sábado, 26 de maio de 2012

Nascendo a cada instante



Poucas, quase nenhumas, são as vezes que nos acontecem as "coisas" da forma como as desenhamos interiormente. Habituado a planear, a decidir, a tomar opções, confronto-me tantas vezes com resultados nunca previstos. Sentado, ouvindo uma música que me faz flutuar: COLDPLAY concerto ao vivo, ROCK IN RIO 2011. A minha fiel companheira está no parapeito interior da janela fazendo a sua higiene pessoal: lambe, lambe, de quando em vez fica parada, só a olhar o que lá fora se passa. O dia está sombrio, corre uma aragem fria. Os ramos dos eucaliptos, dos pinheiros, das mimosas, das fruteiras do pomar, toda a vegetação se vai agitando em movimentos suaves, ora para cá ora para lá. O que espreita, o que vê, o que lhe desperta a atenção ao certo não sei. Mas gosta. Gosta muito de por aqui estar, umas vezes agitado outras apenas a observar. Geralmente adormece a ouvir a musica que eu ouço. Gosto de pensar que partilha dos mesmos gostos, que sente algo parecido com o que sinto. Gosto de pensar assim. Acho que já nos conhecemos bem.
Os animais sempre estiveram muito presente em toda a minha existência. Numa aldeia rural, vivendo de uma agricultura tradicional, minifúndio, todos os animais domésticos desempenham uma função produtiva, se assim lhe podemos chamar. Os cães guardam a casa e protegem o dono, os gatos fazem companhia e são caçadores muito astuciosos, as galinhas põem ovos, as vacas dão leite, os bois puxam o carro e lavram a terra, os porcos e os coelhos dão carne. Estamos na época das lavoeiras. É a altura em que se lavram os campos para se semear milho. Continua a ser uma aldeia. Continua a praticar alguma agricultura mas já há algum tempo que os pneus dos tractores substituíram as ferraduras dos bois. A mecanização avançou e hoje os agricultores que existem em toda a freguesia contam-se pelos dedos das mãos. Outrora fonte de sustento de quase todas as famílias, hoje os campos apenas dão trabalho a alguns. Apenas vão resistindo as pequenas hortas, um ou outro campo ainda cultivado para dar alguma coisa para casa. Existem também os casos em que a mudança não foi entendida a tempo. Os tempos agora são difíceis: sem preparação, com idades superiores a cinquenta anos, uma crise nunca vista de trabalho a nível nacional e não só. Não costumo mencionar datas, mas para que se entenda e se possa enquadrar esta visão terei que dizer que corre o ano de dois mil e doze da graça de Deus. A "malhadinha" entretanto foi dar um giro ( assim baptizada pelos filhotes devido às diversas cores do seu pelo, dando um aspecto de malhada. Como é queridinha virou malhadinha). 
No habitual percurso que faço, encontrei alguém que faz parte de um passado distante. A conversa de ocasião acontece. Mas não termina ali. Este reencontro com o passado sempre me deixa um pouco vagueando pelas memórias, pelas coisas que outrora foram. Coisas que foram o que foram, representaram o que representaram. Somos tocados de um jeito, mas não sabemos de que jeito tocamos os outros. Sem nos tornarmos transparentes, seguimos os passos que caminham sozinhos, tal a vontade de ficar mais um pouco. Tudo se envolve numa ténue neblina, quase invisível, quase intocável, mas que nos esconde. Escondemo-nos tantas vezes, mais do que sabemos. Acontece por isto ou por aquilo. Continuamos pela vida fora a brincar às escondidas. Nem sempre é fácil esconder-nos, principalmente de nós.  
 A vida não é um rio que podemos visitar sempre que queremos. Nasce pequenino, por vezes uma pequena nascente de água cristalina. Depois começa a sua viagem, a sua vida, crescendo como qualquer outro ser vivo. Por sorte ou destino, poderá um dia encontrar o mar onde adormece. Gostava que a minha vida fosse um rio. Daqueles que escavam o seu próprio caminho, que alimentam os que traz no peito e os que lhe tocam. Nascendo a cada instante, vivendo a cada passo que dá, mantendo-se eterno pela sua renovação, pela sua força incansável de seguir o seu caminho. De volta ao rio, aos locais que a memória não esquece, procuro viver novamente os momentos que há muito passaram. O rio é o mesmo, as rochas pouco mudaram. Mas eu já não sou o mesmo. À minha volta faltam muitos olhares, muitos olhos meigos que eu gostaria de abraçar. Os pés que tocam a água estão cansados. Já não há a correria, os gritos de alegria, os trambolhões água dentro. Tudo é mais meditado, menos espontâneo, mais comedido. Já sou crescido, um pouco adormecido pela vida, nas lembranças daquele rio menino quando eu era menino. Não quero ver o rio mais adiante, mais além. Só o quero aqui, pequenino, ainda menino. Não quero que ele cresça, se torne largo e fundo que ainda me afogo. Assim pequenino, este rio menino dá para brincar do jeito que eu quero. 
A ele confidencio meus segredos, em segredo, apenas tocando com o olhar a sua alma viva, cheia de vida.
Não entendo este menino que aqui ainda é pequenino e mais além, muito mais adiante, se parece comigo.
Largo e profundo, também ele esconde o que lhe vai dentro, lá no fundo. Apenas vimos o que ele nos deixa ver. Guarda bem fundo os tesouros que foi transportando ao longo da longa caminhada. Alimenta a vida no seu ventre, qual mãe aconchegando os filhos. Talvez por ser já adulto, as brincadeiras ficaram lá no alto das montanhas onde nasceu, foi menino e foi crescendo. Mais calmo, mas conhecedor, guarda e dá-se ao respeito perante os que o olham da margem ou rasgam as suas águas em braçadas fortes ou a bordo de uma qualquer embarcação. Com ele, no encontro ou reencontro no final da viagem, ficam todos os tesouros que guardou e ao mar entrega, entregando-se, qual filho saltando para os braços da mãe, onde adormece.

