sábado, 19 de maio de 2012

Os carreiros



Um andar mais apressado quebra o silêncio do amanhecer. Os passos ganham vida pelo carreiro estreito que conduz à presa da água. Por certo estará cheia, toda a noite a encher. O tempo, de passadas mais largas, afasta-se já ao longe. O dia vai acordar em breve. A claridade vai tomando o espaço que fora da noite ainda há instantes. A enxada ao ombro, um andar mais ligeiro e logo chego. Com cuidado se vai abrindo a torneira já bastante danificada da antiga presa. Vai-se calculando para que a água chega ao campo para se regar bem mas sem desperdiçar. O milho já está grande. Mais uma ou duas "regadelas" e já dá pão. Uma marca na fraga ajuda a ajustar a abertura da torneira da presa. De novo a enxada ao ombro, e pelo carreiro vou acompanhando o rego de água que vai caminhando também apressado nas cales de pedra que atravessam toda a "lavoeira". 
As regas sempre foram de uma importância vital para se poder cultivar a terra. Feita do mesmo jeito desde que a memória se lembra, com as galochas ou os pés remexendo a terra, a enxada controlando os sítios por onde se queria que a água caminhasse. Lembro acompanhar a minha mãe nessa tarefa agrícola desde sempre. Mas nem sempre a pertença da água era consensual. Mesmo existindo os chamados "roles da água" que ditavam os dias e as horas que cabiam a cada campo,  com as partilhas, as vendas, por vezes não ficava bem definido o tempo de cada campo. Passo a explicar com um exemplo comum: determinadas famílias grandes tinham uns tantos dias para todos os seus campos. Quando se vendia um que fazia parte do conjunto, tinha que se atribuir um determinado tempo para a rega. Como a água tinha um grande valor, era comum esses campos ficarem com pouco tempo de rega. Mais comum é saber antes da compra de um campo o tempo de rega a que ele tem direito. Isso iria valorizar ou não o campo em questão.
Os meninos sempre trabalharam, ajudando em tudo que podiam. O mundo inteiro cabia nas pequenas encostas, nos montes e campos que cultivávamos. Era um mundo cheio de tudo. Os tempos mudam. A escola, os que chegam, o que ouve e vê na televisão, criando outros mundos envoltos num certo mistério. As encostas começam a ser pequenas para muitos. Também o foram para mim. Neste caminhar menos apressado pelos carreiros do passado, escuto-me e aos que para longe partiram naqueles tempos em que nos falavam do outro lado do ribeiro, do campo mais acima, vozes fortes que enchiam de vida estes campos hoje adormecidos, sós. Os valados apoderaram-se das recordações. Queria voltar a ouvir, a sentir o cansaço dos que aqui trabalhavam. As juntas, rio-mau, campo-do-rio que era dos homens. O moinho jaz por entre as paredes que desfaleceram na solidão. Outrora com as suas Mós transformava o grão que tinha secada na eira ou no canastro em farinha que havia de ir à mesa, já amassada, cozida no forno que a lenha tinha aquecido. Por aquelas encostas meio íngremes, em carreiros cansados dos pés que seguiam caminho para baixo com o grão, para cima com a farinha que alimentaria os corpos cansados. Um alqueire ou alqueire e meio. O que o corpo pudesse arcar. Ai moinho que ai estás, ou estiveste. Como foi, como puderam te esquecer, abandonar? Perdoa-me e aos homens que fugiram, outros carreiros procuraram. Nesta visita inesperada, sinto amargura como te vejo e lembro tudo que foste. Tantas gerações alimentaste, com o teu trabalho incansável, a mó sempre a girar empurrada pela água que pelo cubo descia, qual escorrega dos miúdos brincar. A tramela só se calava quando adormecias no descanso que te davam. A ti dedico a minha caminhada pelas histórias vividas num outro tempo, mais sentido. Uma caminhada mais só do que eu desejava, mas feita em harmonia com todos os elementos que preenchem e envolvem o ar que respiro, o que o olhar alcança, o que a mente interioriza. Em paz, numa calmaria que me extasia, me arrepia. De volta aos carreiros que outrora percorri em corridas que só o vento acompanhava. Sentir a brisa cortar-nos a face, ter a agilidade para não falhar o pé, gritar e o gripo mais além agarrar. Como eu desejo acordar o povo que outrora cantava. Por onde foram todos, que caminhos estão hoje calcando? Decerto longe, carreiros menos íngremes, mais largos, menos irregulares, mas não tão belos como estes que por enquanto aqui continuaram.

A todos que partiste, onde estais?
Tão longe, que não me escutais.
Ficou  a saudade, e para recordar
as memórias que eu não quis apagar.

Que terra linda Deus criou para mim.
Pequenas encostas, todas vizinhas.
De pequenos leirotos se enchem
cultivados como recantos de jardins.

Muitas pontes as unem, estreitas
de pedra ou madeira  feitas.
É um gosto por elas passar,
ao encontro de alguém para falar.

Altiva, a olhar o horizonte que se estende
para lá das montanhas, que tocam o céu.
Serena e acolhedora, no regaço verdejante
cria pão, sacia a fome e a sede do habitante.

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