terça-feira, 29 de maio de 2012

A bola

 

 Não é a boca grande que come, é o apetite. É uma frase que minha mãe gosta de repetir aos filhos e netos. É fácil entender o que Ela quer dizer. Acho que tem a sua razão. Podemos aplicar este principio a muitas outras coisas. Certos estamos quando concluímos que a vontade é a ferramenta mais importante. A motivação é sem dúvida uma força muito grande. Se olharmos pela nossa vida achamos muitos exemplos em que nos superamos, fizemos coisas impensáveis, que às vezes só de pensar arrepia o corpo e a alma. Mas é necessário acontecer. Permite-nos alargar horizontes, objectivos, vencer traumas, rasgar novos caminhos, afirmar-se perante nós e os outros. Isto de viver é uma luta constante. As lutas que travamos podem ser na conquista de algo ou defendendo o que já conquistamos. É importante conquistar objectivos, mas de nada serve se não soubermos guardar, defender, proteger. Por vezes temos que vir a terreno defender os nossos princípios, os nossos pontos de vista. É importante fazê-lo com convicção, saber que temos que estar preparados para tudo, mesmo tudo. Se mostrarmos medo, receio, é tudo mais difícil. Não estou a dizer que não se deva ser ponderado na medida do possível, avaliar todas as consequências reais ou imaginárias. Mas nada deve deter-nos. É necessário desenvolver  capacidades, ter uma grande auto-estima, gostarmos de nós. Cientes da importância dos outros, não menos importante somos nós. A escravidão voluntária é a pior de todas, penso eu. Eu sei que nem sempre é fácil, em  muitos momentos cairemos por terra, choraremos sozinhos a um canto qualquer, perdidos, frustrados, duvidando de tudo e todos. Mas teremos de ser capazes de aguentar esses momentos. Em pequeno era muito rebelde. Não era uma criança fácil. Fincava o pé, não era fácil "tirar baralho" comigo. Quase sempre era eu que do grupo ia à frente, dava a cara ( e muitas vezes o corpo todo). Se a bola caia no campo do vizinho lá ia eu pedir, mesmo sabendo que vinha ai raspanete. Ou quando acontecia algum exagero com alguém do grupo era eu que o levava a casa. Ás vezes vinha corrido a "toque de caixa". Nunca me esquece uma valente tareia que levei no meio do lugar, já noite, no caminho que dava para a loja do Sr. Ângelo. Dois gandulas mais fortes que  queriam que eu desistisse de "algo". Apanhei que me fartei, mas eles não levaram a melhor. E era quase sempre assim. Num  dia de Carnaval fiquei muito triste quando  acompanhava duas colegas em pleno lugar. Alguns "amigos" resolveram deitar o famoso "pó-de-arroz" nas suas cabeças. Não consegui protegê-las. Fiquei muito triste, queria antes ter levado uma tareia. Há dores que passam mais depressa que outras. As da alma são mais complicadas, doí tudo, sem sabermos aonde.
O nosso grupo era muito pacifico. Estou a falar de uma idade muito particular, o começo da adolescência. A telescola já era. Agora ou era a secundária ou o mundo do trabalho a sério. Eu ainda continuei sem guardar os livros juntamente com o Tono e o Paulo. O Zeca e  o Tino já não queriam saber da sacola para nada. Mas continuamos iguais, sem diferenças, sem barreiras, verdadeiros amigos. Gostávamos muito de conversar, organizar coisas. Alguns bailes apenas com um pequeno gravador que o Zeca entretanto tinha comprado com o dinheiro que começou a ganhar ou com a aparelhagem que os pais do Tono tinham. Eu e o Tono éramos os mais tesos. Mas nem por isso o grupo deixou de existir . Numa daquelas aventuras que fazíamos, descobrimos num armazém abandonado uma bola de "capa" que tinha o couro de fora descosido. Mas isso não tirou nadinha à grande descoberta: uma bola como a que os jogadores profissionais jogavam. Num mundo como o nosso era uma achado, um verdadeiro tesouro. Louquinhos por jogar à bola, imaginem só  o entusiasmo que nos ia na alma. Tínhamos que a recuperar. E assim foi. Num domingo, ao inicio da tarde, juntamo-nos nas escadas da capela de Santo António que fica no centro do lugar. Ali demos inicio à meticulosa tarefa de coser o couro sem furar o interior de borracha. .Eu fui o cirurgião de serviço. Agulhas, linha, tínhamos tudo, não faltava motivação. E lá se começou. Olha por aqui, olha por ali, não faças isto e mais aquilo. Todos estavam com o olhar fixo não vá alguma coisa correr mal. E não sei que tempo depois, ela lá estava, a nossa bola. Só faltava encher com a bomba de ar e ia ser uma loucura. Toca a arrumar as linhas e as agulhas, que eram mais que uma não fosse alguma partir. Alguém falou que faltava uma agulha, mas o entusiasmo era tanto que não se deu importância. Era hora de correr para um sitio que já tínhamos em mente. Nada mais, nada menos que um campo no meio da lavoeira que não estava cultivada. Ficava bem perto, junto ao olival do Martins, não lembro agora o nome. O nome sim, que todos os campos eram "baptizados". Todos tinham nome próprio, e não era para menos. Deles brotava o pão que nos alimentava o ano inteiro, com a graça de Deus e o nosso trabalho, muito trabalho. Mas eram bons campos, amigos, sempre à nossa espera, sempre lá.
À tarde foi o realizar de tantos sonhos: jogar com uma bola a sério, como os nossos ídolos. A erva pequena que cresce por ela mais parecia um relvado a sério. Uns paus ao alto faziam de baliza. A trave era o Nosso "olho " que marcava. muitas vezes a discussão era acesa:
- Entrou que eu bem vi!
- Estás maluco, ia muito alta, eu não chegava
- Saltasses, saltasses.
Mas sempre se acabava por resolver. era bem pior quando não tinha os paus na baliza e eram duas pedras no chão. 
- Entrou, entrou rentinho
à pedra.
- Não foi nada, cortou a pedra. Todos viram, não viram?
Eram tempos em que tantas pedras eram "cortadas" e acabavam sempre inteiras. Pura magia ou o uso de uma expressão que significava que a bola tinha passado por cima da pedra, que não era golo, tinha ido ao poste, se poste houvesse. E a tarde lá se esvoou. Cansados, corpos exaustos de tanto correr, chutar, defender em voos acrobáticos, que não havia igual. A noite ia-se aproximando. Era tempo de voltar para casa. Mais um domingo estava a terminar. Como eram bons os Domingos. Como era bom um tempo haver para brincar, já uns moços grandes. Quando nos preparávamos para regressar reparou-se que a bola estava a esvaziar. Coitada, tinha-se aguentado tão bem a tarde inteira. Lá íamos ficar sem bola outra vez. Será que daria para reparar? Acho que foi junto à capela que resolvemos inspeccionar de novo o interior para compreender mal fadada sorte. Bom, para espanto de todos, encontramos a agulha que estava perdida.
Nunca tinha pensada em seguir medicina, muito menos cirurgia. Portanto nada havia a temer no exercício da minha actividade profissional quando crescesse. Mas que fiquei embatocado, com todos a olhar para mim, fiquei. 
- Que foi, podia acontecer a qualquer um!
O jogar à bola sempre foi algo que movia todos os rapazolas do lugar. Qualquer sitio servia: no adro da capela, no meio da estrada que não tinha carros. Mesmo à semana, no final do dia, quando uns chegavam da escola e os outros desciam das carrinhas que os traziam da construção civil, todos se juntavam no centro do lugar a jogar. Os pregueiros nunca faltavam, a bola tinha "diabo", ia para todos os lados, ora chutado por um,  ora chutada por outro. Uma vez virou o canado do leite no quinteiro da casa dos pais do Zeca e do Paulo, que eram irmãos naturalmente. Foi o bem bonito. "A canalha não tinha mais que fazer, não andam cansados? À seus gabirus, se eu vos apanho."
Um dia também me aconteceu quando jogávamos do lado norte do adro, num largo que ali ainda existe. E foi o canado do leite que a minha mãe tinha à beira do"curral de fora". Às vezes corria mesmo mal. Mas no dia seguinte já ninguém se lembrava de nada. "Galfarros, se fosse para trabalhar ninguém ia mas para isso já não tem perna manca". Nesses tempos o coração da aldeia batia muito forte, com tantos corações aos pulos. Era um coração jovem, batendo muito alto. às vezes ainda demoro meus passos nesses locais, talvez à espera de o ouvir novamente, aquela vontade, aquele querer, aquele ser feliz com "cousa pouca".