Aqui estás, sempre estiveste, sempre estarás.
E eu que sempre te procurei e não encontrei.
Parvoíce  de ousar pensar que querias mudar,
do teu leito te ausentares para outro lugar.

Foram longos os tempos de ausência.
A vida me levou, por outras encostas,
outros caminhos  tive de atravessar,
sem nunca de ti precisar me lembrar.

Só lembra quem esquece,
só esquece quem adormece.
Um mimo quero te fazer,
em tuas águas com o pé mexer.


Ainda bem que te encontro,
já não dava mais para esperar.
Tanta saudade, em ti quero entrar,
para  chapinhar, celebrar o reencontro.


Noutros leitos adormeci e acordei,
agora sinto por que aqui regressei.
Nunca te esqueci, sempre acordado
sempre presente meu bem amado.


Fica aqui comigo mais um bocadinho,
não me deixes agora que cheguei, cansado.
Repouso meu corpo,  numa rocha sentado,
tocando com os pés cansados a água, sozinho.

Vou-te segredando baixinho, coisas da viagem.
A viagem do menino que já foi  pequenino
mas que a vida não deixou assim continuar.
Sorte a tua, que para sempre assim podes estar.

Não mais me perderei, deixarei de te ver.
Na tua margem para sempre quero viver.
Não me deixes ausentar,  abraça-me menino
ai como eu te adoro, meu rio pequenino.


Gostaria de mostrar ao mundo inteiro que nasci numa pequena terra que não se cansa de admirar os seus rios, que nascem a cada instante. Puros e inocentes é assim que brotam do interior da terra mãe. Aqui dão os primeiros passos, muitos trambolhões e voam,  do alto da escarpa até desmaiarem em espuma no fundo da queda. Ás vezes apenas escorregam pela encosta abaixo, enchem minúsculas lagoas, e lá seguem, mas sempre pequeninos, sempre meninos.





A cascata, onde a água voa, precipitando-se desde o cimo da encosta, livre, sem receio de cair. A natureza oferece-nos coisas assim, para ficarmos apenas a olhar, a imaginar tal espírito livre que move os elementos.







Apenas tocar a sua superfície, de forma delicada, fazendo pequenas ondas que agitam, dão a sensação de movimento. Cristalina que dá vontade de beber, saciar a sede do corpo e da alma. O rio continua lá, basta seguir o seu chamamento, o seu encanto, deixar-se encantar. Nada mais simples, tocar com os dedos dos pés o elemento mais macio e refrescante que a natureza nos proporciona.














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