canto mais escondido a cavaquear sobre esta ou outra miúda. De um jeito inocente e puro admirávamos, idolatrávamos aqueles seres tão distantes, inacessíveis. Saboreei um pouco de tudo enquanto aluno: fui melhor da turma, fui dos piores, passei e reprovei. Fui amado e .... Não esqueço o professor que no nono ano, depois de dizer que eu tinha reprovado num exame, pedi-lhe para ver o meu teste mas foi recusado. Também lembro um professor de português que insistia comigo para eu dar mais de mim, que sabia que eu tinha para dar: porque não o fazia? Peço-lhe perdão. Lembro muitos outros, mais dos que esqueci.
Quando fui para a Telescola senti pela primeira vez que os meninos não eram todos iguais. Uns iam para o ciclo ou colégio, os outros tinham a Telescola. Situava-se na mesma freguesia mas a adaptação não foi fácil. As rivalidades antigas entre lugares acho que ajudaram para que fosse vitima de abusos físicos e não só. Foi uma época um pouco dura. Felizmente que tinha alguns bons amigos que ainda hoje o são.
De seguida a Secundária. Eu tinha onze anos quando me fui matricular. Uma pequena viagem de cerca de dezassete quilómetros mas que para mim era um caminhar no desconhecido. Nada habituado a sair do lugar, muito menos a andar de autocarro. No principio era só vomitar. Segui colegas que iam com os irmãos mais velhos que já frequentavam a escola. Os meus pais acompanhavam a vida dos filhos nestas situações à distancia, com os habituais conselhos. Não lhes deve ter sido fácil. Não poderem participar nos trabalhos de casa que os filhos traziam da escola. Não saberem ler uma letra do tamanho de uma casa. Sei que do grupo que fazia parte os pais tinham andado todos na mesma escola: a escola da vida do trabalho. . Sinto um grande vazio por nunca ter levado os meus pais à escola. Podia ter-lhes ensinado a ler e a escrever. Mesmo assim a minha escola nunca lhes fez falta para crescerem, criar família, estar de cara levantada e peito aberto a tudo na vida. Como lamento esses directores das escolas que nunca souberam interpretar as origens dos muitos alunos que a escola acolhia. Nunca se predispuseram a descer  do seu pedestal e caminhar nas origens humildes de quem sempre viveu para e do trabalho mais duro, menos reconhecido, muito menos remunerado. A minha mãe foi "servir" aos sete anos para ganhar o pão de cada dia. Tempos de quase escravatura não valesse a sorte de encontrar patrões sensatos e acolhedores. Sempre se refere aos seus patrões com muito respeito e carinho por nunca terem abusado dela e a terem ajudado a crescer de uma forma digna. Trabalhava muito, mas eram tempos difíceis para todos. Mas continuo zangado. Falta-nos tanto como povo que eu só quero chorar. Eu sei que devia ter dado mais de mim. Eu sinto que podia estar a lutar de uma forma mais interventiva para que algo de novo acontecesse. Não consigo aceitar  tanta falta de humanismo de quem tem o poder. 
Mas porque razão esses seres querem o poder se não tem alma para acolher servir os desígnios de uma grande caminhada? Quantos deixaram pelo chão apenas parta elevarem o seu ego? Saudade a minha de um tempo em que nada disto ainda sentia. Não me nego à dor de pensar, de sentir uma mordaça que me cala, me deixa sem voz. Feliz do António que tinha os peixes para o escutarem. Felizes dos peixes que o souberam ouvir, com ele estar, tão eloquente forma de a sorte aceitar e de todas as maneiras se indignar, mesmo que por" tolo" pudesse ser julgado.
Tomar a palavra de uma forma serena, elaborar um pensamento abrangente sem qualquer pretensão, é de louco.  Sair do seu canto, abrir-se ao mundo, é travar uma batalha desigual. Quero apenas o sonho do menino que era mais leve que o ar. Quero pegar pela mão o meu pai, a minha mãe, o meu irmão, as minhas queridas irmãs, e entrar no portão que dá para o recreio , antes de na sala entrar.
A quem eu decepcionei, a quem eu não correspondi, para quem eu não ousei ir mais além, fica aqui registado que eu também o sinto. Mas não quero que haja um tempo de lamentar, porque o tempo é sempre para se viver com o sonho, de se indignar com alguma realidade. Quero  ser sempre menino,  de cabelos compridos e ondulados. Não me roubem o meu menino.

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