UM OUTRO TEMPO,
INOCENTE, QUASE QUIETO
Neste estado de alma
de recordar o passado com alguma nostalgia, é fácil relembrar a época dos
“retornados”. Teria por volta de oito ou nove anos. As mudanças no dia-a-dia da
aldeia foram notórias. Muitos regressaram ou simplesmente vieram. A novidade da
situação, as caras novas na escola, tudo se alterou. Recordo com saudade esse
tempo. Acho que nunca me apercebi de toda a realidade que envolvia a situação.
Apenas via o lado que conseguia entender. Pouco se falava nesse tempo da
integração. As coisas iam acontecendo naturalmente. Não me lembro de sentir
qualquer tipo de exclusão dos que chegaram. Contudo ao escrever estas linhas
interrogo-me sobre o outro lado. Acho que nunca perguntei ou achei haver
necessidade para isso. No entanto, agora, passados tantos anos, gostava de ter
essa conversa. Um dia destes vou por aí ao encontro das figuras do passado que
entretanto cresceram, viajaram uns para cada lado. Não sei como os vou encontrar.
Se calhar mandarei recados pelo vento que me acaricia a face nos dias em que me
elevo perante a sua passagem. Vou-lhe pedir em segredo, segredos que gostaria de
saber do passado que nunca existiu. De certo será o meu melhor confidente.
Desse tempo de
atribuladas mudanças houve algo que impediu uma maior tragédia humana. O facto
de haver no mundo países irmãos que partilhavam a mesma língua permitiu o
escoamento em várias direcções do globo de milhares e milhares de pessoas que
todos os dias chegavam a Lisboa. Poucos têm a noção da logística que existia na
capital para fazer face a uma imensidão que afluía “fugida” de Angola e sem
destino certo. O Brasil foi um dos grandes refúgios para milhares de
portugueses. A mesma língua permitia uma oportunidade mais fácil para tentar um
recomeço de vida. Tento imaginar aquelas famílias famintas, sem nada, os pais
aconchegando os filhos nos braços cansados, as instituições de caridade
acorrendo com agasalhos e refeições dentro do que tinham. Temeu-se uma catástrofe
humana. Mas hoje os senhores de cravo vermelho, como ontem, passam ao lado de
todo este drama humano. Mas é importante não estar apenas obcecados com falar a
mesma língua no aspecto económico e de trabalho. A língua é muito mais.
Partilhar a mesma língua é partilhar toda a cultura que lhe está associada. Anda
muita gente a esquecer-se disso e apenas preocupada com o fulano falar ou
entender as ordens de trabalho que se lhe dão. Ai meus meninos de rabo
crescido, que maus que vocês são. Se eu pudesse a tareia que lhes dava. Deixem
crescer e ser gente essa gente que tanto o quer.
O António Manuel é um dos que ainda hoje
tenho a sorte de encontrar de tempos a tempos e conversar. No inicio, fiz uma
pequena brincadeira. Foi assim: um dia, não interessa qual nem quando,
estávamos a brincar junto à casa dos meus pais. A casa dos meus pais fica
situada junto ao largo da Capela de Santo António e dantes existiam duas
oliveiras no adro. Era hábito juntar-nos em redor da sua sombra numa almofada
de relva macia que junto a elas crescia. Era altura de colher as azeitonas e eu
perguntei-lhe se ele gostava de azeitonas. A resposta foi positiva, ao que eu
lhe disse para ele provar uma azeitona colhida da oliveira. Foi uma risada vê-lo a cuspir tudo. Ficou a saber que alguns
frutos não s e conseguem comer a sair da origem. Nos tempos que se seguiram
formamos um grupo de amigos que ainda hoje não esquece a sua história. Desse
tempo fica também a lembrança do primeiro contacto com colegas de outra cor. Ao
princípio algum receio. Depois tudo foi normal. Afinal não passavam de miúdos
como eu, com os seus problemas e capacidades à procura de um lugar entre todos.
Acho sinceramente que no caso que conheci a integração foi natural. Sei que nem
sempre é assim. Os medos, os preconceitos sempre existiram. Só a convivência
dilui esses medos e nos transporta para uma realidade comum. Aceitar as
diferenças é sempre o maior desafio mas a única solução para o equilíbrio
social sustentável. Hoje vivemos numa aldeia global. O grande desenvolvimento
dos meios de transporte permite que pessoas e bens se desloquem com tanta
facilidade que é quase certo que todos os povos existem e coabitam em todos os
locais do mundo. Portugal sempre foi um País tradicionalmente de emigrantes. A
procura de novas oportunidades em países com melhor desenvolvimento convidava à
aventura e procura de melhores condições de vida no estrangeiro. Com a queda do
muro de Berlim e o fim do comunismo, assistimos a uma imigração em grande
escala dos países de Leste à procura de melhores condições de vida no Nosso país.