Venham, venham comigo, vamos jogar.
Quem escolhe? Eu e tu para aqui
aquele e mais o outro acolá para ali.
vamos que se faz tarde, toca a começar.

-Com a mão não vale não, que é falta.
-Se me dás uma canelada vais no ar.
-Tá bem, vê lá,nem sabes o que levas,
seu manco, se me voltas a rasteirar.

A linguagem era quase um dialecto próprio daquela tribo de rapazolas. Cheia de termos próprios, que só nós dizíamos, só nós conhecíamos. Ainda se joga à bola. Agora o largo é um campo de piso sintético, com balizas com postes, trave e rede. O campo tem marcações, a rede da vedação não deixa a bola fugir tantas vezes. Os canados do leite há muito que perderam a asa e o fundo. Ainda bate o coração, não tão forte como o daqueles tempos. Mas ainda bate, de forma diferente, mas é tudo boa gente. Agora já não posso muito, tenho medo de me aleijar. Mas tenho muito prazer em conviver, o meu filho acompanhar e quem sabe às vezes fintar. Mas já não é fácil. Está a ficar tudo virado. Ainda há pouco era eu que o deixava passar a bola por entre as pernas para o incentivar. Agora, se me descuido, lá vem uma gargalhada marota. Oxalá que a bola nunca pare no coração da minha aldeia.


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