Actualmente essa onda de imigração está a diminuir devido à grave crise
económica que atravessamos internamente e à melhoria das condições de vida nos
seus países de origem. No entanto é constrangedor ver situações de emigrantes
dos países africanos que arriscam tudo para procurar um futuro melhor. A
comunidade internacional não tem conseguido lidar da melhor forma com todo este
dilema social. Antes de mais é preciso ajudar os países de origem desses povos
a terem alguma dignidade de vida e esperança num futuro melhor. Muitos Países
africanos são ricos em recursos naturais mas apenas uma pequena faixa de
poderosos usufrui, deixando o seu povo a morrer à fome. Portugal, enquanto
pátria de uma língua que por muitos é partilhada, não deve fugir às suas
responsabilidades. A descolonização foi das maiores vergonhas associadas aos
senhores da revolução dos cravos. Se repararmos bem, ficamos impressionados com
todo o mundo Lusófono. Não saber interpretar esta realidade é um grande erro.
São muitos milhões,
destacando-se o Brasil que é em muitos domínios uma potência mundial. Já tive
familiares em Angola e que hoje vivem no Brasil. A saudade é muita. É uma
mistura do que é e do que sonhamos. As dificuldades económicas, a busca de
melhores oportunidades levam a caminhadas diferentes. Sente-se sempre um aperto
no coração quando a lembrança os traz de volta. Por vezes, todo o corpo
estremece e soltam-se algumas lágrimas mais descuidadas, que estavam mesmo na
beira do parapeito de um olhar entreaberto. Falar de países africanos de língua
oficial portuguesa é mergulhar numa história muito complexa e emitir opinião
sobre uma realidade muito frágil. Hoje assiste-se a um regresso de muitos
portugueses em busca de uma realidade melhor que a que o país neste momento
oferece. É preciso olhar para a história e não repetir os erros. Os povos
gostam da sua autodeterminação. Cuidado com algumas ideias antigas que
eventualmente possam acompanhar mentes menos abertas. É bom sentir que esses
países começam a dar passos reais para a melhoria das condições de vida de toda
a sua população. Bom para eles e para o equilíbrio mundial. Todos os Povos têm
o direito a serem felizes, a ter alimentação e cuidados de saúde básicos. Os
países mais ricos tem que entender que não podem continuar eternamente a
subjugar os mais pequenos às suas vontades, sem respeito pela dignidade humana,
tendo como único fim o aproveitamento das suas riquezas naturais e exploração
da sua mão-de-obra. Para o cidadão lusófono abre-se uma imensa área de procura
de oportunidades em que a língua não é obstáculo. Devemos aproveitar essa mais-valia
e manter viva esta língua que nos une a todos e que é de todos os que a
valorizam e a acolhem. Como alguém disse “ a língua é a minha pátria”. É
gratificante ouvir outros povos falarem e principalmente cantarem a mesma
língua que nós. Que seja um sentimento mútuo é tudo o que desejo para a
preservação desta riqueza. Talvez a maior que espalhamos pelo mundo e imortalizada
pelos nossos artistas em tantas áreas como a escrita e a música. Ai a música.
Como é bom ouvir um poema cantado por tantos e tantas brasileiras. Não vou
mencionar nomes ou títulos dos temas que mais gosto. Apenas quero dizer que
arrepio com certos duetos ou solos que nos cantam coisas simples e tão
familiares que nos despertam a alma e criam uma paixão tão forte que a viagem
pela nostalgia das recordações vividas ou imaginadas não tem fim. É de todo
impossível descrever o amor que sinto por tanta música cantada em português nos
diversos tons ou sotaques ou o que lhe quiserem chamar. Deixem apenas ser mais
um dos que partilham. Deixem-me embalar num doce sono da ternura que me invade
primeiro o corpo, depois a alma. Ai como nos regala a alma brincar ao faz de conta
debaixo de um pé de laranja lima. Um dos meus maiores prazeres é a música.
Quando cantada na nossa língua mais me fascina. A música Brasileira tem uma
doçura e calor próprio. É inimitável.
Quem não conhece ou
não ouviu coisa mais linda como “garota de Ipanema”
Olha que coisa mais
linda
Mais cheia de graça
É ela menina
Que vem e que passa
Num doce balanço, a
caminho do mar
Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balanço é mais
que um poema
É a coisa mais linda
que eu já vi passar
Ah, porque estou tão
sozinho
Ah, porque tudo é tão
triste
Ah, a beleza que
existe
A beleza que não é só
minha
E também passa
sozinha
Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa
O mundo inteirinho se
enche de graça
E fica mais lindo
Por causa do amor
( Tom Jobim )
Eu pertenço à geração
que viu surgir o rock e o pop cantado em português. Antes era quase impensável.
Depois surgiram tantas bandas e que ainda hoje perduram. Ainda hoje gostamos de
“chiclete”. Bem precisamos de manter viva a nossa língua,
este património colectivo.
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